A mulher como dor e potência

* Por Raimundo Neto *

É possível com a escrita refazer a própria vida, inventá-la tanto como revivê-la para além do que mora na memória? Que tipo de escritor é capaz de construir personagens complexamente profundos, personagens de uma curiosidade compassiva em relação a todo mundo, e assim apresentar uma sociedade repleta de ódio, violência, vômitos e incertezas, sem escorregar para pieguices e panfletarismos?

No livro de contos O manual da faxineira, Lucia Berlin apresenta personagens que enxergam o mundo a partir do que dói. Não são multidões de personagens vivendo em contos meramente aglomerados. Cada mulher narradora vive individualizada em seu modo particular de refletir sobre sua realidade. Seus olhos enxergam no que é comum e dolorido um caminho.

As mulheres de Berlin são um milagre. O feminino que se expande de todas as narradoras para além do que surge, do que se espera de uma mulher em qualquer sociedade conservadora.

A religiosidade é presente, nos contos, como um alargamento de fronteiras entre o feminino sempre culpado e condenado pelo que é considerado erro e pecado. Essa carga transforma o corpo, os atos, os afetos, as escolhas e os caminhos em rituais de libertação: rompe com grilhões de uma instituição que apenas afia a língua santa e pune.

Lucia consegue em todos os contos construir uma banalidade que se transmuta pela percepção das narradoras: o tempo presente, o narrado, é amarrado ao que as personagens lembram-se de si e de sua história, e assim significam todas as dores que assolam sua capacidade de seguir adiante.

Com uma técnica precisa, capaz de vivificar as experiências narradas, Berlin consegue fazer com que as imagens e a potência da palavra estejam presentes e móveis, arrastando o leitor para dentro dos atores da narrativa. É contando o que é Nova York, o México, o Chile, por exemplo, que Lucia apresenta as mulheres como paisagens vívidas: naqueles lugares “só guerra, sexismo e violência”.

A autora morou em diferentes países e cidades. E inventou outros tantos em sua literatura. Nos contos, é possível aproximar-se dos contextos racistas e machistas em lugares como o Texas e a Cidade do México. O que é grande em Lucia é a capacidade de transformar essa realidade para algo maior através das descrições, metáforas e apresentação das personagens em suas relações. Uma mulher escrita por Berlin é uma paisagem emancipada, e ainda prestes a ser destruída, sobrevivente também.

Lembranças e rememorações fluem através dos contos. O tempo tictaqueia na contagem das dores, nas faltas que arrancaram a esperança de uma criança violentada, de um bebê morto, de mães alcoolizadas em seus papéis etéreos, eternizados pelo rancor social. São mães presidiárias, presidiários poetas, homens e mulheres absortos em um cotidiano miserável, comum, e ainda assim bonito.

Qualquer coisa que você diga sobre a prisão é clichê. A humilhação. A espera, a brutalidade, o fedor, a comida, as horas intermináveis. Não dá para descrever o barulho, incessante e ensurdecedor”.

As mulheres de Lucia Berlin enxergam o mundo pelos afetos divertidos que as impulsionam a questionar os lugares que lhe são dados. Outra potência de Lucia é reinventar o lugar daquelas mulheres.  Com uma técnica precisa, assim posso dizer, embora muitos contos retomem certas temáticas, a autora desconstrói lugares dados a mulheres e conceitos rígidos e tradicionais de família. Uma mulher é um universo complexo para além de mãe culpada e esposa submissa. E isso Lucia faz ao aprofundar aspectos íntimos de cada personagem em cada conto.

Não há impotência nos personagens. Talvez uma entrega distante do que se espera de uma mulher (e de alguns homens) capaz de afetar com quem as mulheres se relacionam, e capaz, assim, de alcançar o personagem do conto seguinte, entrelaçando contos, e mantendo ritmo.

As mulheres de Berlin existem para além da história da escritora. E inescapavelmente são todos os nós na coluna de Lucia, todos os goles sofridos e delírios abstinentes, são todos os questionamentos maternos e agressões familiares, são todas as vezes que ela experimentou culturas diversas e racismos inimagináveis. As mulheres de Lucia são todos os empregos marcados por cansaço e submissão que Lucia viveu, mas também os lugares construtores de experiência e modos de sobreviver.

É da medula do passado e da palavra que a escritora permite om que suas muitas narradoras sobrevivam.

Talvez não seja uma coisa tão perigosa assim, deixar o passado entrar como o prefácio ‘E se?’”

Pelos dedos de Berlin, uma fruta torna-se uma declaração de amor. Com dedos afiados, a autora extrai da medula da palavra “vômito e ódio”, riso e pavor, apresentando uma mulher sozinha e grávida numa clínica de aborto, que resolve pela vida do filho, antes de chegaram à casa de um tio conservador, na véspera do natal.

As personagens buscam arrancar o sentido do mundo em que vivem através da palavra e do afeto, pelo contato com o outro: homem ou mulher, pai senil ou filho morto, freira comunista ou aluno-problema. As mulheres que se defendem do mundo oferecendo de volta o que não podem deixar de ser: potência.

Quando os narradores (poucos) são homens é o contato com curiosas e potentes figuras femininas que os emancipam de condições mesquinhas de sua masculinidade. Um advogado afeiçoa-se ao sistema relacional de Jesse e Carlotta, enquanto sua esposa o trai. E apenas essa relação furiosa e apaixonada de Jesse e Carlotta abre caminhos para seu afeto.

A independência das mulheres, como autonomia de apenas existir, é uma tentativa diária, na ficção presente nos contos, a cada linha. Cada parágrafo, um dia. Cada parágrafo, uma vida.

Os homens dominam com machismos enraizados em várias nacionalidades (alemães, americanos do Texas, russos, mexicanos, chilenos), mas sua existência permanece periférica, inclusive na mesquinharia de suas violências. São as mulheres que residem o núcleo dos contos.

Cada conto, uma mulher.

Os detalhes descritivos são narrados aparentemente pela mesma voz narrativa em todos os textos, mas não se trata da mesma mulher. Particularidades da rotina de personagens comuns deixam escapar (com destreza e vida) dores distintas.

Cada mulher, muitas dores.

Assim, todos os contos (longos e curtos) são narrados por alguém que é antes de tudo, um observadora. São narrativas que partem, muitas vezes, de recordações, a infância e os assédios vividos de várias formas, a reabilitação em clínica para dependência de álcool, violência racial e a morte da dignidade, a pobreza, a fome. E a beleza, por incrível que pareça.

Todas as dores, a cada linha, a cada conto, andam de mãos dadas, olhos abertos, dedos ágeis, com um humor corrosivo. E todas as mulheres e suas dores mordidas no corpo alimentam um elo entre os femininos. A cumplicidade o que as inunda, sempre íntimas. O que as une é o que as torna as mesmas: “A amizade entre elas começou entre os livros, em suas casas vazias”.

A primeira mulher do primeiro conto comunica-se, estranhamente, com a última mulher, antes da morte, conclusiva e retórica, do derradeiro conto. E assim todos os contos amarram-se nos seguintes e nos primeiros e últimos. Cada uma delas, das mulheres, em cada uma de suas vidas, os contos, reinventa a vida de quem as escreve. E assim afetam-se, apaixonadas e esperançosas.

A palavra é travessia, nos contos de Berlin. E a dor, uma saída.

Há uma personagem que se manifesta com olhos sensíveis que limpam vestígios das mortes que ocorrem na casa. É uma mulher que limpa casas e encontra segredos e se livra dos pertences de uma morte e sua família em luto, em duas horas.  São personagens absortas na simplicidade do cotidiano e capazes de atos inesperados e lições encantadoras.

As personagens nos contos de Berlin tinham tudo para ser grotescas e duras. Algumas delas dizem isso sobre si. No entanto, a singularidade com que enxergam a profundidade do que sentem transforma todas as relações que experimentam.

Cada conto, uma mulher. Com muitos casamentos, ou sozinha. Com quatro filhos crescidos, ou grávida. Dona de si ou perdida e sem rumo. Alcoolizada, em crises de abstinência. As feridas abrindo-lhe caminhos e jeitos de ser. Mulheres, a cada linha, abrindo mistérios que pareciam insolúveis, sobre os países onde vivem, sobre as violências que desobedecem sua coragem.

Como ela poderia falar com Sally sobre seu alcoolismo? Não era como falar sobre uma morte ou sobre perder um marido, perder um seio. As pessoas diziam que alcoolismo era uma doença, mas ninguém a forçava a beber. Eu tenho uma doença fatal. Estou apavorada, Dolores queria dizer, mas não disse.” Pág. 230

Outros contos são apresentados com profundidade e humor: A mulher com a droga penetrada no corpo, dentro de uma camisinha. Preocupada com o filho e com o vício do companheiro, não consegue se comunicar em inglês, suas ideias chegam em espanhol. A mulher, amante, mula e corajosa. Quebra a vida do filho que não sobrevive. E encontra a generosidade de um homem que não entende o que ela diz.

Lucia Berlin apresenta temas permeados de violência e religiosidade, conflitos de classe e gênero, decadências e frustrações. São mulheres envolvidas com alcoolismo, mulheres detidas, ameaçadas, mulheres julgadas e subjugadas, com suas crianças nos braços, mulheres sem-teto, mulheres a caminho da penitenciária. Mulheres que escrevem ficção, que ensinam ficção, que resistem, buscando entender o espaço que ocupam no próprio corpo, buscando entender o caos que reside fora dele. São mulheres intensas, apaixonadas e contemplativas, que agem e se manifestam pelas vias do afeto e tem em seus atos de amor e dor uma travessia.

A expressão de tristeza no rosto de Mark, a mesma que vi mais tarde no rosto de todos os meus filhos no decorrer da vida deles. Uma ferida causada por um acidente, um divórcio, um fracasso. A ferocidade da minha ânsia de protegê-los. A minha impotência”. Pág. 285

A mulher que sacode o filho que ama e não para de chorar, agora convive com sua morte é também a mulher rotulada com bêbada e, portanto, irresponsável. A mulher que deixa o homem escapar, porque ela não presta. A mulher que deixa o carro descer ladeira abaixo e quase matar transeuntes. E é acusada pelo cheiro de álcool. A mulher levada a julgamento por defender o namorado. A mulher cumprindo pena e escrevendo contos. A mulher que se compadece da mãe cruel e que tornar-se uma mãe que não foge.

O que Lucia faz é exatamente o que uma professora, em um dos contos, numa aula de escrita, diz ao seus alunos presidiários: “Então, o que eu quero são duas ou três páginas conduzindo a um cadáver. Não nos mostrem o cadáver em si. Não nos digam que vai haver um cadáver.”

Lucia conta o que há fora (o caso e a violência) pelo que acontece dentro (a inexorabilidade do tempo, a travessia da dor, a instabilidade da paixão, os despedaçamentos que a morte oferece, as margens amadurecidas de mulheres que poderiam ser vistas como frágeis).

Para Nabokov, em “Lições de Literatura”, um escritor de talento é o que reinventa o mundo, é o escritor  que “não dispõe de valores pré-fabricados: ele próprio precisa criá-los.”  Para o autor, a arte da escrita implica “a arte de ver o mundo como uma ficção potencial”.

É o que se vê em Lucia Berlin. Não é possível limitar-se a buscar a vida real em seus contos, embora seja possível arriscar que sua vida é retratada, de alguma forma nesses contos. Não retratada como arroubos autobiográficos (o que não seria um problema). Mas a originalidade como é narrada, desconstruindo como as experiências de mulheres violentadas física, emocional e afetivamente são vividas no mundo real.  A cada linha, uma dor. A cada mulher, muitas Lucias.

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Manual da faxineira, de Lucia Berlin (Companhia das Letras, 535 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário. Colabora com a São Paulo Review 

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