* Por Raimundo Neto *

No início do filme Koyaanisqatsi (Godfrey Reggio, 1982), a música de Philip Glass faz-se profunda, movimentos de profecia anunciada; um coro de vozes graves canta junto a cenas que revelam pinturas ancestrais rupestres para, em seguida, contemplarmos o enquadramento de uma cena em que o foguete Saturno V é lançado. Depois, um deserto se abre na tela, orgânico, e a música de Philip Glass compõe com as cenas da natureza perdendo espaço para o crescimento das cidades e seus carros, indústrias e luzes, um tipo de poema sinfônico. A música de Philip Glass amarra-se generosamente ao coro grave que canta koyaanisqatsi, palavra nascida na língua Hopi (comunidade indígena do noroeste do Arizona ), que significa algo como “um estado de vida que pede outra maneira de viver”.

Os poemas de “Agora vai ser assim”, de Leonardo Tonus, em um dos versos de “Ich denke”, fazem uma referência ao filme de Godfrey Reggio e à música de Philip Glass, sugerindo que o tema “A vida fora do eixo natural (…) destruidora vida amendrontada” (pág 65) se abrirá em carne e sangue no corpo do livro.

I – “Koyaanisqatsi” [1]

As unidades que compõem o livro insinuam temas que tratam de vidas que sofrem desastres, ao tempo que esperam que a “palavra sem-lugar” (pág 86) seja morada fora do mundo, aproveitando “cada passo, como se fosse o último/ casa hora, como se fosse a última” como um “infinito (re)começo” de muitos caminhos.

Os poemas escritos por Leonardo Tonus – professor de literatura na Universidade Sorbonne, de Paris e criador do Printemps Littéraire Brésilien, que acontece em diversos países do hemisfério Norte -, elevam-se sem compor categorias, sem sugerir que há um único caminho partindo da tristeza e nos levando à alegria, numa linha óbvia e reta, como se a vida fosse composta por dualidades assim tão práticas. Não. Os sentidos do eu poético no livro contam enfrentamentos antigos e sempre renovados, dos porões dos navios soterrando escravos no mar a genocídios noticiados e outros tantos diários que vemos e assumimos “horror suspenso”.

De “um (estado) pouco alegre” a moderações de uma esperança cantável capaz de “brincadeiras animadas”, os poemas de Leonardo Tonus escrevem catástrofes íntimas indissociáveis do que vemos cotidianamente: mulheres, negros, gays, nordestinos, imigrantes, judeus, discriminados, mortos, demolidos, soterrados.

II – “Vessels”

Os poemas estão pincelados de sons de outras línguas: inglês, italiano, alemão, grego. Na primeira leitura, uma dúvida incomodada reluz seus pedaços; só na segunda e terceira leituras senti que não são apenas idiomas; as palavras tornam-se melodias, e por mais que eu buscasse traduções, as melodias das palavras cantavam mais que os sentidos dados. No poema “Estar-em-comum”, os versos desabrocham a reflexão de que é na “hospitalidade da língua” (pág 16) que podemos acolher “o outro que não conhecemos”. As peculiaridades dos estrangeiros, que são todos os que vivem para além do que somos, estão acolhidas nos poemas.

A identidade constrói seus significados também pela língua que somos, então também é assim com a Alteridade. Foi pensando nisso que novamente refleti sobre a referência ao filme Koyaanisqatsi e à trilha sonora de Philip Glass: a narrativa inteira é a composição indissociável de música e cena, num hipnotizante poema sinfônico, ininterrupto. A câmera aprofunda a vida que vemos todos os dias e entendemos, repetidos, que não há nada tão grande ali; porém, é a potência das sinfonias de Glass que traz aos sentidos as possibilidades de mudança. Alguns poemas de Leonardo também, sinfônicos e doloridos.

III – “Cloudscape”

A escuridão presente no livro traz a possibilidade de reinvenções de saídas: como escapar de tudo que vivemos, massacres e maldades, se não olhando para obscuridades e resgatando imensidões condenadas por preconceitos e intolerância?

Lágrimas de mulheres violentadas, negros assassinados, gays massacrados, nordestinos humilhados, imigrantes desprezados: todos gritam socorro; sons de uma aparente “travessia inútil”, entretanto, a cada próximo poema, o terror das iniquidades se abre, a cada verso, e as existências repletas de presenças luminosas e fé indicam que a salvação está no afeto.

IV – “Pruit Igoe”

Em um dos versos, imigrantes clandestinos encontram desembarques incansáveis nos olhos do eu lírico que narra ou no coração da poesia que existe por si, nesses lugares do autor que não consegue narrar sem lembrar os assombros e horrores de abusos e tantas crueldades.

Os versos terminam em sons fechados, encerrando sentidos e sem reduzir a amplitude de todas as imagens potentes.

Os temas compostos no livro vão do estupro ao racismo, naufrágios e cidades soterradas de areia e lama. De um verso a outro há um “silêncio-soco” (pág 14) esperando a demolição do fôlego ser interrompida, como se houvesse a possibilidade de algo fora do livro respirar e sobreviver para além do que está escrito.

V – “The Grid”

A leitura de “Agora vai ser assim” nos faz pensar que atos políticos não estão deslocados de atos poéticos. É político enxergar a humanidade dos outros e outras massacradas e massacrados por serem língua, cor, gênero, deslocamento. Em alguns versos, gritos levantam seus punhos sem erguer bandeiras, numa revolta incapaz de continuar aceitando perdas silenciadas.

As mulheres e homens contados nos poemas reclamam distância e saudade, conjugando-se ao acolher “o outro que desconhecem”. A alteridade, presente nos elementos poéticos dissolve-se nas malhas costuradas por Tonus. Dissolver para integrar, dar corpo com detalhes, encarnando potência e estética, como se apenas no(a) outro(a) residisse uma possibilidade de irmos adiante.

Há uma existência no livro, essa que tenho chamado de eu poético, com um olhar aguçado, observando em câmera lenta e íntima, as diferenças e particularidades de mulheres, negros, gays, nordestinos, judeus, imigrantes, buscando a narrativa de um texto e uma estética de corpos que já nascem ruínas. Eu nomeio como “indicadores de deslocamentos” tanto as línguas como os corpos que talvez sejam diferentes do eu poético.

São palavras em outros línguas que marcam os títulos e as partes do livros: inglês, italiano, grego, alemão, de Alepo a Ruanda, corpos feitos pó e mortos que nem bicho (“baratas”), por facadas e machadadas, indigentes descampados e sempre silenciados. O sujeito poético recolhe-se em uma solidão-silêncio, reconhecendo a insuficiência de sua revolta inconformada, e ao reconhecer o lugar onde vive, compreende a gravidade de absurdos e injustiças que assassinam pessoas e seus países e seus corpos divergentes.

VI – “Prophecies”

Ao buscar Outros e Outras e encontrar a vulnerabilidade de seus corpos em risco, Leonardo Tonus escreve um Eu poético que, aos poucos (a cada estrofe), parece arranjar-se em outras identidades caminhando de mãos dadas para um Nós poético: para que “sejamos um refúgio de um mundo refugo”. (pág 38).

A identificação possível do eu narrativo busca nesse reconhecimento do Outro pontos de estranhamento e também similaridades; desses pontos, ele traça encontros numa proposta poética capaz de estimular exercícios de alteridade. É ao se reconhecer no Outro, que o eu poético elabora essa narrativa repleta de “palavra reduzida a pó/sufocará/a indiferença/os ditadores/as balas/a fome” (pág 48), não como vingança, e, sim como ato político, ato de amor que protege.

Leonardo Tônus não perde sua voz poética ao escrever versos de potência política nos poemas de “Agora vai ser assim”; as línguas habitantes no livro dizem tanto e sobrevivem, mesmo que a esperança permaneça sem casa, estrangeira e indigente.

E como no filme Koyaanisqatsi (“um estado de vida que pede outra maneira de viver”) e a trilha poética de Philip Glass, o livro começa como termina: profético.

[1] Os nomes dos subtítulos são as faixas da trilha original, de 1983, composta por Philipp Glass para o filme Koyaanisqatsi.

*

Agora vai ser assim, de Leonardo Tonus (Editora Nós, 86 págs.)

*

Raimundo Neto é escritor e crítico literário

Imagem: foto de refugiados chegando à França em 2015

agora-vai-ser-assim_capa_site

Tags: