* Por Vitor Necchi *
– E se o sargento nos pegar?
– Tu acha mesmo que aquele porco vai se meter lá na hora do almoço?
Ramiro balança a cabeça:
– Aquele ignorante só deve ler história de sacanagem e se for curta.
– E tem mais, né? Vai tá fechada.
– Mas Peixoto, e se alguém entrar?
– Aí a gente faz o que combinou de fazer quando estiver perto da tia Clara chegar: nos escondemos atrás das estantes do fundo e saímos andando, como se nada tivesse acontecido.
Ramiro volta ao exercício de geometria descritiva que resolve com o amigo. Paira um burburinho provocado pelas duplas que tentam decifrar a questão escrita pelo coronel no quadro.
– Ô meu, deixa de ser bundão. Vamos aproveitar.
– Bundão é teu cu.
– Bichinha.
Mal Peixoto termina o xingamento e faz uma careta de dor, enquanto reclama em voz baixa para não chamar a atenção do professor, que lê jornal:
– Porra, meu, vai pisar no dedinho da tua vó. Cara babaca…
– Tu me chamou de bichinha.
– Bem machão que tu é. Não quer nem matar educação física comigo.
– Mas o que mesmo tu quer fazer escondido na biblioteca?
– Sei lá, cara. Aproveitar que ela vai tá vazia e não ficar me estrebuchando de tanto correr no meio-dia.
– Putinho. – Para evitar outro golpe no pé, Peixoto aponta o indicador rente ao rosto do colega: – Vou te cagá a pau se pisar meu sapato de novo.
Peixoto desencosta a sua classe e começa a trabalhar sozinho. Ramiro fica em silêncio, não consegue avançar nos cálculos, então diz:
– Tá bem.
– Tá bem o quê?
– Vou contigo.
No almoço, a bibliotecária tranca a porta e sai. Os garotos permanecem nos fundos do térreo desde o instante em que tia Clara apagou as luzes dos dois andares. Alguns segundos depois, Peixoto toca a coxa do colega.
– Acho que deu. Podemos sair.
Enquanto caminham entre as estantes, Ramiro pergunta o que farão.
– Vamos lá em cima, tem um sofá.
Quando chegam ao patamar da escada, se debruçam no corrimão. Examinam os quadros na parede, que se estende do térreo até o andar de cima. A funcionária responsável pela guarda dos livros do Colégio Militar reúne telas que os alunos pintam nas aulas de arte e pendura, sem muito critério na disposição.
– Ela não escolheu meu quadro.
Peixoto baixa a cabeça e olha a tela que pintou.
– Acho bonito teu quadro – admite Ramiro. – Queria saber pintar assim.
– Cara, tu é o melhor texto da turma. Tira as melhores notas de redação. Deixa alguma coisa pra mim, porra.
Os dois gargalham, cuidando para não soar alto. Sobem e se acomodam no sofá perto da estante das enciclopédias.
– Quem é aquele cara que tu pintou?
– Meu pai.
– Bonito teu coroa.
– Tu acha?
Peixoto vai até a estante e olha a Delta Larousse.
– E eu? – pergunta, enquanto desliza os dedos pelas lombadas.
– O que tem?
– Também me acha bonito?
Ramiro baixa a cabeça. Não responde de imediato, mas diz que sim.
Peixoto volta para o sofá e se joga ao lado do colega, perto o suficiente para os ombros se tocarem. Estende as pernas sobre a mesa onde ficam os jornais.
– Acho estranho te chamar de Peixoto.
– Mas é meu nome de guerra, ué. O sargento que definiu.
– Sim, mas parece nome de velho.
– Então me chama de Henrique.
Ramiro sorri. A sirena soa no poste do meio do pátio, e ambos se olham.
– Tá acabando a educação física. Logo temos que nos esconder lá embaixo de novo – avisa Peixoto. Em um movimento rápido, recolhe as pernas que estavam sobre a mesa e senta na beira do sofá.
– Tu me acha bonito mesmo?
– Sim. – Quase não diz, mas completa: – E teu peito.
Peixoto se mostra surpreso.
– Meu peito? Por quê?
– É bonito. Já tem um pouco de pelos.
Logo vai terminar a educação física. Logo a tia Clara vai abrir a porta e acender as luzes. Logo precisarão se esconder até sair.
– Quer passar a mão?
Surpreso, Ramiro olha o colega.
– Quer?
O garoto não chega a responder, mas Peixoto se agacha à frente dele e abre os botões, revelando a penugem escura que se espalha pelo tórax.
– Pode passar. Eu deixo.
Então Ramiro desliza sua palma sobre os pelos. Aproveita e circunda com a ponta do dedo um mamilo de cada vez, onde se concentram tufos, e volta para o centro do peito, que acaricia com o dorso.
Eles ouvem a voz da bibliotecária ainda do lado de fora, reclamando do calor. Os dois disparam pela escada e correm até o fundo, no mesmo lugar onde se esconderam antes. Tentam controlar a respiração. Peixoto abotoa a camisa, enquanto o peito sobe e desce. Tia Clara abre a porta e acende as luzes. Os amigos colocam o casquete que estava guardado no bolso e se preparam para sair.
Caminham em silêncio até o alojamento, onde guardaram as mochilas.
– Vai ter prova de geometria descritiva – lembra Ramiro.
– A gente podia estudar juntos, né?
*
Vitor Necchi é jornalista, professor e autor do recém-lançado Não existe mais dia seguinte (editora Taverna)