Baldado

* Por Rogério Duarte *

Remanso de tudo, mas apenas por um instante: a distensão aconchegada, adiada até a imersão nas profundezas invisitáveis. Este projeto malfadado de interromper os fluxos. Prefiro cortar a energia e aderir aos ciclos, abandonar-me à mouquidão, às roupas desalinhadas, à resignação singela dos anônimos do tempo. Vibra nas minhas mãos um punhado de terra esfarinhada, que eu cultivo silenciado das coisas da vida.

A esplendecência das luzes: tenho as mãos erguidas, bato as palmas que me ordena o conselheiro sorridente. Seus olhos espelham a todos nós, ele nos fita denodado, como se desafiasse, Somos todos um irmanados nas minhas confecções, tramadas num momento de simpatia e estrela, e nos ordena que aplaudamos, As saudações ao legítimo superior que encarnei num lance afortunado, e o corpo coleia, os quadris meneiam a libido, é o êxtase, Aqui não existe tempo, ínferos levianos, aqui jazemos entre notas de acordes, num instante infinitesimal de vibração que eu mesmo criei, senhores, entre estas notas pulso eu – e rodopia, e salta, o sorriso afrontoso diz ainda mais, Não obedeço a ninguém, miseráveis, e lhe fagulham os olhos, a voz é ingente e rezingada, errosa, malsã e fulgente – este mafarrico travestido e dançarino, este tinhoso que confiscou os passados desta gente que aplaude e imita.

A ominosa habilidade de alinhavar a brandura da palma da mão, que tocou a minha pela primeira vez, num inédito de afeição, à efusão epigástrica de todos os primeiros beijos. A apuração rigorosa das distâncias e da força despendida num golpe preciso, celebrado das multidões, cerzida à elevação da voz nas horas extremas. O átimo que emancipa, nas caminhadas noturnas: as liberdades extremas, os limites difusos, empurrados. (Há uma criança de expressão prisca que fala grosso, maltrata a audiência, há um palhaço descaracterizado, de nariz comprido, que não ri: as personagens malfazejas ocupam os breves interstícios deste ambiente viciado, e aplaudimos). Num golpe de sorte, o conselheiro arrebatou estas primeiras memórias e as depositou num silo de três minutos, e as vendeu todas na feira das compulsões.

Brado aos circunstantes, com restos e fragmentos de memória nas mãos, que é preciso interromper os fluxos, as correntes, estender o silêncio, mas tudo que eles veem é o espetacular teatrinho das memórias num número aplainado. Imerso na sementeira dos rostos fiéis e congêneres, não corro riscos, por isso dou as costas ao palco, inverto o sentido das minhas passadas intensas, recuso-me a abrir as caixas guardadas: tenho de envelhecer agora. Mas o tinhoso me arrasta como onda de ressaca, arrasta-nos a todos, Celebremos a nossa época de ouro, a mais luzidia de todas, Viva a fotografia exata do meu único gesto vivo, que ela se repita, e se reproduza, e me reduza, quero ser outra coisa, e a mesma, Aqui eu parei, aqui eu fiquei, aqui jazerei, Atribuo onipotente a vida a este corpo que eu toco, em todos os tempos, em todos os lugares, Aspiro ao cheiro do plástico que transcende.

Resta abandonar-me às projeções de luz vermelha, deixo-me cegar pelos flashes, as fotos intermináveis, as lanternas aos milhares pontilham olhos perversos, os acordes me vibram no corpo e agora suingo desajeitado, como se conhecesse rituais avoengos, como se incorporasse xamãs – e afloram fetiches atávicos que eu sequer conhecia, a revivescência das cinturas. No altar particular, um anjo desajeitado de voz fina tem olheiras, Orfeu empunhando uma espada. O conselheiro abre os braços, e profana as chagas, e abre asas monstruosas, e declara: sou jovem para sempre.

À meia-noite aziaga sento-me exausto no chão: o ar está pesado de poeira e suor, e abro espaço entre guimbas, pontas e garrafas que não são minhas. Interrompo embalde a defluxão dos sentidos e dos espíritos, e encadeio uma oração à minha maneira, esta, que eu não me deixe manar, que as palavras assim sejam, que a memória se corporifique num átimo e desapareça, que valha o silêncio.

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Rogério Duarte é professor de Língua e Literatura há 26 anos. Como escritor, publicou Carta ao Meu Pai (Editora Chiado, 2017) e Contos de Elevação e Desapontamento (Editora Scortecci, 2019). Atualmente, é Secretário Geral da União Brasileira de Escritores.

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Obra ilustrativa: Escultura viva (1966), de Marisa Merz.

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