*Por Bruno Inácio*
Os traumas provocados pelo confisco de poupança no governo Collor aterrorizaram brasileiros e brasileiras por anos. Na verdade, continuam a aterrorizar. Também por isso, essa história merecia ganhar as páginas de um livro de ficção que fizesse jus a todas as camadas dos acontecimentos que marcaram o período de redemocratização do país. E recentemente, esse livro veio.
Publicado pela Claraboia, “A face mais doce do azar”, de Vera Saad, traz uma abordagem bastante original para o tema, ao colocar como protagonista uma pré-adolescente que ainda está começando a entender o que é isso de esquerda e direita e inflação e poupança. Seu olhar atento e curioso acompanha brigas de família, desespero e desilusão, ao mesmo tempo em que insere leitores e leitoras no Brasil do início da década de 1990. Há trocas de moedas, insegurança econômica e um presidente que tenta, a todo custo, parecer confiável.
Nesse cenário, as descobertas comuns à pré-adolescência passam a dividir espaço na vida de Dubianca com as novidades políticas contadas no telejornal. Seu cotidiano abriga música pop, paqueras, segredos, aproximações, distanciamentos e uma crescente sensação de perigo, não apenas pela situação do país, mas pelos riscos que, lamentavelmente, todas as meninas e mulheres conhecem muito bem.
Assim, pouco a pouco, a protagonista faz descobertas sobre si, ao mesmo tempo em que analisa as camadas do mundo ao seu redor, por meio da leitura, da observação e das vivências. Não por acaso, sua inocência desaparece a passos largos e dá lugar a uma visão mais pragmática sobre o cotidiano.
Os personagens bem construídos e o enredo capaz de abarcar tanto um drama familiar quanto um momento histórico nefasto já seriam suficientes para um bom livro. Mas Vera Saad vai muito além. Sua técnica literária é repleta de elegância e delicadeza e, ainda que a autora aborde temas dolorosos, constrói frases lindas, trabalha o silêncio de forma primorosa e presenteia leitores e leitoras com uma trama irresistível.
“A face mais doce do azar” é um desses romances que se tornam memoráveis tanto pelo enredo quanto pela linguagem. Aqui, Vera Saad revisita o passado com a precisão de uma historiadora e a sutileza de uma poeta, ao entregar uma narrativa que retrata uma família específica e, ainda assim, todas as outras.
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São Paulo Review e do Jornal Rascunho.