* Por Alexandre Staut *

O Sempre Um Papo e o Sesc Santo André recebem hoje, às 20h, a jornalista, escritora e documentarista Eliane Brum para uma conversa sobre ”Reportagem na Amazônia”. Eliane viaja para a floresta para contar histórias reais há 20 anos. Desde 2011, documenta a vida de famílias ribeirinhas do Xingu expulsas pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Eliana conversou com a São Paulo Review sobre questões locais.

*

Em suas viagens pelo lugar, quais os grandes e atuais conflitos observou? Poderia falar um pouco sobre a sua dimensão? Desde 2011, eu acompanho o processo violento de implantação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará. Cerca de 40 mil pessoas foram expulsas de suas casas, parte destas pessoas são ribeirinhos, um povo da floresta. Sem assistência jurídica, muitas destas pessoas, analfabetas, assinaram papéis que não eram capazes de ler, numa flagrante violação dos direitos mais básicos, papéis que tiravam delas tudo o que tinham. Hoje, parte dos expulsos por Belo Monte vive em bairros construídos pela empresa na periferia de Altamira que se tornaram territórios de violência e cujas casas caem literalmente aos pedaços, apesar de terem sido construídas há poucos anos. Altamira foi considerada em 2017 a cidade mais violenta do Brasil, em grande parte pelo processo de Belo Monte. O rio foi extremamente afetado e hoje os pescadores têm dificuldade de pescar. Milhares de animais perderam a vida. Preguiças, macacos guaribas, pacas, cotias, sem contar centenas de milhares de peixes das mais variadas espécies. Povos indígenas da região que se chama Volta Grande do Xingu estão tendo dificuldades de sobreviver com a destruição do ecossistema. Nesta mesma região, a mineradora canadense Belo Sun quer implantar o maior projeto de mineração de ouro, o que causaria uma sobreposição de impactos sem precedentes na Amazônia brasileira. Essa é a situação na região do Xingu. O que acontece na Amazônia repercute no Sudeste brasileiro, a floresta é fundamental para a regulação do clima e das chuvas. É importante percebermos que estamos num momento muito particular da história humana. Nossa espécie, que sempre temeu a catástrofe, hoje se tornou a catástrofe que temia. Enfrentamos hoje a mudança climática causada por ação humana. Embora as pessoas não consigam nomear, o mal-estar que afeta seu cotidiano, com uma qualidade de vida cada vez pior, se chama mudança climática. O que faremos diante disso, agora, não amanhã, é a diferença entre nossos filhos e netos viverem uma vida difícil ou uma vida muito ruim. A Amazônia, a maior floresta tropical do mundo, é fundamental para o futuro da vida da nossa espécie no planeta. Apoiar os povos da floresta em sua luta contra a destruição representada por grandes hidrelétricas, grandes projetos de mineração e a transformação da mata em soja ou pasto pra boi não é uma caridade, mas uma questão de sobrevivência de todos nós. São eles, os povos da floresta, que estão defendendo, muitas vezes com o seu corpo, a floresta amazônica. O Brasil é o país com o maior número de defensores do meio ambiente assassinados. Mas essa não é uma luta deles, é uma luta de todos nós. Por que então eles estão sozinhos?

Foto de Eliane entrevistando IMG_9966 1

Por outro lado, quais avanços sociais observou na região? Poderia falar sobre eles? Não existe “a” Amazônia. São muitas as Amazônias. Conheço algumas delas, mas nos últimos anos meu trabalho de reportagem é focado na região do Médio Xingu, na Amazônia paraense. Há um processo muito interessante da população ribeirinha nas reservas extrativistas da Terra do Meio, uma região lindíssima com um nome que lembra os livros do Tolkien. Nestas reservas, os ribeirinhos vivem da floresta, com a floresta. Como se sabe, as áreas mais preservadas da floresta amazônica são as terras indígenas, seguidas pelas unidades de conservação, como essas reservas extrativistas onde vive a população ribeirinha e extrativista. Se ainda há floresta em pé, é por conta dos povos da floresta – indígenas, ribeirinhos e quilombolas. São eles que podem nos ensinar a como viver com a floresta sem destruí-la, algo que todos temos que aprender. Se este é um processo muito interessante, infelizmente as medidas do atual governo provocaram o recrudescimento dos ataques à floresta. Com o aumento do poder da bancada ruralista, o setor mais atrasado e predatório do agronegócio, grileiros (ladrões de terras públicas) e desmatadores estão cada vez mais confiantes de que ficarão impunes. Recentemente Temer perdoou os grileiros, naquela que ficou conhecida como a MP da grilagem. Hoje essas reservas extrativistas, assim como terras indígenas da região, estão sendo invadidas por madeireiros. Nossa floresta vai para a Europa e outros mercados em forma de madeiras nobres. Essa madeira é “esquentada”, o que significa que por um processo de corrupção parte dela é “legalizada”. E assim vão sendo abertos imensos clarões na mata. Um dia, em vez de árvores, temos bois. É desse modo que também vamos perdendo a floresta. E colaborando para o aquecimento global. O mais fascinante na região do Xingu, assim como em outras regiões amazônicas, é a resistência dos povos da floresta. Eles são violentados de todas as formas, têm suas casas queimadas e ainda assim seguem lutando pelo rio, pela floresta, pelo seu modo de vida. Tenho aprendido imensamente com eles. É um privilégio contar suas histórias de luta e de vida. Se a biodiversidade da Amazônia é uma riqueza imensa, a diversidade de gentes na floresta também é algo maravilhoso. Os saberes são muito profundos, há grandes intelectuais entre os indígenas e os ribeirinhos. É com essa diversidade, com esses outros modos de ser e de estar no mundo, de habitar esse planeta, que o Brasil deveria estar construindo uma experiência diferente de todos os outros países. Algo próprio, algo original. Em vez disso se apequena e faz um arremedo da pior versão dos modelos de desenvolvimento que já deram errado em outros países. Esse é um tipo de pobreza muito brutal, a da indigência do pensamento, a da incapacidade de criar algo que não seja uma imitação barata do que fizeram os colonizadores. Só nos resta resistir junto com os povos da floresta. Mas para isso é preciso acordar. E nosso mundo está cheio de zumbis.

Conforme o escritor Márcio Souza, em seu livro “A história da Amazônia”, a história local é marcada por um processo social entrecortado pelas relações sociais e de poder político de nove estados-nação, de centenas de etnias, sem esquecer os diversos grupos sociais de interesse, de todos os tamanhos, nacionais e internacionais. Até agora é uma história contada, de forma fragmentária, por gente da metrópole, por cientistas da América do Norte e da Europa, por professores oriundos das universidades nacionais, marcando para sempre a forma de ler os fenômenos sociais da região. Em suas viagens, quais programas locais observou que privilegiam a história contada pelos povos do lugar? O que poderia ser feito para que essas histórias viessem a público a partir da visão/vivência do povo local, de forma efetiva? A história dos povos da floresta têm sido contada por nós e para nós, o que podemos chamar de “brancos”, num sentido mais amplo da palavra, pela escrita. E a escrita tem sido historicamente um instrumento de dominação das elites. Para os povos da floresta, os documentos escritos, mesmo que falsos dos grileiros, sempre valeram mais do que a documentação oral e material de séculos de ocupação do território. A escrita sempre foi utilizada para expulsá-los da floresta e destruir a floresta, assim como outros ecossistemas. A escrita é extremamente violenta no processo histórico do Brasil. Como aconteceu em Belo Monte nesta década, neste século: as pessoas foram pressionadas a assinar papéis que lhes tiravam tudo e que não eram capazes de ler. Da mesma forma, o imenso conhecimento destas pessoas é ignorado porque não escrito. Hoje eles estão encontrando formas de contar sua história. De fato, eles sempre contaram. A questão é que uma grande parte do Brasil não quer escutá-los. As pessoas têm voz, o que têm faltado são ouvidos. Então, talvez o mais necessário seja mesmo escutar. E aprender com esses povos, e resistir junto com eles.

Foto 2 de Eliane em ReportagemIMG_9425 (1)

*

Fotos: Lilo Clareto

Tags: , , , , , ,