Apontamentos sobre a literatura brasileira publicada na França

IMG_3278

Por Eliézer Rodrigues  e Horácio Dib * 

Fundada em 2009 por Paula Anacaona, a Edições Anacaona é uma editora independente francesa com catálogo composto predominantemente de uma literatura que gira em torno do excluído – literatura feita pelas minorias, raciais ou sócio-econômica, que sublinha e enfoca o folclore, as histórias, os olhares e as maneiras quase esquecidas de observar o mundo.

Num mundo em que a literatura brasileira é conhecida unicamente por suas obras clássicas ou vendida como um produto exótico, a Edições Anacaona se destaca com uma projeção feroz e sensível de um Brasil visto de dentro para fora, impiedosamente verdadeiro.

Foge ao olhar centralizado do eixo Rio-São Paulo e abriga-se nas margens sociais e, mais ainda, nas margens das margens do Brasil. Essa postura é fulcral para a disseminação da nova literatura brasileira, na França ainda desconhecida pelo olhar estrangeiro, mostrando a pluralidade de “Brasis”, de histórias e de ritmos. Leia a seguir entrevista com a fundadora da ‘maison’, Paula.

Quando e como surgiu as edições “Anacaona”? A primeira obra traduzida era cobiçada antes mesmo da criação da editora? Começou com Manual Prático do Ódio (Ferréz), em 2009. Foi com esse romance (magistral) que me lancei. A leitura desse livro foi pra mim um eletrochoque. Em princípio, pelos temas abordados: é um romance social, um mergulho nas ruas das favelas, em seu cotidiano, sua violência, seu desespero. Nesse sentido, isso me lembrou os grandes escritores afro-americanos dos anos 70… Iceberg Slim, Chester Hymes etc. Além disso, na época, estava apaixonada pela escrita do Ferréz – e sua personalidade. Ele e os outros autores que o sucederam fazem uma ‘literatura de rua’, feita pelos excluídos para os excluídos. Ao meu ver, uma literatura verdadeiramente urbana, que não rejeita completamente as bases da escrita clássica, mas as moderniza. Eu me explico: no livro você tem por vezes uma escrita muito convencional, descritiva, narrativa, com fugas líricas excessivamente poéticas. E, depois, no parágrafo seguinte, dois personagens que conversam usando gírias e expressões regionais. Adoro essa mistura. Em seguida, tive vontade de continuar por esta via, com Eu sou favela Retrospectivamente, posso dizer que é com este segundo livro que as edições Anacaona verdadeiramente começaram. Eu não era editora de um livro só. Já começava a construir uma trama editorial, uma imagem de marca; criando ligações com certos autores (Carrascoza, Ciriaco, Aquino…) que eu encontrei na sequência. Eu sou favela me trouxe reconhecimento e me abriu as portas do mercado editorial brasileiro.

Como se deu a escolha do Brasil e do português como materiais de trabalho? Existe alguma meta ou objetivo nessa escolha? Há traduções para outras línguas que não o francês? Como constantemente na vida, as coisas são feitas um pouco ao acaso… Ou será que nós provocamos o acaso? É um vasto debate! Comecei a traduzir os livros com a minha tia Inô. Não tinha a força necessária para traduzir um livro inteiro sozinha. Nós aprendemos muito juntas : nós nos ajudávamos mutualmente – o que reforçava nossa amizade – e nós fizemos várias traduções à quatro mãos. Uma experiência inesquecível. E então chegou o dia em que senti que não precisava mais da minha muleta. Podia voar com minhas próprias asas. Apesar disso, eu envio regularmente pequenas mensagens : ‘Tia, como você entende essa frase? Isso quer dizer o quê?’. A tradução é um trabalho solitário, porém, é útil ter colegas ou uma tia querida. Na literatura, nesse instante, eu só traduzo do português – mesmo que para ganhar minha vida eu traduza igualmente do inglês documentos mais técnicos. Mas na literatura, existem tantas coisas a se fazer com o Brasil… Eu continuo focada lá – quanto mais nos dispersarmos, mais perdemos em produtividade. Enfim, creio que há um nicho de literatura brasileira na França. Ela é ainda pouco traduzida, logo tenho uma grande liberdade. Confio no fato de que um dia, ela explodirá. Nós nos lembramos sempre do boom da literatura escandinava há alguns anos atrás, com a trilogia Millenium. Seguindo-a, dezenas de outros autores foram para a estante. Espero o ‘boom brasileiro’. Um dia, chegará também. E então estarei bem colocada… como no jogo de xadrez, posicionei todas as minha peças.

Hoje, sendo a editora já consolidada, como acontece o processo de seleção de obras para tradução? Não há precisamente nenhum processo pré-definido de seleção de obras. Eu me deixo guiar pelas minhas paixões. Talvez fosse melhor ter um processo mais ‘quadrado’, refletir em termos de venda, dos leitores. Mas não me encontro ainda nessa situação. Para ser honesta, faço de certa forma um processo – tendo em vista que eu leio muito mais livros do que público, é necessário que faça escolhas. Por exemplo, após ter publicado meus três primeiros livros Manual Prático da Ódio Eu sou Favela, mesmo havendo outros livros em torno dessa temática periferia/marginalidade que me interessavam, eu tive vontade de mudar de ambiente para mostrar outra coisa aos leitores. Isso não vai me impedir retornar o quanto antes à temática anterior. Peço com frequência a opinião dos leitores em que tenho confiança. E também o faço com a minha mãe… a voz da razão! Anacaona continua muito artesanal.

Quais as maiores dificuldades que uma casa de edições independente encontra em sua promoção? Essas dificuldades aumentam pelo fato de trabalhar com obras contemporâneas brasileiras ou há facilidade graças à recente propagação do Brasil para resto do mundo com a Copa e as revoltas sociais? O mais difícil é a difusão e a distribuição. Pois uma vez que você fez seu livro, eu diria que você fez o mais fácil. Em todo caso, você só fez metade do trabalho. A outra metade… é difundir, distribuir, vender o livro. Primeiramente, para não ficar no vermelho, isso é óbvio, mas também pelo respeito pela obra. Quando você é persuadido pelo talento de um autor, você não quer que ele seja lido por algumas centenas de pessoas. Você quer que a França inteira o leia! Mas como fazer com as pessoas o conheçam? Você sabe quantos livros são publicados todos os anos na França? 80 000 obras, das quais 19 000 em literatura! Isso faz, então, 1583 livros de literatura por mês. Eu sei, por exemplo, que as grandes redações de revistas recebem 600 livros por mês em serviço de impressa. Evidentemente, 99% vai para diretamente pro lixo. Como fazer para se distinguir nas mídias entre toda essa produção? Como fazer para se distinguir entre as livrarias? As grandes editoras tem seus serviços de imprensa, seus serviços de distribuição e são, logicamente, delas que se fala. É David contra Golias. Felizmente, a resistência se organiza. Mas nós não ganhamos ainda. Quanto a segunda parte de sua questão: acredito que o Brasil conseguiu nesses últimos anos a se impor na cena econômica mundial. As pessoas, em geral, reviram mais ou menos a crença de que o Brasil era um país de “terceiro-mundo”, um país “do futuro” (uma fórmula que me exaspera). Por outro lado, para o leitor francês comum, o Brasil ainda não é uma terra de escritores. Os alemães, por exemplo, leem muito mais autores brasileiros. Os franceses são conhecidos por serem muito reticentes. Mas tenho uma grande esperança de que o “Salão do Livro 2015” mudará esse quadro.

Apesar dos cânones brasileiros possuírem mais popularidade internacionalmente, a editora opta por trazer uma literatura menos conhecida. Qual é a sua visão do panorama da Literatura Brasileira na França? Há uma aposta no contemporâneo? Publicar um autor ‘clássico’ falecido é, de maneira geral, bastante complicado e há entre as obras brasileiras traduzidas na França uma grande maioria de contemporâneos. Michel Laub, Sergio Rodrigues, Adriana Lisboa, Ruffato, Garcia-Roza, etc. são publicados por outras editoras. Criarei no início de 2015 uma nova coleção, chamada ‘Época’, que será justamente fundada na literatura contemporânea. Há uma tal produção no Brasil que eu me sentia limitada com a minha coleção urbana (em que eu não podia me distanciar muito das temáticas urbanas). Nela eu terei uma grande liberdade. Além disso, tenho muitas ideias e projetos para esta coleção.

Mais do que apresentar obras contemporâneas, a editora propõe um retrato não só do centro “São Paulo” e “Rio de Janeiro”, mas também o Amazonas e o Nordeste, mostrando um Brasil em sua totalidade e não apenas em seu eixo econômico. Existe uma preocupação na seleção de obras de maneira que todos os estados brasileiros tenham igual destaque? Com toda franqueza, não. Além disso, não sou patrocinada pelo Brasil, então não tenho nenhuma obrigação. É verdade que ser independente tem também suas vantagens – a gente faz o que quer. Acontece que me interessei pelo livro de Marçal Aquino, Eu receberia as piores noticias de seus lindos lábios sobre a Amazônia, mesmo que pessoalmente conheça muito pouco desta região. O Nordeste, é diferente, é uma verdadeira paixão para mim, adoro a região, então publicar seus livros era evidente. Por exemplo, ainda não publiquei livros sobre o sul do Brasil. Se eu me interesso por um livro desse lugar, claro que eu tentarei publicá-lo. Mas não tenho nenhuma obrigação a encontrar um livro dessa região por uma questão de representatividade, você entende o que eu quero dizer?

A editora possui algum público alvo? As obras ultrapassam os muros da universidade e atingem o país como um todo? Isso é muito complicado de avaliar. Globalmente, não sei quem são os meus leitores. Recebo pedidos de livrarias sem saber o nome do cliente. Nos festivais, ali tudo bem, encontra-se o público, mas isso é minoria. Então, sim, meu público vai além das universidades (felizmente!), mas só sei isso. Trabalho isso na internet, então eles me conhecem muitas vezes desta forma. Percebo que os leitores da Anacaona são muito fiéis; frequentemente, não leem apenas um livro Anacaona, mas vários. Como é uma aventura que se constrói pouco a pouco, eu sinto que os leitores me seguem à medida das minhas paixões. Eu encontrei, muitas vezes, quem me dissesse ter adorado o Manual, depois ter tentado Eu sou favela, tornar-se adicto, e ter mergulhado uma vez mais em Eu ainda sou favela… O mesmo fenômeno se produz com Menino de engenho (José Lins do Rego), O quinze (Rachel de Queiroz), A história de Bernarda Soledade – A tigre do sertão (Raimundo Carrero) Percebi, entretanto, uma divisão muito clara entre os leitores da coleção ‘Urbana’ e os da coleção ‘Terra’. Eu não tenho certeza de que os leitores de uma sejam também da outra e vice-versa. Espero unir todos com coleção ‘Época’.

A editora está envolvida com o “Salon du Livre 2015”? O salão trará resultados positivos para a propagação da literatura brasileira na França? Sim, seguramente aguardo com impaciência o Salão do Livro. Evidentemente, isso só tem a beneficiar a literatura brasileira na França, sem duvida alguma. Em revanche, o que todos nós desejamos é que este interesse perdure e não recaia como um sopro. É preciso que o Brasil deixe de “estar na moda”. Eu gostaria que a literatura brasileira fosse seguida pelas criticas da imprensa, as mídias, de maneira regular, assim como a literatura americana e argentina são seguidas regularmente. Por que as mídias só se interessam pelo Brasil quando há operações policiais na favela, nas Olimpíadas, na Copa do Mundo, no Salão do livro? Então nos será preciso manter o Brasil em evidência. Mas acredito que os organizadores do Salão o compreenderam bem e vão fazer de tudo para suscitar o interesse na literatura brasileira ao menos durante todo o ano de 2015 – e não somente em março.

Além da participação no “Salon du Livre”, há outros eventos em que a editora participa ou promove? Fui pela primeira vez este ano ao Salon Etonnants Voyageurs, em Saint Malo, que tinha convidado, por exemplo, uma dezena de autores brasileiros. Foi uma descoberta que eu espero poder reproduzir. Lá, encontrei um público que não conhecia e que se mostrou muito interessado pela literatura brasileira. Para dizer a verdade, muito interessado e desconhecedor no que diz respeito à literatura brasileira. Nós tentamos durante o ano ir também a outros festivais que falem do Brasil.  Trabalho com algumas livrarias estratégicas que gostam dos meus projetos, as universidades… um trabalho de formiga.

Teríamos a chance de conhecer os projetos ou obras futuras que as Edições Anacaona trará para seu público? Isso é super-ultra-secreto. Teremos muitas novidades, em todos os estilos. Descubram-nas no site: www.anacaona.fr.

*

Eliézer Rodrigues é graduando em Letras (Português-Francês) pela Universidade de São Paulo. Participa do projeto de intercâmbio PLI (Programa de Licenciatura Internacional) com a Université Paris-Sorbonne, colabora para o Blog Études Lusophones e gere as páginas “Editora Pirata” e “Feridas Lexicais”

Horácio Dib é graduando em Letras (Português-Francês) pela Universidade Estadual Paulista. Participa do projeto de intercâmbio PLI (Programa de Licenciatura Internacional) com a Université Paris-Sorbonne e colabora para o Blog Études Lusophones

Tags: , , ,