* Por Moacir Amâncio *

A cartografia passa por muitos momentos da literatura e diversas partes do planeta, aproximadas pela presença do poeta, que palmeia o mapa de sua vida, nesse balanço um tanto precoce e talvez por isso mais pungente e inquietante. Brasileiro vivendo há vários anos em Portugal, Ronaldo Cagiano incorpora em seu novo trabalho, Cartografia do abismo (Editora Laranja Original), autores lusitanos às suas referências, entre outros, expandindo a própria expressão ao mesmo tempo em que rompe as convenções territoriais que tantas vezes constrangem os artistas com falsos limites. Enfim, trata-se de um tema da banalidade cotidiana universal e, paradoxo, eterno. É grito e lamento diante do absurdo que se renova a cada fração de segundo da consciência. Um construir que se dá exatamente na sua negação. Ninguém se engane ao deparar referências claras a tantos autores. Não se trata de gesto impensado, por conta da chamada influência. E sim de um diálogo filtrado pela trajetória do escritor. Sua linguagem é pensada em permanentes conversas com Murilo, Drummond, Pessoa, Bandeira. Não se trata, portanto, de modernismo tardio e sim de um longo momento da reflexão indignada que remonta aos gregos e aos grandes momentos sacrificiais eternizados pelos mitos, entre os quais se faz presença preponderante a imutável saga prometeica. A revolta contra os deuses, se dá no rebaixamento deles à estatura dos homens e seus jogos de poder aos quais submetem a existência vã e vazia da espécie. É uma obra de resistência política. Há esperança? Talvez, se pensarmos em outro mito, este bíblico chamado Eva, ou Hava, esta sim a grande transgressora, contra os absolutismos, quaisquer que sejam. Hava, a mãe da vida, isto é, da desobediência no passo a passo da dúvida.

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Cartografia do abismo (Laranja Original, 192 págs.), de Ronaldo Cagiano

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Moacir Amâncio é poeta, com diversos livros publicados, entre eles, Ata (editora Record), é especialista em Literatura e Cultura judaicas. É também professor titular da USP.

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