* Por Mário Coutinho *

In the room, the women come and go, talking of Michelangelo.”

Na sala as damas dão olá e alô,
o assunto agora é Michelangelo.”

Novas edições (e mil visões e revisões) vêm e vão, o assunto agora é tradução, e o entrevistado de hoje é Caetano Galindo, professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná, tradutor galardeado com todos os prêmios que você possa imaginar (prêmio da APCA em 2012 e 2014, prêmio da ABL em 2012 e o Jabuti em 2013), Caetano foi elencado como um dos 100 brasileiros mais influentes em 2012 pela revista Época. Eu já suspeitava que apesar de tudo isso ele fosse também um sujeito bastante cortês, ao aceitar conceder uma entrevista a esse jovem escrevinhador ele apenas confirmou minhas suspeitas.

Caetano, boa tarde! Já sou seu admirador de longa data e apenas agora tive a chance de te convidar para um papo. Eu gostaria que o você nos contasse um pouco de sua trajetória e como você foi da linguística para a tradução ou da tradução para a linguística. Opa, boa tarde, Mário. Então. Eu entrei no curso de letras querendo virar escritor (santa ingenuidade) mas de cara me encantei pela linguística. Fiz meu mestrado nessa área e, logo na época de começar o doutorado, ia também ficar pela linguística histórica. Mas eu me separei, não quis deixar minha filha aqui, e acabei desistindo de uma bolsa na Alemanha. Com isso, troquei de projeto, troquei de área, e me decidi por um projeto meio de fronteira, de análise do discurso do Ulysses. O doutorado incluiu já a tradução integral do romance. A partir daí, nos últimos 15 anos fui me dedicando cada vez mais à tradução.

Ainda que existam exceções, como você e meu ex-orientador, Mário Eduardo Viaro (que tem uma vasta cultura literária), existe no meio acadêmico uma cisão entre os que pesquisam linguística quem pesquisa literatura. Como você vê essa cisão? E como você equilibra os trabalhos nas duas áreas? Eu acho limitador. Sou formado em Letras, com maiúscula, e acho que me define esse pertencimento às duas áreas. Sempre me entristece ver um aluno de segundo ano dizendo ‘eu sou da literatura’ ou ‘eu sou da linguística’. Perde-se muito com essa divisão tão radical assim tão cedo. Pra mim sempre foi ambíguo. Eu sempre me interessei não apenas pelos dois campos, mas tambémpela grande área ‘comum’ entre eles. Daí, talvez, ter acabado na tradução. Hoje minha atuação profissional na linguística (histórica) é só na graduação. Na pós eu estou no programa de literatura, na tradução literária.

Agora um aspecto mais pragmático, o que te levou a traduzir Joyce? Sou um leitor muito veloz e muito leviano. Sabia que queria ler o Ulysses, mas sabia que o livro demandaria mais disciplina. Naquele momento meio ‘às favas’ que se seguiu ao meu abandono do projeto do doutorado na Alemanha (sobre formação do vocabulário do romeno no século XVI), eu decidi me dedicar de vez a esse livro, e traduzi-lo todo me parecia uma etapa necessária da minha tentativa de compreendê-lo (duas ênclises!). Sem contar que eu tinha muito vívida na minha cabeça a lembrança de uma conversa com uma colega em que ela reclamava que, já no terceiro ano de doutorado, não suportava mais o escritor que era tema da tese. Pensei em escolher um negócio que eu não pudesse ‘exaurir’ em quatro anos. E, rapaz… como eu acertei no palpite!

Esses dias eu estava em uma livraria e peguei o livro Joyce era louco? (Ateliê) do Donaldo Schüler e disse para um amigo meu ‘louco é o Donaldo de traduzir Joyce e ainda mais o Finnegans’. Você passou dez anos com o Ulysses e pode responder melhor do que ninguém: existealgum grau de ‘loucura ideal’ para traduzir Joyce? Não… Existe é um grau de húbris, como diriam os gregos. Uma mistura de coragem, pretensão, vaidade e irresponsabilidade! Existe loucura num sentido bem largo (mas eu tendo a ser cuidadoso com essa palavra), existe doideira, existe abuso, existe piração, pra ficar num vocabulário que deve meio que delatar a minha idade. E pra isso ele exige que o tradutor ou a tradutora também estejam à altura. É preciso um grau de liberdade e de invenção que tende a não ser comum no trabalho com outros romances.

Existe aquela famosa afirmação do C.G. Jung (que se não me engano até o Donaldo cita no livro), de que o Joyce e a Lucia (filha dele, com diagnóstico, depois, de esquizofrenia) estavam no mesmo rio, mas que onde ele nadava ela afundava… Acho interessante, mas, se tanto, trata-se de uma incrível afirmação de sanidade, pro Joyce. Ele tinha uma lucidez tão grande que podia até entrar nesse rio e sair incólume. Se a gente pensar naquela expressão do Polônio, no Hamlet, de que ‘há método em sua loucura’, o negócio com o Joyce é que nele é tudo método, tudo metodismo, até ‘a loucura’.

Você já traduziu Dublinenses, Um retrato do artista quando jovem, Ulysses e Finn’s Hotel (todos pela Penguin-Companhia das letras), existem planos para traduzir Finnegans WakeA resposta curta é ‘Sim’. Devo entregar pra Companhia das Letras agora no começo doano o volume com Exiles (a única peça de teatro que restou) e os dois livros de poesia do Joyce. Com isso fica me faltando apenas o Wake, com que eu já venho lidando aos poucos há vários anos.

Uma questão que aproxima Joyce e Eliot é o chamado método mítico, o desafio maior está em traduzir esses autores ou na pesquisa inerente até mesmo à leitura desses autores? Bom… a pesquisa foram eles que fizeram. E, especialmente no caso de Eliot, eles até te entregam de bandeja os resultados dessa pesquisa. Ainda mais se você pensar em termos século XXI (portanto, uma situação que não se aplica necessariamente aos tradutores que vieram antes de mim no Brasil, e que tiveram que lidar com um cenário muito mais complicado, mais magro…), com a pilha de anotações que existe pra obra de cada um deles. A pesquisa está feita. O trabalho, sempre, é transpor isso tudo pra uma nova superfície, pra uma outra língua. Nesse sentido, não sei se aparecem grandes dificuldades específicas de tradução por causa do emprego do dito método mítico.

(Muito grosso modo, caso alguém que leia aqui não conheça: o tal método seria o emprego de um referencial clássico para uma narrativa contemporânea, como Joyce moldando as andanças de um dia na vida de Bloom nas viagens de Odisseu segundo Homero. A técnica teria sido desenvolvida por Joyce, mas batizada e formalizada por Eliot. Diga-se de passagem, estou escrevendo um livrinho sobre isso. E sobre o quando a infuência entre eles foi de duas mãos.)

Apesar de traduzir textos abstrusos de autores que Carpeaux chamaria de highbrow (acredito que esse termo se aplica mais a Eliot do que Joyce), você tem em seus prefácios e textosintrodutórios um tom bastante convidativo, como que dizendo “olha esse texto é complicado, masnão é nenhum monstro, juntos nós conseguimos encarar.” De onde veio essa ideia de convidar o leitor? Sou professor e sou tradutor. São duas áreas que se definem como ‘pontes’, comofacilitadoras de acesso. E especialmente quando lidei com o Ulysses, muito a fundo, muito longamente, tanto na tradução quanto na escrita da tese e nos vários cursos de graduação e pós-graduação que dei depois (e palestras, e oficinas)… especialmente ali veio me vindo esse ímpeto meio evangelizante, de querer levar aquele texto a mais gente, a muito mais gente. O livro é sensacional demais, desde que você ultrapasse as primeiras camadas de dificuldade. E se eu puder ajudar algumas pessoas a passar por essa barreira, ora, cumpro meu karma de umas cinco encarnações! Daí ter até escrito o guia (Sim, eu digo sim: uma visita guiada ao Ulysses de James Joyce). E isso se estende ao Eliot, e ao David Foster Wallace, Thomas Pynchon, Ali Smith…

Eu sempre lembro de uma cena que eu acho que é de Aprile, do Nanni Moretti, em que ele descobre a existência da anestesia peridural durante o trabalho de parto da mulher, acha aquilosensacional, e sai gritando pelo hospital, tipo ‘todos precisam saber!’… É assim que eu me sinto com relação a esses autores. Daí querer ‘convidar’ as pessoas, fazer com que elas percam o medo.

Ainda sobre os textos abstrusos e labirínticos (no caso de Joyce, construções literalmente dedalianas), noto que apesar de prosador, Joyce tem um ritmo quase poético. Acompanho Stephen torporizado por Dublin e eu mesmo fico em um estado de torpor, sem conseguir parar de ler. Leioa primeira frase de Finnegans (“riverrun, past Eve and Adam’s, from swerve of shore to bend of bay, brings us by a commodius vicus of recirculation back to Howth Castle and Environs.”) e posso não entender nada, mas sou carregado pela correnteza, pelo ritmo; como você transpõe esse ritmo joyciano para o português? Bom. Primeiro, kudos. Você é excelente leitor de Joyce. Isso que você descreve é realmente central pra técnica dele, essa manha de produzir efeitos diretamente no leitor, de um jeito que quase parece independente da semântica, através do ritmo da prosa, acima de tudo. O Finnegans Wake é a explosão total desse método. Já dei aula sobre parágrafos do Wake que fizeram mais de um aluno (além de mim) ficar com lágrimas escondidinhas no canto do olho, sem que no entanto a gente soubesse dizer (parafrasear) exatamente o que ocorria naquele pedaço de texto. Como transpor…?

Vamos de ‘alegoria’. Tem uma moça chamada Beatrice Rana, novinha, novinha… Ela é pianista,e gravou recentemente as Variações Goldberg, de Johann Sebastian Bach, uma obra que eu conheço do avesso. Mas aí ouço a variação #13, na versão dela, e descubro tudo de novo. O que foi que ela fez ali? Eu posso até descrever, mas como ela decidiu, e como conseguiu fazer aquilo é bem mais complicado de sistematizar. Foi ouvido. Foi pessoal.

Ritmo, especialmente no que se refere a prosa, onde as grades são menos rigorosas, tem muito disso. É claro que (exatamente como no caso da Rana com Bach) quanto mais você estuda e analisa o ‘original’, quanto mais tem vocabulário e ferramenta pra compreender o que o autor inscreveu ali, mais você tem chance de chegar a bons resultados como ‘intérprete’. Mas na hora do vamos ver, na hora de apresentar a tua ‘versão’, tem muito de ouvido, tem muito de “porque sim”. E vocêprecisa confiar no teu taco.

Tenho um grande carinho por The Love Song of J. Alfred Prufrock, foi a minha primeiratentativa de tradução poética, era algo mais ou menos assim: “Vamos então, tu e eu/enquanto a noite engole o céu/como um paciente eterizado sobre uma mesa;/vamos então, por certas ruasmeio desertas.” A tradução de Ivan Junqueira é “Sigamos então, tu e eu/enquanto o poente no céu se estende/comoum paciente eterizado sobre a mesa;/sigamos por certas ruas quase ermas”. E a sua é “Vamos lá, você e eu/quando a tarde no céu se estendeu/como um doente eterizado numa mesa/vamos lá, por caminhos já quase vazios”. Das três a minha é definitivamente a pior (e a mais literal) e a sua talvez seja a mais livre, mas aomesmo tempo ela tem uma sonoridade quase metálica que é o que eu noto no original (“Let us gothen, you and I/When the evening is spread out against the sky/Like a patient etherized upon a table;/Let us go, through certain half-deserted streets”) como foi o processo para encontrar umasonoridade que emulasse o original em português? Bom… sobre o ‘processo’, cf. supra. 🙂 De novo tem isso de um trabalho prévio bem grande. Ler e reler e reler e reler o original, pensar muito sobre os efeitos e as técnicas. Meio que nem aqueles caras que provam café e ficam bochechando e chupando ar enquanto estão com a bebida na boca… Você tenta entender bem o ‘sabor’ do original. E nisso você entende quais vão ser os ‘teus’ objetivos, que sempre serão diferentes dos de outros tradutores, porque a análise, a seleção de traços relevantes, vai ser tua. E depois é tentar escrever um poema brasileiro à altura do original e à altura dessa tua leitura do original. Onde entra muito de ‘Beatrice Rana’ de novo. Quase tudo. Mas, sobre as traduções. Primeiro, a tua não tem nada de ruim, não! Segundo, não sei se a minhaé mais ‘livre’? Livre de quê? Livre por quê? A minha, por exemplo, é a única dessas três que você citou que mantém a rima (clara e perfeita) entre os dois primeiros versos. De resto, a minha versão tem menos sequências ternárias do que a do Junqueira. A minha tende mais a alternar uma sílaba fraca e uma forte, como no original. Mas a tua não fica muito diferente da minha não. Na verdade, teu segundo verso me parece melhor que o meu, mas eu preferi manter a rima perfeita, e aí tive que jogar fora o céu (que frase!).

O Prufrock inteiro, no original, se desenha como esse jogo entre forma e liberdade. A primeira estrofe tem catorze versos: é um quase-soneto. Ela é cheia de rimas, quase-rimas etc. E os versos ficam sempre querendo ser decassílabos (pentâmetros jâmbicos). Essa leitura não me parece ter pautado a tradução do Junqueira, por exemplo, que abandona as rimas; mas pra mim foi uma coisa importante.

No seu blog você escreveu sobre a tradução na Dinamarca, dizendo que nos créditos aparece a expressão på dansk ved que significa ‘em dinamarquês com’. Onde existe (implicitamente) umarelação quase de parceria entre o autor traduzido e o tradutor. Como você vê o ofício do tradutor no Brasil? No caso da tradução literária, que é só o que eu conheço, a coisa está cada vez mais profissional. Pro leitor comum, isso é só um bônus, porque ele vai receber livros melhores. Como gosta de lembrar o Paulo Henriques Britto (quase passo uma entrevista inteira sem mencionar o nome dele!!), esse leitor comum não quer saber do tradutor, e nem precisa. No que se refere à imprensa, ainda vejo por onde melhorar. Tanto no ‘dar crédito’ de traduçãoquanto no evitar aquelas frases no fundo bobas como “na bela prosa de fulana”, quando na verdadea prosa que o resenhista leu é da outra fulana, que traduziu o livro.

Uma questão um pouco diferente: durante as eleições você escreveu um texto muito bonito a repeito da relação com sua filha, a repressão e sobre o presidente eleito. Como você vê esse futuro (des)governo afetando sua vida intelectual, cultural e pessoal? Eu não sei o que esperar. Sei o que temer, e é meio que tudo. Tenho certeza de que a nossa atuação na universidade (e eu sou professor de uma Federal) vai ficar mais tensa, mais crispada, mais complicada. E vai ser mais relevante. Não sei se as editoras vão sentir o golpe de algum tipo de ‘censura’ de mercado. E a imprensa… Eu realmente não sei. Eu sou um otimista patológico, e quero muito acreditar que essa onda de obscurantismo, preconceito, raiva e burrice vai ser só isso. Uma onda. Que vai passar, de preferência logo. Mas tenho cá meus receios do contrário. E aí, meu chapa. Aí ninguém pode calcular o tamanho do buraco… Pessoalmente, estou como o meu profeta Michel de Montaigne. É cavar um espaço na tua vida que seja só teu. É tentar manter um canto da tua cabeça limpo, salvo, fresco e aconchegante….

Agora, para finalizar, gostaria que você desse algum conselho para um principiante na tradução ou alguém que quer seguir na área. Conselhos pra aspirantes à tradução literária? Leia alucinadamente. Livro é suplemento proteico pra maromba tradutória. Leia muito e leia muito em português. Acima de tudo. Aumente teu repertório e tua capacidade de análise. Estude teoria literária. Desenvolva a tua curiosidade linguística. Queira saber mais. Aprenda a ver interesse em todo tipo de linguagem: na feia e na bonita, na correta e na ‘errada’. Aprenda a brincar com essas linguagens. Ouça alucinadamente. Em termos profissionais, cave. Comece devagar. Em geral se começa trabalhando de graça, pra ganhar prática e ir ganhando um nome. Um poema no blog aqui, um conto numa revista acolá. Fora isso, cumpra. Uma tradutor ou uma tradutora que cumpram prazos, sejam de lida fácil e entreguem um trabalho “limpo” já estão no topo das listas de qualidade. Pouca coisa, né? Mas olha que ajuda….

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No centro da foto, James Joyce

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