* Por Hugo Almeida *

Em memória de Eustáquio Gomes, Paulo Bentancur e Wander Piroli

 

Depois do boom no final do século XX, o conto parece meio relegado pelas grandes editoras. Só parece. Nos últimos anos há cada vez mais edições completas de nossos contistas renomados. Poucas vezes, no entanto, os novos conseguem se lançar por uma editora forte. Em todo caso, nos anos 2000, o gênero resiste e se impõe.

Desde a virada do século, têm surgido novos contos singulares, de múltiplas gerações, publicados muitas vezes por editoras de fora de São Paulo e do Rio. Ou seja, a maioria ainda quase desconhecida e pouco lida, o que é uma pena.

Existem tantos bons e originais contistas que já se pode pensar numa antologia atualizada, à altura e ao lado de autores consagrados, vários deles mais dedicados ao romance, mas não deixam de escrever ótimos contos. Outro dado positivo: é numerosa e crescente a presença feminina entre os novos talentos.

Nesta ampla amostragem (mas há ausentes; nenhuma lista seria completa) em ordem alfabética, resultado de mais de um ano de leituras e releituras e redação de notas, estão exemplos significativos da diversificada e rica produção neste século de escritores de idades e estados distantes entre si, mas bem próximos na alta qualidade das narrativas. “Na amizade generosa de Octavio Paz, aprendi que não havia centros privilegiados de cultura, raça ou política”, escreveu Carlos Fuentes (1928-2012) no livro de ensaios Eu e os outros (Rocco, 1989; tradução de Sergio Flaksman).

Como também lembrou Paz a Fuentes, “nada deve ser deixado de fora da literatura, porque nosso tempo é um tempo de redução moral”. Ou, ainda, como escreveu Oscar Wilde no prefácio de O retrato de Dorian Gray (1890): “Um livro não é moral ou imoral. É bem ou mal escrito. Eis tudo. […] O artista vê e pode exprimir tudo” (na tradução de João do Rio, Ed. Hedra, 2006).

Os temas dos contos brasileiros atuais são múltiplos e por vezes inusitados, mas algo parece frequente: salvo naturais (e muito boas) exceções, não aparece mais, nos contos novos, o estandarte da estrutura arrojada, original, como no Osman Lins de Nove, novena (1966) e no Rubem Fonseca de Lúcia McCartney (1969).

A seguir, sugestões iniciais para uma antologia do conto brasileiro das duas primeiras décadas, ainda incompletas, deste século (até o fim deste 2020 mais textos antológicos surgirão). Em tempo: nesta lista não há parentes deste ensaísta, apesar de sobrenomes iguais.

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Numa seleta de micro contos, terão presença certa vários textos de Adilson Zambaldi (São Paulo, 1979), de Corra Zamba – Contos rápidos para ler sem pressa (Patuá, 2017), quase todos de uma única frase. Destacam-se, entre outros, “Laços”, “Novo vício”, “Já pra rua!”, “Nostalgia”, “Esbarrão”, “De vistas para o mar”, “Maratona”, “Irmãos”, “Fuga” (Como sempre, correu como nunca) e sobretudo “Na correria” (Parou de olhar mensagens e passou a ver paisagem). Pequeno grande livro muito bem ilustrado por Rodinei Morillas.

Em No início (Biblioteca Pública do Paraná, 2014), Adriana Griner (Rio, 1962) trabalha com temas bíblicos de maneira “renovada e graciosa”, na justa expressão de Cíntia Moscovich. São ótimos exemplos os antológicos “Babel” e “A mulher de Lot”. No primeiro, a narradora-personagem, xará da cidade da torre, conta como a construção utópica desmoronou e trouxe a confusão das línguas na Terra, dispersando famílias – depois, somente com um amigo mendigo (“o único a falar coisa com coisa”) ela conseguia conversar. Em “A mulher de Lot”, Adriana recria, com emoção e arte, a história da figura de Gênesis, mulher transformada em estátua de sal.

Uma nova antologia não pode ficar sem um conto de Adriana Lunardi (Xaxim, SC, 1964; vive no Rio). Em Vésperas (Rocco, 2002), Adriana harmoniza – em texto elegante, sóbrio, primoroso – ficção e realidade sobre os momentos finais de nove escritoras, entre elas Ana Cristina César, Clarice Lispector, Dorothy Parker, Sylvia Plath, Virginia Woolf e Zelda Fitzgerald. Todos os contos de Vésperas são antológicos, tal o equilíbrio entre eles. Mas eu votaria em “Dottie”, especialmente pelo final, sobre o estado do cão Troy, ou no belo, tão vivo e pungente “Clarice”, nossa maior e mais amada escritora, narrado em primeira pessoa.

De A mulher e o cavalo (Alaúde, 2006), de Adrienne Myrtes (Recife, 1967; vive em São Paulo), é digno de uma nova antologia o conto “Todos os homens são Paulo”, em que a narradora-personagem desde a infância se vê perdida num labirinto de Paulos. Em cada um, algo diferente a inquieta: “O cabelo dele inventava o vento”; “desliguei do mundo e fui satélite de Paulo durante um ano e meio mês”; “meus seios ficaram hipnotizados por aquela boca movendo-se” etc. São Paulo atrai pessoas de várias latitudes, parece sugerir o texto.

Dos contos recentes de Alberto Mussa (Rio de Janeiro, 1961) incluídos em Os contos completos (Record, 2016), não pode faltar numa antologia atual “O princípio binário”, narrativa à maneira de Borges com primorosa linguagem machadiana, sobre a revelação de que Dom Casmurro foi baseado em fatos reais. Trata-se da descoberta na Suíça de “notas manuscritas, em português, sem data, lançadas numa caligrafia tipicamente feminina”. Não se pode revelar aqui a autora dessas confissões. “A leitura secreta”, também em homenagem a Machado de Assis, numa recriação dos contos “A causa secreta” e “A cartomante”, é outro belo exemplo da augusta ficção de Mussa.

Narrativas como “A flor da aldeia”, de Contos de verdades (2ª ed., Mercado Aberto, 2011), e sobretudo “Dizem que dizem”, de Contos da vida difícil (ardotempo, 2014, 2ª ed.), são expressivos exemplos do talento de Aldyr Garcia Schlee (Jaguarão, RS, 1934-Pelotas, RS, 2018) e terão espaço seguro em antologias deste início de século. No primeiro conto, a injustiça que o machismo e a ignorância podem causar a uma mulher inocente. No outro, pautada pelo tango Dicen que dicen, com “citações dos mais conhecidos e desconhecidos tangos existentes ou inexistentes”, a história de uma apaixonante mulher que troca o companheiro por “um tangueiro: um bacanão, guapo e milongueiro”. Com letra de Alberto Juan Ballestero e música de Enrique Delfino, Dicen que dicen (“difícil existir um tango mais tango do que este”, diz Aldyr Schlee em nota no fim do conto), foi gravado em 1930 por Carlos Gardel, informa ainda o escritor.

Da tão atual quanto oportuna coletânea organizada por Anita Deak, Contos brutos: 33 textos sobre autoritarismo (Reformatório, 2019), merece destaque, entre outros, “1980… e pouco”, de Alexandre Staut (Pinhal, SP, 1973; vive em São Paulo). Um garoto chega atrasado à escola, no “momento sagrado” da execução do Hino Nacional acompanhada pela voz dos alunos no pátio – a turma em fila, em ordem de altura. Em bela, sublime e mágica narrativa, o garoto se descobre nu, tenta se esconder, mas sente uma iluminação, ocorre a metamorfose, ele se vê entre árvores, é um habitante original do Brasil, ouve um chamado e vai ao encontro de uma enorme figueira. Belíssimo conto para qualquer antologia que se faça hoje no Brasil.

A coletânea Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019) não traz somente textos sobre o autoritarismo político, mas também em outras esferas. É o caso do singular conto “Dente torto”, de Aline Bei (São Paulo, 1987). Em texto fragmentado, reflexo do enredo, a escritora conta a história de uma menina que adora o pai e é vítima da violência psicológica e física da própria mãe. Daí o título do conto, sugerido no fim. Antológico.

Se choverem pássaros, (WS editor, 2002), de Altair Martins (Porto Alegre, 1975), é outro livro de contos dignos de uma nova antologia brasileira. Autor de sintaxe curiosa, Martins é original também na maneira como conduz suas histórias, num texto de grande densidade e tensão que seduz, prende e encanta o leitor. É difícil escolher entre “Ira das mães”, sobre a infinita capacidade de amar das mulheres, e o “Teatro de varais”, texto pura dança, para uma antologia atual. O autor e os leitores poderão optar por outro conto.

Outro gaúcho com presença certa numa antologia destas duas décadas é Amilcar Bettega (São Gabriel, RS, 1964; vive em Pequim), autor de Os lados do círculo (Cia das Letras, 2004) e Prosa pequena (Zouk, 2019). Do primeiro, o melhor texto é o cortaziano (ou cortazariano, como preferem alguns) “Mano a mano”, em que a vida de um casal vira um transtorno após a inesperada visita de um velho amigo psiquiatra e os objetos da casa mudam de lugar, conto nascido de outro também ótimo, “A/c editor cultura segue resp. cf. solic. fax”, sobre um plausível encontro do narrador com Cortázar. Do mesmo livro, outra narrativa original é “A próxima linha”, em que a tensa DR de um casal contrasta com o bucólico pôr do sol no Guaíba; no fim, tudo se transforma em literatura, boa literatura. Bettega faz da leitura e da escrita temas de outros primorosos textos, como “Literatura” e “Um homem lê”, de Prosa pequena. No primeiro, um homem lê num quarto de hotel e outro escreve em casa (“Braço, mão e caneta são uma só coisa”). Esse conto dialoga com o outro, em que o leitor “desliza para outra forma de vida” e se desdobra no homem que lê e noutro que o observa. “Teatro”, do mesmo volume, também seria uma obra-prima, se terminasse na frase “…escutando os passos da atriz que ecoavam pelo teatro vazio”. A explicação depois disso tira o encanto da ficção.

Os mesmos e os outros: o livro dos ex (Quixote+Do, 2017), de Ana Cecília Carvalho (Belo Horizonte, 1951; vive em Austin, EUA), é um livro inquietante acerca do brutal e louco cotidiano de nossa era. Pode ser lido como um romance, tal a forte ligação entre os contos. Numa região conflagrada, de disputa política ou de seita, em clima de tensão, entremeado de momentos de alívio, as pessoas se dilaceram em conflitos sobretudo de consciência e estado de medo. Ana Cecília trata na ficção, em texto claro faz o leitor pensar, do que nos fala o lituano Emmanuel Levinas (1906-1995) em Totalidade e infinito (Edições 70, Lisboa, 2017; tradução de José Pinto Ribeiro): “A relação com o ser, que actua como ontologia, consiste em neutralizar o ente para o compreender ou captar. Não é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do Outro ao Mesmo”. Levinas diz ainda: “A dor, longe de pôr em questão a vida sensível, coloca-se nos seus horizontes e refere-se à alegria de viver”. Um exemplo e síntese disso é o metalinguístico “Para agitar os relógios”, conto antológico, talvez o melhor do livro. No seu novo volume de contos, O foco das coisas & outras histórias (Quixote+Do, 2019), de textos mais curtos e temas variados, há vários dignos de uma antologia, entre eles “Primeira charada: Manual de sobrevivência” (a personagem tem um inimigo oculto “tão precioso” quanto o melhor amigo), “O pacto” (a magia e a beleza na troca de olhares e afeto entre uma mulher e um pequeno inseto com uma asa machucada) e “Infância” (um adulto lembra uma dolorosa pescaria que fez com o avô quando menino). Contos singelos, cheios de humanidade.

“Eucaristia” e “Canastra real”, pelo apuro da linguagem e pela condução do enredo (ou seja, pela fatura literária), se sobressaem em Minto enquanto posso (O Nome da Rosa, 2004), de Andréa del Fuego (São Paulo, 1975), e terão lugar seguro em rigorosas antologias. No primeiro, uma mulher casada tem sonhos amorosos com São Jorge. No outro, o melhor do volume, três amigas já idosas, que se reencontram após a morte do marido da anfitriã, Catarina, jogam cartas, tomam chá e revelam incômodos e inquietantes segredos. Um conto à Virgínia Woolf e Machado de Assis, com uma pitada de Nelson Rodrigues, o que poderia parecer impossível.

A cada dia desde o início de 2019, torna-se mais atual o irônico O Brasil é bom (Cia. das Letras, 2014), de André Sant’Anna (Belo Horizonte, 1964; vive em São Paulo), filho de Sérgio Sant’Anna. Ironia, humor sarcástico, brado contra o preconceito e a empáfia da classe média, crítica ao culto ao dinheiro e ao poder atravessam os contos desse escritor versátil que honra o seu DNA. Antológicos: o conto título, além de “Deus é bom nº 8”, “O Brasil não é ruim”, “Nós somos bons”, “Felicidade”, “Só” etc.

“Carlos que amava Peter que não amava as mulheres”, de Anita Deak (Belo Horizonte, 1983; vive em São Paulo), publicado na coletânea Contos brutos (Reformatório, 2019) que ela organizou, ecoa no título o poema “Quadrilha”, de Drummond, mas trata de outra questão além das relações amorosas e do destino. Em texto irônico e sarcástico, Anita revela bastidores da negociação entre um escritor, seu agente literário e a editora para a publicação de um romance. Interessados em primeiro lugar no êxito comercial do livro, o agente e a editora sugerem/exigem mudanças radicais na história, desde o nome e a personalidade do personagem central, a “alusões sexuais”, questões raciais (“não fica bem”) e até o final do romance. Numa palavra, censura. A crítica chega ao autor que, para ser publicado, aceita a desfiguração de seu livro. Conto atual e antológico.

O livro Mudam os tempos (A Girafa, 2003), de Anna Maria Martins (São Paulo, SP, 1924), reúne contos de vários livros, o que o torna uma espécie de antologia da consagrada escritora e tradutora. De estilo seguro, elegante, sem pieguice nem adjetivação adocicada, mas por vezes lírico, Anna Maria trata em seus contos sobretudo das relações nas classes socioeconômicas mais altas. No entanto, não deixa de ter um olhar solidário para os menos favorecidos, como em “Jó versus INSS” acerca do drama de aposentados diante da burocracia e da injusta previdência social. Nele, a autora lembra a “dolorosa peregrinação de Maria de França”, personagem do romance A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins. É um conto antológico, bem como “Colagem”, no qual uma mulher sente-se emparedada entre o recato e uma eventual aventura com um amigo. Pleno de vida, realidade e imaginação, os contos de Anna Maria valorizam a inteligência do leitor e não acabam no ponto final; sugerem continuidade.

Com os dois melhores contos do livro Nu, de botas (Cia. das Letras, 2013), o delicioso “África” e “Senhor da chuva”, Antonio Prata (São Paulo, 1977) pode integrar uma antologia deste início de século. No primeiro, um grupo de garotos inicia uma viagem à África, a partir da ilha de Itaparica (BA), em pranchas de isopor, remando com os braços, abastecidos com uma garrafa de água mineral – a ideia era visitar a savana, ver bichos selvagens e retornar para o lanche da tarde. Deliciosa história. No outro, um adolescente aprende no laboratório da escola a fazer chuva, sem nenhuma magia, mas também sem trovão, relâmpago e “nem mesmo um ventinho a balançar as persianas do laboratório”. Era a descoberta do bem e do mal, a expulsão do Éden.

História de dois irmãos com os pais numa casa de praia, “Algum lugar no tempo”, de A página assombrada por fantasmas (Rocco, 2011), de Antônio Xerxenesky (Porto Alegre, 1984; vive em São Paulo), é um texto ágil, divertido, de final triste ou aberto. Primoroso, envolvente como um jogo de videogame, que parece mimetizar, o conto merece um lugar numa antologia brasileira deste início de século

No mínimo, merecem entrar numa antologia atualizada duas histórias de Contos e poemas para ler na escola (Objetiva, 2014), de Bartolomeu Campos de Queirós (Pará de Minas, 1944-Belo Horizonte, 2012). Em “Hoje, isento de todas as emoções…”, o narrador, adulto, relembra as boas coisas da infância, como o vaga-lume num vidro, o canto do carro de boi pesado, as estrelas cadentes. Recorda-se também de “uma menina mansa que se chamava Felicidade”, que não sabe “por onde anda hoje”. O outro conto antológico é “Matemática contemporânea”, o perverso contraste entre a opulência da burguesia perdulária e a fome e carência de tanta gente na miséria.

De Beatriz Bracher (São Paulo, 1961), não pode faltar numa antologia o conto “Comida em Parati”, de Meu amor (Editora 34, 2009), em que a narradora reflete sobre os limites do alimento e da leitura, bela harmonia de ensaio e ficção, com apropriada epígrafe de Beckett e citações de Haroldo de Campos e Kenzaburo Oe. Uma preciosa joia literária.

A romancista Beatriz de Almeida Magalhães (Ouro Fino, MG, 1944; vive em Belo Horizonte) pode entrar numa antologia de contos com “Panóptico de Hahn”, publicado na coletânea Nove, novena: variações (org. H.A.; Olho dágua, 2016). A escritora inverte a perspectiva de “Pentágono de Hahn”, de Osman Lins, ao tornar a elefanta “revolucionária do imaginário coletivo em observadora”, como ela mesma explica. E o resultado é um belo e antológico texto, digna homenagem ao autor de Nove, novena.

Você vai voltar pra mim e outros contos (Cosac Naify, 2014), de Bernardo Kucinski (São Paulo, 1937), traz impressionantes relatos dos anos cruéis da ditadura. O livro inteiro é antológico pelo que contém de memória e arte. Entre outros, ganham destaque, pelo rigor histórico e apuro literário, o conto-título (retorno nada feliz, ao contrário do que se pode imaginar), “A negra Zuleika” (racismo, prepotência e arbítrio juntos), “Joana” (mulher procura na rua o filho morto pela ditadura por imaginá-lo ainda vivo), “Pais e filhos” (o reencontro de um pai de direita com o filho guerrilheiro no exílio) e “Tio André” (garoto tenta com o pai uma visita impossível, história que mescla dor, medo e remorso). Contos de molhar os olhos para calar, envergonhado, quem tenta encobrir a história com palavras vãs.

Em Nanocontos (Quixote+Do, 2019), Branca Maria de Paula (Aimorés, MG, 1946; vive em Belo Horizonte) trabalha com a inexorável passagem do tempo e as agruras e doçuras da vida, em latente apelo ao carpe diem. Contudo, o mais belo conto de seu novo livro é o transcendente “O pianista”, seguido pelo doloroso “Regressão”, pelos resignados e belíssimos “Fotograma”, “Ressurreição” e “Vir a ser”, além de “Prova de amor”, “Paixão”, “Sexo ao vivo”, “Amantes”, “Separação” e o sutil “Onírica”, todos antológicas pérolas lapidadas, quase sempre de apenas uma linha. A beleza do livro, de esmerada edição desde a capa, se completa com as fotos artísticas feitas pela escritora, que é também fotógrafa.

“O grande escritor”, de Caetano Galindo (Curitiba, 1973), talvez seja o destaque de Ensaio sobre o entendimento humano (Biblioteca Pública do Paraná, 2013), uma irônica crítica aos programas de escritores residentes e cursos de redação criativa de universidades norte-americanas. Deles, sempre se espera um grande romance. Também merece menção o conto “Bienal (S. Med. pat. req.) 2”, uma aguda estocada nas bienais de arte.

Dividido em 14 segmentos, como a Via-Sacra, o conto “O corpo”, de Camilo Gomide (Araçatuba, SP, 1986; vive em São Paulo), incluído na coletânea Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), trafega pela perplexidade de um garoto diante da morte do avô e as reflexões dele, personagem-narrador, quando adolescente e adulto, sobre os mistérios da existência humana. Quando se olha no espelho, chega a ver o rosto do morto. “Que meu avô continuaria vivo dentro de mim sempre pareceu uma mentira, mas ao longo dos anos a frase foi adquirindo outros sentidos.” O conto vai além do que o título sugere, a morte, e oscila entre o ceticismo, o mistério e a fé. A linguagem simples oculta a transcendência. Conto magistral.

No primoroso, angustiante e ao mesmo tempo divertido “A cunhada”, de O cadáver ri dos seus despojos (Scriptum, 2007), Carlos Brito e Mello (Belo Horizonte, 1974) narra a história de um homem que se arma de todas as maneiras para conquistar uma mulher casada e seus filhos. É um dos vários contos antológicos do livro, entre eles “Minha letra” e “Os 105 anos da senhora Luíza”.

Pelo menos três contos de Da arte de fazer aeroplanos (Acauã, 2008), de Carlos Gildemar Pontes (Fortaleza, CE, 1960; vive em Cajazeiras, PB), podem integrar uma antologia atual: “A ruiva e a solidão” (vida e ficção se fundem), “O sorriso de brinquedo” (dolorosa partilha de lixo entre mendigos, com final cruel) e “A lua e Natasha” (outro dado curioso: as 18 divertidas notas têm mais do dobro da extensão do conto de uma página).

A sugestiva, tátil, genial capa do designer Leonardo Iaccarino é uma prévia dos instigantes, magistrais e inesquecíveis contos do recém-publicado Aranhas (Record, 2020), de Carlos Henrique Schroeder (Trombuco Central, SC, 1975; vive em Jaraguá do Sul, SC). Numa antologia atual, entrariam na fila de prioridades “Golias-comedora-de-pássaros”, uma nova, primorosa e também inquietante versão de A metamorfose, de Kafka, e “Espelho”, miniconto perfeito, obra-prima de 14 linhas, com tudo que o gênero exige: conflito, desenvolvimento, suspense, clímax, em impressionante síntese. E um final… Melhor não revelar nem adjetivar. Leiam o conto, curtam o brilho da joia lapidada.

Integrante da nova e talentosa geração de escritores gaúchos, Carol Bensimon (Porto Alegre, 1982) cativa e envolve o leitor com as três histórias de Pó de parede (Não Editora, 2015). Uma antologia do conto brasileiro atual não pode ficar sem “Capitão Capivara”, em que uma jovem escritora diverte crianças num hotel de luxo, nas montanhas, em busca de histórias para escrever. Nesse trabalho temporário cruciante, encontra um escritor “corrompido”, que ganha a hospedagem e fatura alto ao incluir o hotel em seus best-sellers. Elo entre os dois, o homem que faz a limpeza da piscina com uma rede na ponta de um cano comprido (“parece estar caçando borboletas”). Carol tem o mérito de falar de angústia, desencontro, injustiça, falsidade etc. num texto límpido, sereno, quase silencioso, como o que se vê das janelas do hotel. No fim, a busca continua. Primoroso, belíssimo conto.

A produção de histórias curtas da chilena naturalizada brasileira Carola Saavedra (Santiago, 1973; vive no Rio) estará bem representada numa antologia com o texto “Convivência”, de Liberdade até agora (coletânea organizada por Eduardo Coelho e Marcio Debellian, Mobile, 2011). Nele, um personagem, irreverente, se materializa ao lado de uma escritora diante do computador e a aconselha a trabalhar e beber menos e cuidar mais da saúde e da vida afetiva. Um diálogo ágil e inquietante que todo escritor já deve ter mantido consigo mesmo.

Pelo menos dois textos de Coração aos pulos (Record, 2001), de Carlos Herculano Lopes (Coluna, MG, 1956; vive em Belo Horizonte), o conto-título, dolorosa relação pai-filho, e “O homem e seu pai”, homenagem ao poeta Drummond, merecem figurar numa antologia dos anos 2000. e Texas

Em seu livro de estreia, Sem vista para o mar (Edith, 2014), Carol Rodrigues (Rio de Janeiro, 1985; vive em São Paulo) se mostra não como promessa, mas já realidade. O volume está repleto de contos antológicos, como “Teorias do eriço”, “Penélope e a roda” e “Mão sem linha”. Com linguagem e sintaxe originalíssimas, uma festa de sonoridade e ritmo, Carol surpreende e encanta com suas histórias ricas em frases sutis e fino humor. Exemplos em “Teorias do eriço”: “E aí que me greta garbo e a janela aberta faz perigo. Entra um passarinho. Amigo? No escuro não dá pra ver. Pois faz que rodopia as bananas tão caras que me deixam aqui e aí que é morcego”. […] “Acorda corpo. Desencolho então. Desenfrio então”. Em “Mão sem linha”: “Cavuca fundo Claudinha e deixa cavucar a mão sem fim. A mão gordinha segue um destino e faz tão bem o trabalho e tão quieta que os minutos são só interrompidos quando um grito”. De “Penépole e a roda”: “Abre a boca uns mil dentes ela espera o som da morte o som da fome mas o som virou outra força”.

Dos vários contos antológicos de Faróis estrábicos na noite (Bertrand Brasil, 2009), de Cecilia Prada (Bragança Paulista, 1929; vive em Campinas), dois merecem destaque, “Olho e serpente” e “Mulher e peixe”. No primeiro, uma minuciosa, poética e dolorosa radiografia da Rua Augusta, em São Paulo (“O rio de lava acesa lá embaixo é o rio de Heráclito”), observada pela narradora idosa de seu apartamento no sétimo andar e pelo Olho d’Ele. No outro, o solitário e doído diálogo de uma velha com o peixe dourado Zé, de um olho só, um “quadro na parede deslavada”.  O livro tem artística e original capa de Raul Fernandes, com foto tátil de um limão marrom cortado no equador, o “limão atômico” do conto “Os tambores do juízo final”, registro e ficção do anúncio do bloqueio de Cuba por John Kennedy em 1962 e de outros fatos históricos mundiais.

A coletânea Logo tu repousarás também (Record, 2006), de Charles Kiefer (Três de Maio, RS, 1958; vive em Porto Alegre), um dos grandes escritores gaúchos em atividade, é quase toda antológica. O autor mescla erudição, poesia, denúncia, mistérios, arrepios etc. em contos magistrais como “Rosa rosarum” (a labiríntica peregrinação do narrador atrás de um texto medieval que uniria Borges e Umberto Eco de O nome da rosa), “Futebol” (crueldade na potência máxima), “O boneco de neve” (inocência e maldade de crianças numa nevasca) e “Gemidos” (fraternidade e mistério envolvem a história de um mendigo salvo por um médico altruísta).

Chico Lopes (Novo Horizonte, SP, 1952) conquista espaço em antologia nova especialmente com dois contos de Hóspedes do vento (Nankin, 2010), “Episódio de caça” e “Dois no espelho”. Em texto poético, ritmado, preciso, justo, inquietante e enigmático (sente-se nele agradável eco – buscado ou não pelo autor – de “A máquina do mundo”, de Drummond), o narrador-personagem de “Episódio de caça” é assombrado, sem defesa, por – “o quê, criatura?” – algo ou ser invisível, indecifrável (“não há controle algum sobre o não convocado”). Como ocorre com o poema drummondiano, o encantamento é renovado a cada releitura desse conto. “Dois no espelho” também reflete inquietação, mas de outra natureza: um homem de meia-idade atormenta-se com o envelhecimento e, sobretudo, com o amor impossível por uma jovem e bonita mulher.

Diversos contos do singularíssimo Um exu em Nova York (Pallas, 2018), de Cidinha da Silva (Belo Horizonte, 1967; vive em São Paulo), terão presença garantida em qualquer antologia do gênero que se faça no Brasil. De raízes religiosas afro-brasileiras, são textos que encantam e emocionam pelo enredo e pela linguagem. Algumas das belas e tristes histórias do livro: “I have shoes for you” (uma mulher pobre oferece um par de sapatos à narradora do conto, no inverno de Nova York); “Kotinha” (baderna e destruição, patrocinadas por forças maléficas em casas de candomblé, são contidas pela luz de entidades do bem; uma frase do conto: “O coração fica triste e se aloja na ponta da espada”); “O velho e a moça” (sábias lições dele para a jovem que quer escrever: “… agora tens a agulha do tempo novo”; “A maré dos olhos do velho espoca devagar e umedece os vincos do rosto de bronze […] É o orvalho que brota desse coração cansado”); “O mandachuva” (um negro reprodutor, proprietário de uma jovem viúva, é alugado para os plantar filhos em fazendas vizinhas, mas a história vai além disso, claro).

Vários contos de Essa coisa brilhante que é a chuva (Record, 2012), de Cíntia Moscovich (Porto Alegre, RS, 1958), podem entrar em antologias atuais, entre eles o trágico e doloroso “Um coração de mãe” e o também trágico e dolorosamente poético “Tempo de voo”. Em ambos, a dor humana em texto direto, sem enfeite nem sofisticação estilística, mas sem deixar de latejar beleza.

Conceição Evaristo (Belo Horizonte, 1946; vive no Rio) relata com dolorosa suavidade o conflito entre as gêmeas Zaíta e Naíta, de uma família pobre, em “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”, um dos vários contos antológicos de Olhos d’água (Pallas, 2014).

Entre os contos de Roteiros para uma vida curta (Reformatório, 2014), de Cristina Judar (São Paulo, 1971), “Rosário”, irônica e sarcástica crítica à parafernália do consumismo, habilita-se para ingressar numa antologia destas duas décadas iniciais do século XXI. Pequena amostragem da arte de Cristina: “Santa paz da redenção material, rogai por nós (todos repedem em coro: gozai por nós!)”. Mais uma: “Telas de LCD e óculos 3D […] Santa paz da telenovela brasileira, rogai por nós (todos repetem…)”.

Desde cedo seduzido pela magia e extensão do romance, Cristóvão Tezza (Lages, SC, 1952; vive em Curitiba) não se considera contista. Mas o é, e dos melhores do país, como se pode constatar no precioso Beatriz (Record, 2011). Com a longa experiência de romanista consagrado, Tezza escreveu um livro de contos orgânico, de harmoniosa estrutura, não somente pelos personagens cativantes, Beatriz, professora de literatura descasada, e Donetti, escritor itinerante mal-humorado, mas também pela substanciosa riqueza de temas caros à literatura. Magistrais pela fluência e domínio do enredo, os contos “Aula de reforço” e “Beatriz e a velha senhora” são dignos de rigorosa antologia. No primeiro, uma mulher tenta contratar Beatriz para dar aulas particulares ao filho não de redação, mas de outra arte, tal Fräulein Elza, de Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade. No outro, uma idosa faz Beatriz escrever sua história, minuciosa confissão, do que fez antes de se tornar viúva rica. E a remunera bem. O “Prólogo” do livro e vários contos, como “Beatriz e o escritor”, são ótimas aulas a candidatos à carreira literária e a escritores em formação.

No conto “Desaparecido”, o melhor de Na outra margem, o Leviatã (Lote 42, 2018), Cristhiano Aguiar (Campina Grande, PB, 1981; vive em São Paulo) faz clara referência a Vidas secas, de Graciliano Ramos, ao nomear de Balela (sim, Balela, e não Baleia, uma aproximação homofônica) a cadela companheira do homem maltrapilho que perambula por uma grande cidade (“o ar tinha gosto de vinagre e escapamento”) recolhendo latinhas. Ao passarem diante de um comitê eleitoral, o homem puxa a companheira pela coleira, que queria seguir adiante, e lhe grita: “Balela, balela, balela!”. Não à toa, na segunda vez e terceira a palavra está com inicial minúscula. Retrato da realidade brasileira, texto para antologia.

Na coletânea Contos crespos (Mazza Edições, 2008), de Cuti, nome artístico de Luiz Silva (Ourinhos, SP, 1951; vive em São Paulo), há vários textos para uma antologia atual, entre eles “Boneca” (a dificuldade de um pai para encontrar uma boneca negra para a filha), “Tentativa” (pouco depois de ter conseguido emprego, um ex-presidiário é morto pela polícia), “Ah, esses jovens brancos de terno e gravata!” (um negro, inocente, é acusado de uma morte que não causou), “Lembranças das lições” (a professora lê: “Os negros escravos eram chicoteados”, com ênfase nas duas palavras; “É você, macaco. Você é escravo – cochicha-me um aluno branco”) e “Ponto riscado no espelho” (“Um nó de olhar. Ódio e culpa se acasalaram”; “Aqui não cortam cabelo de negro”…). Nos quatro contos, um brado contra o racismo, a hostilidade e a injustiça social no Brasil, em apurado texto.

No pungente e ao mesmo tempo sóbrio “O rosto perdido”, de O anão e a ninfeta (Record, 2011), um dos incontáveis melhores contos de Dalton Trevisan (Curitiba, 1925), o narrador, que parece ser o próprio autor (então recém-viúvo), e seu animal de estimação (somente no fim acaba a dúvida se cão ou gato) sofrem com a definitiva ausência da dona da casa. “Na casa vazia, quem nos consola da ausente?”

No mínimo “Amor perfeito” e “Natureza morta”, de Dentes Guardados (3ª ed., Livros do Mal, 2004, PDF), de Daniel Galera (São Paulo, 1979; vive em Porto Alegre), têm espaço certo numa antologia atual do conto brasileiro. São textos densos, afiados, sobre relações amorosas débeis, epidérmicas, fugazes, desastrosas – e cruéis, especialmente o segundo, de final dilacerante. Fora das livrarias, o livro está disponível na internet.

O grande destaque de Noites urbanas (Bertrand Brasil, 2010), de Daniel Piza (São Paulo, SP, 1970-Gonçalves, MG, 2011), é o conto dedicado a Paulo Autran (1922-2007), “O último monólogo do grande ator”, originalmente uma peça, em que o protagonista, quase octogenário, se encontra com ele menino, no camarim, depois da uma apresentação. Um emocionante diálogo entre o sonho e a realização dele, os dois com uma certa angústia.

No caleidoscópico e enciclopédico Atlas do impossível (Penalux, 2017), Edmar Monteiro Filho (São Paulo, SP, 1959; vive em Amparo, SP) nos traz longas e ricas narrativas à Borges, em que fala de literatura, arte, vida, mistérios, mas um conto mais simples e curto, “Convexo e côncavo”, de pequenos textos estruturados com a brincadeira infantil “Ordem, seu lugar, sem rir” etc. nos dá a ideia da versatilidade e do talento do escritor.

 

Com linguagem apurada, poética, “Ontem”, “Ben que olhava o trem” e “Cheiro de pêssego” são os contos mais pungentes de Welcome to Copacabana & outras histórias (Record, 2016), de Edney Silvestre (Valença, RJ, 1950; vive no Rio), e têm porta aberta para uma antologia de contos brasileiros de hoje. No primeiro, a lembrança imorredoura de um antigo Natal de uma família pobre; no segundo, a comovente história de um garoto órfão vítima de pedofilia que depois de tantas dores protagoniza epifanias; no terceiro uma possível recriação do poema “Quadrilha”, de Drummond, em que a violência e o destino cruel não poupam nem mesmo filhos de militares.

Eltânia André (Cataguases, MG, 1966; mora em Portugal) desenvolve “Canteiros e violões”, o melhor conto de Manhãs adiadas (Dobra, 2012), no embalo de versos de “João e Maria”, de Chico Buarque. Nesse conto nostálgico, a executiva Nina, cansada do desumano cotidiano nas grandes cidades, está em busca de si mesma e de “uma pátria infinita”, talvez musical, relembra os doces momentos da infância, “as águas calmas de outrora”, chega a desejar “a paz dos monastérios” até descobrir que a época dos canteiros e violões não vai renascer das cinzas das saudades e entender de que é feita a vida.

Ao homenagear o maior escritor tcheco no magistral Kafkianas (Todavia, 2018), Elvira Vigna (Rio de Janeiro, 1947-São Paulo, 2017) de certa forma não deixou de mostrar o Brasil dos últimos anos, como nos contos “Um papel velho” e “Uma mensagem do imperador”, ambos antológicos.

Emilio Fraia (São Paulo, 1982) pauta sua excelente coletânea Sebastopol: três contos (Alfaguara, 2018) na obra quase homônima de Léon Tolstói Contos de Sebastopol, também composto de três histórias que trazem nos títulos os meses de dezembro, agosto e maio. Há sutis pontos de contato entre as histórias, como a perna amputada de um militar russo na guerra da Crimeia e uma alpinista brasileira. São três textos primorosos sobre glória e ocaso – a maior dificuldade é a descida, como diz um personagem. No talvez mais precioso conto, como os outros de linguagem cristalina e ritmo envolvente, “Agosto” trata de um megalomaníaco dramatúrgico, sob o ponto de vista de uma parceira de sonhos e frustrações. Três contos antológicos de um escritor que aprendeu bastante com outros grandes mestres da arte de narrar, entre eles Cortázar e Osman Lins.

Eric Nepomuceno (Rio de Janeiro, 1948) incluiu em sua Antologia pessoal (Record, 2008) dois textos escritos nos anos 2000, “Quando o mundo era meu” e “Aquela mulher”. Os dois merecem entrar em seletas de contos deste início de século. O primeiro, um primor de narrativa cinematográfica, trata da emoção, do temor e da alegria de um adolescente na primeira vez que assiste a um filme, possivelmente na década de 1960, com a garota que quer namorar. No outro, um idoso conta histórias extraordinárias, reais ou imaginárias, como a de um amor impossível, talvez para aplacar a “infinita solidão”. Belíssimo e melancólico conto.

O último livro de Eustáquio Gomes (Campo Alegre, MG, 1952-Campinas, SP, 2014), O vale de Solombra (Geração, 2011), é um romance, mas vários capítulos podem ser lidos como se fossem contos, todos antológicos. Exemplos: “O visível e o invisível”, “A borboleta”, “O oráculo” e “Cartas e postais”. Neles, como em todo o livro, há busca e fuga, passado e presente, memória e mistério, metafísica e cotidiano, o Brasil e o mundo, em texto e humor refinados para degustação lenta, como uma bebida preciosa.

O mais recente livro de Evandro Affonso Ferreira (Araxá, MG, 1945; vive em São Paulo), Cacimba (Selo Demônio Negro, 2019), verdadeiro sopro na argila, é todo antológico. São minicontos sobre a arte, magia e epifania de esculpir com barro. Numa “bucólica Escola de Cerâmica”, é possível “modelar-esculpir”, por exemplo, Esplendores ocultos do Inexistente, sua “irmã gêmea” Plenitude, Caminhos, Futuro e Ressurreições. Numa antologia atual, o autor e o livro estarão muito bem representados por “Atire a primeira pedra aquele que…”, singela história de uma prostituta que, “nos seus momentos de folga luxuriosa, moldava, esculpia indiozinhos-anjinhos incastigáveis, impedrejáveis”.

Uma antologia atual sem um conto de Ferréz (São Paulo, 1975), vigorosa e bonita voz da periferia marginalizada, seria elitista e incompleta. São vários os textos notáveis de Os ricos também morrem (Planeta, 2015), a começar por “A história do ovo” (um garoto, faminto, implora à mãe por um ovo frito) e “Linda flor” (a mudança de atitudes de um homem após o casamento e a paternidade). Também antológicos são, entre outros, “A natureza do Nêgo Jaime” (que planta árvores onde acha espaço), “Tumulto” (um longo fôlego do triste cotidiano de crianças pobres no “país sem um ponto de compromisso”) e “Pequeno pássaro” (a beleza de um encontro, ainda que tardio). Nesses textos, todos poéticos, Ferréz protesta com arte.

De Fernando Bonassi (São Paulo, SP, 1962) são dignos de uma antologia atual no mínimo duas histórias de seu mais recente livro de contos, Violência e paixão (Scipione, 2007): “Relatório de observação”, sobre as comemorações dos 450 anos de São Paulo na praça da Sé, festa que expõe as injustiças sociais reinantes na maior metrópole do país, e “Trabalhadores do Brasil”, relato realista, mas em linguagem singela, da violência contra a população pobre da periferia das cidades brasileiras.

São vários os textos antológicos do magistral Aconselho-te crueldade (Nankin/Funalfa Edições, 2010), de Fernando Fiorese (Pirapetinga, MG, 1963; vive em Juiz de Fora, MG). Dos 14 contos do livro, pelo menos quatro podem entrar com tranquilidade em antologias atuais: “Um terno para K.” (o paciente e artístico trabalho de um alfaiate e sua relação com o cliente), “Crônica de família” (angustiosas lembranças de um idoso), “A tempestade” (poético texto sobre o inefável corpo da mulher amada) e “Um nome e os óculos” (o apego das mulheres a suas dores). Contos de um grande escritor que precisa ser mais conhecido.

No mínimo dois contos de Ralé (Diadorim, 2019), de Flávio Ilha (Porto Alegre, 1961), “Meu rebanho” e “Soldados” têm presença assegurada em antologias atuais. No primeiro, um homem aceita cuidar de uma menina cega que perde a mãe numa situação trágica, uma pungente história narrada com maestria. No outro, desmando, ódio despropositado, violência e outras arbitrariedades num quartel.

Entre os contos mais recentes de Flávio Moreira da Costa (Rio de Janeiro, 1942-2019), pelo menos dois de A humanidade está em obras, de 2005, livro incluído no volume Malvadeza Durão e outros contos (Agir, 2006), devem entrar em qualquer antologia brasileira. Ambos são homenagens a dois de nossos maiores escritores, “Meu conto de Machado de Assis” e “Maça no escuro”. No primeiro, o autor de Dom Casmurro recebe um inopinado e incômodo visitante em seu gabinete de trabalho no Ministério da Viação. No outro, em forma de poema, o escritor aproveita títulos e frases da obra de Clarice Lispector, num belíssimo texto ao mesmo tempo ficcional, realístico e filosófico.

Além de dez contos nota 10, Onde terminam os dias (7Letras, 2011), de Francisco de Morais Mendes (Belo Horizonte, MG, 1956), traz duas ótimas novelas, “Mitre no Hotel Júpiter” e “O sumiço do gigante verde”, que poderiam ser um livro à parte. Em texto leve e agradável, mas nunca trivial, Mendes reconstrói com maestria episódios da infância, como em “Os bonecos”, uma obra-prima que deixa extasiados os garotos que “não sabiam o truque” do ventríloquo. Outro conto antológico é “Um cavalo”, comovente relato acerca de um animal que ocupa um campinho de futebol.

Narrativas de leitura fluente, de forte cunho social, sobre a vida difícil de gente simples, marcam o livro Na rua Padre Silva (Nossa Livraria, 2007), de Gilvan Lemos (São Bento do Una, PE,1928-Recife, 2015). São dignos de uma antologia, pela construção das cenas, fluência nos diálogos, elaboração dos personagens e do enredo, e pelo humor “Hagar, o horrível” (além da bonita relação entre o avô “gaioleiro” e o neto, seu “secretário” e leitor de histórias em quadrinhos, há os segredos da família que o garoto descobre e compreende), “Devaneios íntimos” (a fraterna amizade de dois vizinhos, um empalhador de cadeiras e o outro vendedor de caldo de cana) e “Herói irreconhecido” (a emoção da mãe e a indiferença do pai diante do surgimento em casa do filho foragido da polícia). Textos sublimes em sua simplicidade, mas sem perder a contundência.

Que fique claro: o sucesso de O sol na cabeça (Cia. das Letras, 2018), livro de estreia de Giovani Martins (Rio, 1991), não é só fruto de marketing. Seu êxito vem sobretudo dos fortes contos desse jovem escritor de talento que traz a voz destemida de personagens discriminados por causa da origem socioeconômica. São antológicos não apenas “Rolézim”, um dos preferidos de seus leitores (vivo, João Antônio seria um deles), mas também contos como “Espiral”, sobre o preconceito da classe média contra jovens da chamada periferia, e o singelo “O caso da borboleta”, a descoberta do mundo por um garoto de 9 anos.

Em “Queda de rins”, incluído na coletânea coletiva Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), Graziela Brum (Arroio Grande, RS, 1977; vive em Alter do Chão, PA) maneja com rara maestria vários pontos essenciais  de uma obra-prima que vai além da história: linguagem, ritmo, personagens, enredo, denúncia da injustiça social. O resultado só podia ser um conto de grande beleza e vigor literário. O ritmo musical (“é sangue que desce, sobe, que sobe, toca batuque, numa pipoca, quem sabe soco na cara”; “é beco, é viela, volto pra casa”) atravessa quase todas as sete páginas de “Queda de rins”, ao mesmo tempo em que surgem personagens fortes (o capoeirista Mestre Moa, Zelua e outros) e enredo aflitivo (questões domésticas e coletivas) e a denúncia do avanço do poder econômico sobre uma favela para a abertura de uma estrada de interesse de “granfinos” de Salvador. Conto estonteante, como a vida de quem sofre.

Dos contos deste século de Guiomar de Grammont (Ouro Preto, 1963) reunidos em Sudário (Ateliê, 2006), juntamente com os textos de O fruto de vosso ventre, não podem faltar numa antologia “O piano e o violino”, poética, comovente, bonita e melancólica história de um amor infeliz, e “Reencontro”, outra bela narrativa de uma saudade doída.

Um dos novos talentos gaúchos, Gustavo Melo Czekster (Porto Alegre, 1976) revela-se leitor e admirador de Osman Lins, especialmente nos contos “Ivan Ilitch, o paciente da cela 5” (acerca de intelectuais, prisão e memória) e “Mercúcio deve morrer” (belíssimo conto-ensaio sobre uma peça imaginária), duas obras-primas de Não há amanhã (Zouk, 2017). Em ambos, o escritor parece homenagear o autor do romance A rainha dos cárceres da Grécia. Outros dois belos contos do volume são “Problemas de comunicação” e “Os problemas de ser Cláudia”. Há também contos antológicos em seu livro anterior, O homem despedaçado (Dublinense, 2011), como o tão doce quanto cruel “Lição de macho” (um menino vive com o pai separado e um coelho, cujos olhos lembram os da mãe ausente), de forte final. Leveza, rigor, despretensiosa erudição e suave humor marcam os textos de Czekster.

Pode-se aplicar a frase de Mário de Andrade, de que será sempre conto o que o autor chamar de conto, a vários textos do inusitado livro de estreia de Gustavo Pacheco (Rio de Janeiro, 1972), Alguns humanos (Tinta-da-China Brasil, 2018; a capa, creditada apenas à editora, sem nomeação do autor, é uma obra de arte). O grande destaque do volume, contudo, é um dos textos que dispensam a máxima do autor de Macunaíma e motivou o artista da capa, o inquietante “Ambystoma mexicanum ou o labirinto invisível”, inspirado no conto “Axolotl”, de Julio Cortázar, de Final de jogo. O músico Marcelo, personagem no início dependente dos pais e depois da namorada (seu invisível labirinto), assemelha-se ao axolotl, “uma espécie particular de salamandra que raramente se metamorfoseia, exceto em circunstâncias excepcionais”. É o que Pacheco sugere com maestria.

“Navegar é preciso” é o dos contos antológicos de Fissuras (Penalux, 2018), de Henriette Effenberger (Bragança Paulista, 1952), uma grande escritora que merece ser mais lida e conhecida. Em belo texto, ela narra a história de um pescador que, depois de uma jornada frustrada, deixou o barco na praia e caminhou de volta pela estrada “como ser humano que quase era” e, ao chegar em casa, “não respondeu à mulher, que perguntou pelo dinheiro para a comida, não abraçou nenhum dos filhos, não ouviu o choro do caçula”. Na cama, “fechou os olhos e não dormiu, reviu os peixes que não pescou, contou o dinheiro que não deu à mulher”. Também magistral, “Miados ao léu” traz a doída história de uma gata que de repente se descobre órfã. Outro forte conto do volume é “Horas cinzentas” (“A velhice, aos poucos, vai incorporando a morte”; “Também transfere para os braços as nódoas do espírito”), inspirado em poemas de A cinza das horas, de Manuel Bandeira.

O forte, contundente e tão brasileiro conto-título de A oração do carrasco (Mondrongo, 2017), de Itamar Vieira Junior (Salvador, BA, 1979), pode figurar em qualquer antologia brasileira. E também “Alma”, longa e encantadora prece pela liberdade, bem como “Manto da apresentação”, outra comovente oração, e o poético “A floresta do adeus”. De seu primeiro livro, Dias (Caramurê Publicações, 2012), merece destaque “Clarice”, uma surpreendente conversa de um professor de literatura com a nossa maior escritora.

Um escritor gaúcho que não pode ser esquecido numa antologia de contos é o dramaturgo Ivo Bender (São Leopoldo, RS, 1936-Porto Alegre, 2018), autor de Quebrantos e sortilégios (Terceiro Selo, 2015). Seus contos têm algo da sueca Selma Lagerlöf (1858-1940), Nobel de Literatura em 1909, ou seja, histórias de sabor clássico bem contadas, sempre críticas, mas com ternura e temas aparentemente edificantes. Um exemplo a destacar: “As filhas de Teobaldo” – a difícil promessa que Sibila, a mais velha de sete irmãs, teve de assumir diante do pai moribundo: que fosse rigorosa quanto aos namoros da caçula, Alma. O recado paterno é cristalino: cuide da alma. Também antológico é “O general e suas mulheres”, história dos desmandos de um militar atuante na ditadura, entrincheirado na angústia e certeza da impunidade, e seu destino.

Jádson Barros Neves (Miranorte, TO, 1965; vive em Guaraí, também em Tocantins) colocou o nome de sua cidade natal no mapa da cultura brasileira com o arrebatador Consternação (Casarão do Verbo, 2013). São quase todos contos antológicos, em magnífico painel do Brasil profundo, um rico contraste entre a beleza da natureza e a perversidade humana, leitura de intensa aflição e grande deleite estético. Uma seleta do conto brasileiro dos anos 2000 não pode ficar sem “Entre eles, os corrupiões”, a vida pungente de um povoado, ou o poético “A toalha”, a fatura de uma obra de arte.

Dois contos antológicos recentes de Jaime Prado Gouvêa (Belo Horizonte, 1945): “Pequenas canções de outono”, de Fichas de vitrola e outros contos (Record, 2007), e “Os pardais da fazenda do meu tio”, de Coletivo 21 (org. Adriano Macedo; Autêntica, 2011). No primeiro, uma série de pequenas histórias de solidão; no outro, uma bonita e sensível reminiscência infantil.

“Antígona – Posto 6” é o ponto alto de Cybersenzala (Brasiliense, 2007), de Jair Ferreira dos Santos (Cornélio Procópio, PR, 1946; vive no Rio). Um homem tem morte súbita enquanto almoçava num restaurante de Copacabana, ao lado de uma enigmática mulher. Nessa história aflitiva com toques de humor, o incômodo do morto sentado à mesa. Apesar de tudo, a mulher pede sobremesa e café. “Não haveria nessa indiferença um monstro saciando um apetite criminoso?”, indaga o narrador. Conto antológico.

Uma das grandes novidades da literatura brasileira é Jarid Arraes (Juazeiro do Norte, CE, 1991; vive em São Paulo), autora de Redemoinho em dia quente (Alfaguara, 2019). Nesse livro de prosa original, vivaz, ligeira, graciosa sobre mulheres nordestinas e injustiças sociais que sofrem, há vários contos para uma antologia atual. Alguns: “Cinco mil litros” (filha faz de tudo para aliviar a carga de trabalho da mãe lavadeira, que sonha em comprar uma grande caixa d’água); “De melhor qualidade” (o funeral de uma menina de dez anos que merece ser registrado pelo pai fotógrafo da narradora); “Graça” (quase poema ou prece em louvor a uma mulher laboriosa e feliz que distribui alegria por onde passa); e “Novo elemento” (uma mulher arma pela primeira vez uma fogueira de São João e conversa com o fogo até as últimas consequências). Contos belíssimos, todos.

A exemplo de “Dente torto”, de Aline Bei, a narrativa “Bethânia”, de Jeferson Tenório (Rio de Janeiro, 1977; vive em Porto Alegre), também da coletânea Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), aborda a opressão doméstica, mas nesse caso uma espécie de reação ao mundo externo. Uma família, vítima da discriminação, se isola em casa (“…era o nosso quilombo”) com medo de tudo. “A casa nos permitia desistir do mundo porque ele já havia desistido de nós. Éramos negros. E o mundo a nossa volta tornou-se mais perigoso”, diz a narradora, filha que dá título ao conto e ouve músicas tristes, sobretudo a canção de Cartola “O mundo é um moinho”. Mundo que tritura sonhos. Conto que grita por liberdade. Presença certa em qualquer antologia de hoje.

A tragédia da Vale em Brumadinho, três anos depois do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, já estava prevista no conto “Divórcio” de Nove, novena: variações (org. H.A.; Olho dágua, 2016), de Jeter Neves (Miradouro, MG, 1946; vive em Belo Horizonte), que denuncia o maior crime ecológico do país. Nesse conto antológico, Neves registra: “Das 754 barragens de rejeitos no Estado, 231 são classificadas como Classe III, isto é, com alto potencial de dano ambiental”. Outro pequeno trecho:  [Maximiliano] …“contempla a extensa área minerada e cisma: percebe pequenos tremores na superfície da barragem de rejeitos…”

Em “O menino e o pião”, de O volume do silêncio (Cosac Naify, 2006), João Anzanello Carrascoza (Cravinhos, SP, 1962; vive em São Paulo), um dos mais brilhantes contistas brasileiros em atividade, narra a bonita relação do garoto com o pai e, ao mesmo tempo, relaciona, em texto sutil e belo, o giro do brinquedo infantil com o movimento da vida cotidiana, das pessoas, da natureza e dos astros. Esse é um dos vários primorosos contos do volume cheio de silêncios preciosos. A maioria dos contos de Carrascoza, quase sempre em torno de relações familiares, é digna de uma antologia. Outros exemplos: o emocionante “Aquela água toda”, conto-título do livro lançado pela Alfaguara em 2018, o alegre “Passeio” e o doloroso “Mundo justo”, ambos do mesmo volume. Merecem destaque ainda o poético e surpreendente “Rosa do deserto” e o comovente “Janelas” (Dias raros, Planeta, 2004).

O Paraná tem uma novíssima e talentosa geração de escritores. Um deles é João Lucas Dusi (Curitiba, 1995), autor do incisivo e primoroso O grito da borboleta (Penalux, 2019). Entre vários contos de mestre precoce, “Despertar” pode integrar uma antologia atual. “Não há metafísica na contagem dos segundos”, diz o narrador nesse texto que pode ser entendido como a purgação da solidão. As narrativas de Dusi trazem, “com graus severos de ironia e sarcasmo, personagens que forjam o impossível, afundados nos graus mais abjetos de entorpecimento e humanidade”, nas palavras precisas do professor Rodrigo Tadeu Gonçalves nas orelhas do volume.

O jovem João Gabriel Paulsen (Juiz de Fora, MG, 1999) revela fôlego, talento e maestria em sua obra de estreia, O doce e o amargo (Record, 2019). Em texto seguro, fluente e de forte preocupação social, ele enfrenta com êxito questões-chave e tormentosas do homem em “As palavras”, “O ódio ou pais e filhos” e “A paixão ou Os dois”, três dos vários contos antológicos do livro.

No mínimo dois contos de O abridor de letras (Record, 2017), de João Meirelles Filho (São Paulo, 1960; vive em Belém), “Espírito-de-velas” e “Diário de visita à rendeira do Rio Vermelho”, deverão entrar numa seleta destas duas primeiras décadas dos anos 2000. No primeiro, em linguagem saborosa, o relato de uma mulher que passa a madrugada no velório da mãe e vê estranhas e silenciosas visitas – só no dia seguinte ficaria sabendo de quem se tratava. No “Diário…”, a luta, a angústia e as dores de assentados em terras antes improdutivas.

No angustiante, belo e tão atual “A manifestação dos inocentes”, incluído em Liberdade até agora (coletânea organizada por Eduardo Coelho e Marcio Debellian, Mobile, 2011), de João Paulo Cuenca (Rio, 1978), um homem acorda e tenta escrever o sonho daquela noite, a caneta falha e, em três segundos, “uma catedral iluminada se apaga” dentro dele. Não encontra a mulher ao lado e sai à sua procura – o que encontra é a cidade convulsionada, retrato do mundo de hoje. Conto para qualquer antologia que se faça no Brasil neste início de século.

Talvez ninguém tenha escrito um texto tão substancioso e original sobre Raduan Nassar quanto o belíssimo “Cem mil frangos fantasmas”, conto definitivamente antológico de Joca Reiners Terron (Cuiabá, 1968; vive em São Paulo), de Sonho interrompido por guilhotina (Casa da Palavra, 2006). Ao unir ensaio, reportagem e ficção, Terron persegue e alcança um perfil minucioso, sem reservas, do autor de Lavoura arcaica e Um copo de cólera desde antes da notoriedade de Raduan até a sua voluntária e precoce aposentadoria como escritor.

Em “Um conto de Natal”, que se destaca em Caminhante noturno (Terceira Margem, selo da Editora Multifoco, 2010), de Jorge Fernando dos Santos (Belo Horizonte, 1956), um pai não acreditava em Papai Noel até encontrar um na rua, debaixo de chuva, na noite natalina, que presenteia sua filha com a boneca que ela tanto queria.

Meio machadiano, mistura de angústia e humor, o fluente “Três graças”, de Jorge Sá Earp (Rio, 1955), se sobressai entre os contos de A praça do mercado (7Letras, 2018). Trata-se das reviravoltas do destino das sonhadoras irmãs Laura, Beatriz e Nise, filhas de um admirador de Petrarca, Dante e Camões.

Conto antológico é o que não falta na obra de José Francisco Botelho (Bagé, RS, 1980; vive em Porto Alegre), autor de prosa altiva, elegante, rica, mas sem rebuscamentos nem afetação. Além do conto-título de A árvore que falava aramaico (2ª ed., Zouk, 2014; bela capa, belo projeto gráfico) – a incrível e triste história de um primo incômodo e amado que se despede e desaparece na “noite agreste” –, o volume traz pelo menos três outros textos antológicos: “Viagem noturna” (um garoto acompanha o pai na fuga em canoa de estranhos homens – prisioneiros, traficantes, contrabandistas? – e é obrigado a guardar segredo); “Na casa de nossos pais” (uma belíssima recriação de “A casa tomada” de Cortázar) e “Baphomet” (o paulatino sumiço de membros de uma família desde que o pai levou para casa, preso a uma coleira, o misterioso ser que dá título à história). Em sua mais nova coletânea, Cavalos de Cronos (Zouk , 2018), há outra obra-prima, “O silêncio dos campos”, a visão de sucessivos cães na estrada até um sítio se transforma em pesadelo de realismo mágico, história que poderia ter como epígrafe estes versos de Geoffrey Chaucer, de Contos da Cantuária, que o autor traduziu: “Diz Tibúrcio: ‘O que escuto é realidade,/ Ou num sonho me falas, meu irmão?’./ ‘Estávamos sonhando, é bem verdade, / Por toda a vida, em fosca confusão;/ Mas os olhos se abriram, e a visão/ De verdade nos cerca.’ ‘Porém como/ Sabes que isso é real, que não é sonho?’.” Só uma ressalva: não existe “fosca confusão” no conto. Trata-se de claro e vivo pesadelo, em que o texto se encrespa, se agita, mas sem dispersão do enredo.

Dono de uma prosa afiada feito um bisturi, José Rezende Jr. (Aimorés, MG, 1959; vive em Brasília) conseguiu uma proeza: são dignos de uma antologia quase todos os doze textos do seu Eu perguntei pro velho se ele queria morrer (7Letras, 2009), a começar pelo conto-título, história de um moribundo vítima do cigarro, contada por um egresso da Febem que ele criou. Outros dois contos, ambos na fronteira entre Eros e Thanatus: “Eu morrendo e você pintando as unhas de vermelho” e “Senhor capitão”. Ainda as pinturas que são “Quase nada”, em que um homem e uma mulher se distanciam e se dissolvem na paisagem, e “Desastres marítimos”, cronometrado relato de um acidente de trânsito. Para a lista não ficar longa, só mais dois, “Origami” e “Desvio; desvão”, poéticas e tristes histórias de amor.

No curioso Papis et circenses (Objetiva/Alfaguara, 2013), de José Roberto Torero (Santos, 1963), merecem destaque “Pio XII” em diálogo fraterno com o ditador Franco; “Bento XVI” e “Francisco”, que também não escapam da verve humorística e sarcástica do autor.

Antes de publicar dois livros de contos, Josette Lassance (Belém, 1962) havia escrito poemas. Ela levou para os textos de ficção a densidade e a força da poesia, presentes em vários contos Os 5 felizes (Ed. Pakatatu, 2009), especialmente em “O estacionamento Jaguar”, “À sombra do horário” e “A última chuva em Belém”. No primeiro, a estrela de “uma infinidade” de carros de modelos e épocas é um Lada “vermelho desbotado” em que o motorista foi morto num assalto. O veículo da Perestroika divide o protagonismo da história com o vigilante Pedro, “que sonha ser saxofonista”. Sensível, ele reconhece “a voz” de cada carro, a luz, o toque das buzinas. Uma bonita sinestesia abre “À sombra do horário”, o sol “tem um sabor diferente, um gosto de fruto, fruta mais silvestre”. Na solitária caminhada até a padaria, a narradora-personagem faz bonitas descobertas, em busca da liberdade. A chuva de “A última chuva de Belém” começa “a explodir em grãos” e logo as “sombrinhas tortas vindas de Hong Kong” de nada adiantam até se transformar em dilúvio, que traz à tona tudo que ficaram sob o “tapete em séculos de abandono”. Em sua estreia na ficção, O prédio (2002), singela e bem cuidada edição da autora, Josette já revelava “a energia nervosa do caos urbano que nos assombra”, como diz Olga Savary na apresentação. Solidão e poesia andam juntas em contos também antológicos como “O encantamento”, “O sol negro” e “O prédio”.

Juarez Guedes Cruz (Porto Alegre, 1943) trabalha com fortes e bonitas imagens em A cronologia dos gestos (Movimento, 2006), sobretudo nos contos “Inimigo” (homenagem a Jorge Luis Borges em rica narrativa de autoconhecimento), “A enchente” (hiperbólicas metáforas de uma mulher a quem o amor castiga e muda o alegre Sim do monólogo interior de Molly Bloom, de Ulisses de Joyce, para o amargo Não) e “Márcia na calçada” (doloroso texto metafórico e poético). Textos para sempre antológicos.

Em seu livro de estreia, Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (7Letras, 2004), Julián Fuks (São Paulo, 1981), que se tornaria o premiado romancista de A resistência (Cia. das Letras, 2015), revela precoce talento, aos 22 anos, especialmente nos contos “O menino sobre a capela”, velório de um garoto numa cidadezinha, e “O convite”, história de ciúme e saudade.

No antológico conto “Fontini”, de Uma fome (Record, 2010), Leandro Sarmatz (Porto Alegre, 1973; vive em São Paulo) narra com maestria a trajetória de César Fontini, artista plástico apelidado de Índio, um ex-militante de esquerda. O artista, independente e sarcástico, renuncia a exposições e patrocínios e, em plena Anistia, se autoexila em São Borja (terra natal de Getúlio Vargas e onde ele também se isolou após ter sido deposto em 1945), e é acompanhando pelo silencioso agente duplo Negro (que faz lembrar Gregório Fortunato), uma espécie de guarda-costas voluntário. Nesse contexto, uma aguda reflexão sobre arte, panfleto, relações humanas, dignidade e História do Brasil.

“Eu te pergunto, José”, de Liliane Prata (Formiga, MG, 1980; vive em São Paulo), publicado na coletânea coletiva Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), já começa bem com a ressonância do poema de Drummond, mas a inquietação é outra. No divã, a narradora queixa-se a seu analista, José, em fluente e natural oralidade, como numa terapia real, contra o comportamento e as atitudes machistas de primo Vitor, “tipo de homem que acha que desejar sexualmente uma mulher é a mesma coisa que gostar de mulher”. As críticas chegam ao papa da psicanálise (“Como pôde Freud ter feito isso com a gente, ter nos chamado de invejosas do pinto em vez de marcadas pela opressão do pinto?”) e a ironia não poupa o próprio analista (“antes que você se levante, abra a porta e me avise que a sessão acabou…”), a quem faz a pergunta capital desse conto antológico. Qual pergunta? É só procurar texto.

Em “Homem correndo ao nascer do dia”, de A arte excêntrica dos goleiros (LGE, 2004), Lourenço Cazarré (Pelotas, RS, 1953; vive em Brasília) faz seu personagem-narrador recordar-se da vida com a ex-mulher, num elaborado texto em que as oscilações e curvas da relação amorosa se mesclam com as do exercício matinal. Conto para entrar em antologias do conto brasileiro atual, bem como “O horror que não podemos compartilhar” – uma mulher anota seus sonhos (“Isso de registrar sonhos é como brincar com fogo, aquela gostosa sensação de perigo perdida na infância”).

A exemplo de Rubem Braga, nosso maior cronista, que teve textos selecionados por David Arrigucci como os “melhores contos” do autor, também Lourenço Diaféria (São Paulo, 1933-2008) escreveu crônicas que podem ser lidas como ficção. Vale a pena reler sua prosa enxuta, cheia de graça, ritmo e harmonia, tudo escrito com naturalidade. Exemplos de contos antológicos, singelos, líricos, por vezes bem-humorados ou tristes, de seu último livro, O imitador de gato (Ática, 2001): “O pão de cada noite” (a vida dura de um palhaço “no picadeiro do asfalto”; “há bocas a sustentar”), “O crime perfeito” (o duelo de um gato e um peixe com surpreendente final) e “A moça do 14” (em texto de proposital eco machadiano, a transformação da paisagem urbana e uma misteriosa fotógrafa nua na janela de um prédio de luxo).

Depois de ter caminhado por Copacabana com um menino (talvez o filho), sempre em dúvida nas escolhas (cor do papagaio, do refrigerante e do canudinho) e cheio de perguntas (por exemplo, por que o mendigo batia com um ferro no poste?), um homem sofre com as lembranças (“Agridem como um telejornal”) no antológico conto “Sossega, Leão”, de A secretária de Borges (Record, 2006, 2ª ed.), de Lúcia Bettencourt (Rio, 1969). No conto que dá título ao volume, também antológico, a escritora não se aventura a imitar o estilo de Borges, mas mostra o escritor no labirinto que a cegueira crescente traz, ao ouvir a leitura da secretária “com sua voz espectralmente serena”, que o tranquiliza, mas depois percebe uma palavra trocada e pensa em outro ajudante. No fim, considera-a apenas “um fantasma”, que viverá noutro labirinto. Belíssimo conto.

O que Dona Maria conta no consultório faz o narrador, médico como Luis Marra (São Paulo, 1950), autor do conto, evocar “Boemia”, de Nelson Gonçalves. A mulher pede um calmante porque o marido boêmio voltou e ela o perdoou. O médico pensa tratar-se de mais um caso de alcoolismo. Mas o relato da paciente, “como no teatro grego”, o surpreende, num gesto com as mãos no peito: “Ah, seu doutor, eu queria mesmo era arrancar o meu coração”. Ele percebe no ar “tensão dramática e sublime” e pergunta o que ela faria com o coração. Resposta, num grito de “beleza teatral”: “Eu quis arrancar meu coração e colocar uma pedra no lugar”. Daí o título, “Coração de pedra”, o melhor texto de O diário perdido do jardim Maia (Hedra, 2008), registros do cotidiano no consultório. Também antológico é “Pipas”, de O coletivo aleatório (Hedra, 2001), sobre a vida dolorosa de garotos na zona leste de São Paulo, conto já incluído na antologia Cenas da favela (org. Nelson de Oliveira; Geração, 2007).

Em Como ser ninguém na cidade grande (Penalux, 2018), de Luiz Roberto Guedes (São Paulo, 1955), o melhor conto, pelo vigor narrativo e humanitário, é “Hospital terminal”, uma série da TV sobre a realidade da assistência à saúde no Brasil que sai do ar por falta de audiência. “Parece que um tsunami de ignorância se abateu sobre este país. Meu diagnóstico é que o paciente Brasil está sofrendo de uma convulsão”, diz o narrador.

Depois dos deliciosos contos iniciais com histórias de sua terra natal, Luiz Ruffato (Cataguases, 1961; vive em São Paulo) trata em A cidade dorme (Cia. das Letras, 2018) da “sensação de nunca pertencer a lugar nenhum” como diz o narrador de “Destinos”, talvez o melhor texto do volume. Merecem destaque ainda “O dia em que encontrei meu pai”, triste lembrança da época da ditadura militar, e “¡Gua!”, refugiados latino-americanos em situação desumana em São Paulo. Quase todos os contos falaram do nowhere.

O conto “A porta aberta” poderia ser o título do livro A cabeça (Cosac & Naify, 2002), de Luiz Vilela (Ituiutaba, MG, 1942), faixa-preta em diálogos, tal como Hemingway. Numa clara referência ao clássico “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, um homem de meia-idade adquire uma canoa e, apesar da advertência do vendedor, vai em direção ao meio do rio, à correnteza, e larga os remos (“Por quê?”), num final diferente da história rosiana. É o melhor conto do volume.

Da produção contística recente de Lygia Fagundes Telles (São Paulo, 1923), cumpre mencionar “O visitante”, de Conspiração de nuvens (Rocco, 2007). Em bem construída história que pode ser autobiográfica, uma escritora está às voltas com um inoportuno e bisbilhoteiro leitor que tenta entrevistá-la sem conhecer sua obra.

Selecionar apenas um texto de Marçal Aquino (Amparo, 1958; vive em São Paulo), um dos grandes contistas brasileiros contemporâneos, para uma antologia de contos dos anos 2000, é parada dura. Poderia ser “Boi” ou “Recuerdos da Babilônica”, de Famílias terrivelmente felizes (2003), relatos de sofrimento e sonhos de marginalizados em São Paulo. Boi, mendigo debaixo de um viaduto; Neto, trabalhador da construção civil que acalenta o desejo de voltar à sua terra natal no Piauí.

Expressão da violência conta a liberdade da mulher, duas histórias de Amar é crime (Editora Edith, 2010), de Marcelino Freire (Sertânia, PE, 1967; vive em São Paulo), têm lugar certo numa antologia contemporânea: “Crime” e “Declaração”. Nesses contos vertiginosos, episódios e ponto de vista diferentes, um grito de ódio e outro de amor, mas o mesmo fio os conduz: a impiedade humana.

O estonteante “Olho ruim”, conto antológico do livro de estreia de Marcelo Ferroni (São Paulo, 1974), Dia dos mortos (Globo, 2004), é uma forte denúncia do preconceito de cor e de classe vivo na burguesia. Mulatinho sofre todo tipo de maus-tratos, físicos e psicológicos, de adolescentes de famílias abastadas. Retrato da realidade cotidiana brasileira, expõe a perversa crueldade de filhos de certa elite.

No antológico Memórias da sauna finlandesa (Editora 34, 2009), de Marcelo Mirisola (São Paulo, 1966; vive no Rio), há pelo menos quatro obras-primas: os poéticos e pungentes “Pai”, belíssimo diálogo com a música de mesmo título de Fábio Júnior, e “Valentina e o laranja intenso”, também um bonito mergulho na questão da paternidade, e os irreverentes, ma non troppo, “Para Dostoiévski do Jardim Casqueiro” e “On The Road à parmegiana”. Contos de mestre para qualquer antologia que se publique hoje no Brasil. No livro todo, a marca inconfundível do escritor independente, inquieto e averso às frivolidades de seitas e festas literárias.

Marcelo Moutinho (Rio de Janeiro, 1972), contista singular, afeito a temas bem atuais, como o curioso, em texto ágil, “Comida a quilo”, e “Oxê”, sobre futebol, de Rua de dentro (Record, 2020), tem contos também antológicos em livro anterior, A palavra ausente (Rocco, 2011), no qual se destacam “Água” (sensível e comovente relação do narrador com o pai idoso, que “talvez, no fundo de si, lembrasse: ‘Um dia, há muito tempo, dei banho neste menino’”) e “Jogo-contra”, outra comovente e bonita história de pai e filho.

O surpreendente, meio kafkiano e divertido conto-título de O homem que conhecia as mulheres (Objetiva, 2006), de Marcelo Rubens Paiva (São Paulo, 1959), se sobressai no volume, que traz também ótimas crônicas, como “I love SP”. Rodolfo, solteiro namorador sem título de eleitor nem CPF, eclético na carreira profissional sem nunca ter a carteira assinada, entende de mulheres como ninguém. Com seus conselhos, salva casamentos abalados e por isso é processado por “exercício ilegal do aconselhamento”. No júri, arrebata a plateia com longas e inesperadas respostas, por exemplo, a esta pergunta: “Qual o tipo de mulher que mais assusta um homem?”. Conto antológico que segura o leitor como o espectador de uma boa peça contemporânea.

“A vida pode ser mais cruel que a morte”, afirma o narrador de “Via-Lactea”, o melhor conto de As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011), de Márcia Barbieri (Indaiatuba, SP, 1979; vive em São Paulo). Trata-se de uma sucinta, inquietante e bem-elaborada volta no tempo (“o tempo é um cão cego e sem faro a nos guiar”), dos dias de hoje à Grécia Antiga. Outra narrativa antológica da autora é “O professor”, incluído em Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), sobre outro tempo, de anos sombrios no Brasil, quando até poemas eram motivo para prisão e tortura.

“Enviar uma carta”, sobre a implacável passagem do tempo e a perda da memória de um personagem numa sequência de filas, de Marcio Renato dos Santos (Curitiba, 1974), é o destaque de Finalmente hoje (Tulipas Negras, 2016). Conto para uma antologia de hoje.

Existem pelo menos três contos antológicos em Se eu te amasse, estas são as coisas que eu te diria (Moinhos, 2019), de Marco Severo (Fortaleza, CE, 1981), “Chegada ao local dos destroços” (depois de ter saído de casa, uma mãe envia cartões postais para a filha durante a vida inteira, mas elas não se encontram), “Nunca longe demais de ti” (primorosa e forte história de amor, dor e farsa, abandono e arrependimento) e “Aprender a viver” (filho sofre a indiferença do pai, “um homem acorrentado pela solidão”; belo texto). Contos de mestre.

No belíssimo “O ensaio”, de Inquilina do intervalo (Iluminuras, 2005), Maria Lúcia Dal Farra (Botucatu, SP, 1944; vive na fazenda Lajes Velha, interior de Sergipe) segura o leitor ao longo de densa e cativante história de sucessivas reuniões de uma numerosa família descendente de italianos no aniversário da Nona até ela revelar conhecer, quase na despedida, um triste segredo que todos pensavam ter conseguido ocultar. A Nona também escondia que conhecia o segredo familiar – o motivo, comovente, traduz a dimensão de sua alma. Esse é um dos diversos contos antológicos do extraordinário volume, entre eles, o sublime e transcendente “A Garça” em que crepita afeto (a velha e amada cozinheira na casa da infância e a ave se fundem no último voo) e o belo e inquietante “A visita” (de súbito, uma jovem mulher, perplexa, se descobre outra no espelho). Narrativas antológicas algo proustianas, de densa poesia da grande poeta Dal Farra.

Além do conto-título de Céu caótico (Secult, 2005), de ritmo musical, de Maria Lúcia Medeiros (Bragança, PA, 1941-Belém, 2005), pelo menos outros dois podem entrar numa antologia do conto brasileiro deste início de século: “Casa que já foste minha” (como numa bonita prece, a narradora mergulha em si mesma) e “Maria Tarquínia” (breve e comovente relato da vida de uma velha humilde que virou mito). Narrativas em linguagem irmã da poesia.

Vários contos de Modo de apanhar pássaros à mão (Objetiva, 2006), de Maria Valéria Rezende (Santos, 1942; vive em João Pessoa), têm lugar certo numa seleção de contos brasileiros das duas primeiras décadas deste século. Como as duas fortes e bonitas histórias amorosas, a que dá título ao livro, uma belíssima versão moderna de “Cântico dos cânticos”, e o inquietante “Lamento para harpa e tuba”. De A face serena (Penalux, 2018), são antológicos os contos “Ao fim do mundo”, “O perfeito bibliotecário” e “Da Lapa ao Cosme Velho”. Nos dois últimos, bonitas homenagens a Machado de Assis.

O belíssimo conto “Ao vivo” (Ilustríssima, Folha de S. Paulo, 22.9.2019), que vai integrar o próximo livro de Marilene Felinto (Recife, 1957; vive em São Paulo), a ser lançado agora em 2020, já garante a inclusão da autora em antologias atuais. Em comovente, soulful, brilhante texto em primeira pessoa, o narrador se dirige a um amigo que partiu repentinamente. Relembra momentos capitais que viveram juntos, “amigos mortais”, evocando livros, filmes e momentos do cotidiano. “Será que te encontro dia desses?” O título do conto parece nascer do contraponto, de pungente beleza, entre “esta tua morte, esse trauma” e a vida pulsante no gramado da casa do narrador – “desencontro que virou reencontro!”. “Tuas filhas brincam, e meu cachorro pula e salta com elas…” Arte maior.

Sensível, poético, de histórias tristes e bonitas, O livro dos afetos (7Letras, 2005), de Marilia Arnaud (Campina Grande, PB, 1964; vive em João Pessoa, PB), traz vários textos antológicos. Destaca-se o conto “Girassóis no inferno”, narrativa sobre dor de uma viúva na longa e demorada busca de quem estava com o marido no momento do enfarte fatal e deixou no carro poemas sem identificação. Há também a tentativa de conceder o perdão. No fim, dupla perplexidade.

Vários contos de Hora de alimentar serpentes (Global, 2013), de Marina Colasanti (Asmara, então colônia italiana da Eritreia, 1937; ítalo-brasileira, vive no Rio), podem integrar uma seleta atual. A maioria é de minicontos, mas os melhores são mais extensos, “Por amar as aves” (da janela de sua casa à margem de um rio, um homem admira milhares de gansos, “fusão de curvas e penas” […], “um edredom que se move”) e “O estojo de um segredo” (uma mulher deixa de sentir-se solitária ao divisar da janela do hotel um ganso e um coelho, “duas manchas brancas lhe fazem companhia”). Dos míni e nanocontos, são antológicos “Ao sol” (a generosidade da natureza), “História 2” (o destino da vaidade), “Tudo é aprendizado” (lindo, encantador), “Um detalhe” (poético, mágico, uma pintura), “O pianista cego” (perfeito), “Ou:” (conto que sugere interpretações)  e “Enquanto o sono”, que faz lembrar sua obra-prima “A moça tecelã”, de Doze reis e a moça no labirinto do vento (Nórdica, 1982).

Embora não contenha referência a “Diante da Lei”, de Kafka, o antológico conto “A porta”, de O antinarciso (Record, 2005), de Mario Sabino (São Paulo, 1962), pode ser lido como uma homenagem ao escritor tcheco, mas com final bem diferente. Além disso, apresenta a trajetória do homem na Terra, sua angústia diante de portas fechadas e os amplos sentidos de uma porta.

Em textos à primeira vista singelos, mas seguros, meio claricianos, Marta Barbosa Stephens (Recife, 1975; vive na Inglaterra) apresenta no livro de estreia, Voo luminoso de alma sonhadora (Intermeios, 2013), contos que têm entrada garantida numa antologia atual, como “Outro ponto no círculo” (clara homenagem ao Osman Lins de Nove, novena) e “A escritora”, que convida dois amigos para jantar em casa. Histórias de paixão pela vida e pela arte, que se fundem como pintura em voo de cores sutis, reais e mágicas.

União de poemas e contos, o primeiro livro de Mayara La-Rocque (Belém, 1987), Uma luminária pensa no céu (Edições do Escriba, 2017), é de uma riqueza rara. Poético, inquietante, originalíssimo. Orgânico e sublime, terra e transcendência. São grandes exemplos disso o conto-título e “Os jardins e os caminhos”. Há poesia na prosa e os poemas não deixam de narrar, algo difícil de encontrar em autores jovens. Seu melhor conto, “Reencontro com Clarice”, não está nesse volume e pode ser lido em: https://revistacaliban.net/reencontro-com-clarice-9fd7a67c4e14 Os escritores do Pará merecem um olhar atento de leitores e editoras instalados abaixo do Equador.

Podem figurar numa antologia vários textos de A coleira no pescoço (Bertrand Brasil, 2006), possivelmente o melhor livro de Menalton Braff (Taquara, RS, 1938; vive em Ribeirão Preto, SP), a começar pelo conto título, o cão e seu dono, dupla solidão. Depois, o magnífico “Alice e o violoncelo”, um angustiante duelo mudo no quarto com o marido, “experiência de medo e coragem” da mulher. Destaque também para “Caminhos cruzados” e “Anita”, episódio de “Uma tarde de domingo”.

Restinga (Cia. das Letras, 2015), de Miguel del Castillo (Rio de Janeiro, 1987), reúne contos e novelas exemplares. Com original estrutura, “Violeta”, belo e forte relato dos dolorosos anos de exceção em países sul-americanos, é um conto que não pode estar ausente de uma antologia brasileira dos anos 2000.

Terão presença certa em antologias de hoje “Todas as mãos”, “Cheiro de grama cortada”, “Linguagem roubada” e o texto-título de A bicicleta de carga e outros contos (Cia. das Letras, 2018; genial a capa de Guilherme Xavier), de Miguel Sanches Neto (Bela Vista do Paraíso, PR, 1965; vive em Ponta Grossa, PR). Em todos, o universo mágico do cotidiano retratado com arte, em bonito laço entre história e texto e o forte traço de um escritor que capta a vida em seus momentos capitais.

A cidade ilhada (Cia. das Letras, 2009; cinematográfica a foto de Luiz Braga na capa, com belo trabalho gráfico de Fabio Uehara e Angelo Venosa), de Milton Hatoum (Manaus, 1952; vive em São Paulo), traz uma das joias do conto brasileiro deste início de século, “Encontros na península”, uma belíssima homenagem a Machado de Assis. Um jovem escritor brasileiro inédito ensina português a uma catalã, Victoria, interessada em conhecer a obra do bruxo do Cosme Velho por causa de seu exótico amante português, Soares, que considera Eça de Queiroz superior ao autor de Dom Casmurro. Além de ter buscado os nomes dos personagens Soares e sua mulher, Augusta, em contos de Machado (“Luís Soares” e “O segredo de Augusta”), Milton Hatoum desenvolve sua história num sensual clima atualizado de “Missa do galo” e “Uns braços”. Há outros detalhes que remetem a Machado de Assis, como a perversidade de Soares (o personagem machadiano “é um grande perverso”, a exemplo de Fortunato, de “A causa secreta”). Também antológico, entre vários do volume, é “Bárbara no inverno”, história de angústia, saudade, medo e ciúme de um casal de exilados políticos brasileiros em Paris, conto magistralmente pautado por “Atrás da porta”, canção de Chico Buarque.

No volume Por trás dos vidros (Cia. das Letras, 2007), Modesto Carone (Sorocaba, 1937; vive em São Paulo) reúne contos novos e de livros anteriores. Numa antologia de textos escritos neste século, terão presença certa o conto-título (a última despedida de um casal numa estação de trem) e “À margem do rio” (o encantamento de um menino com o circo em sua cidade). Textos pungentes em dois extremos.

O Deus dos insetos (Dublinense, 2013), de Monique Revillion (São Leopoldo, RS, 1960; vive em Porto Alegre), traz pelo menos dois contos antológicos, “Atravessar os oceanos” – um garoto pobre, candidato a uma peneira de um time de futebol, em busca de um sonho – e “Memorial”, uma tragédia familiar escrita com delicadeza.

“Elisinha (com notas para os jovens)”, de Palavras são para comer (Oito e Meio, 2018), da tão talentosa quanto discreta ficcionista e tradutora Myriam Campello (Rio de Janeiro, 1948), terá presença certa numa antologia atual. É uma irônica e divertida história das peripécias e dos sofrimentos de uma mulher que, afinal resignada, se dispõe a ser feliz para sempre. Também hilárias são as notas de pé de página.

Com o forte e belo “Amanda”, de A loucura dos outros (Reformatório, 2016), a obra de Nara Vidal (Guarani, MG, 1974, vive em Londres) estará bem representada numa rigorosa antologia. O dia a dia de um casamento conturbado, falido, marido violento, na voz ironicamente resignada da mulher, com um filho doente, sempre esperançosa de harmonia. De seu livro anterior, Lugar comum (Passavento, 2015), pode ser selecionado “Vida de escritor” – um aposentado quase octogenário endivida-se, à revelia da mulher, para bancar a edição de seu sofrível livro de estreia. No lançamento, vendeu quatro exemplares.

Amora (Não Editora, 2015), título do belíssimo livro de Natalia Borges Polesso (Bento Gonçalves, 1981; vive em Caxias do Sul), não se refere à fruta. Trata-se do feminino de amor, como a escritora esclarece já na dedicatória (“Aos amores e às amoras”). “Deus me livre”, conto antológico, exemplifica a temática do volume, o amor homoafetivo. Diante de uma plateia no início curiosa e depois estupefata na igreja, Vera relata em seu primeiro sermão (surpreendente, poético, cativante) a transformação que o amor verdadeiro operou em sua vida (“Eu não queria. Eu demorei. Não pensem que foi fácil”). Todo o livro é de intensa beleza.

No original e irreverente Copacabana dreams (CosacNaify, 2012), de Natércia Pontes (Fortaleza, CE, 1980; vive em São Paulo), um conto se sobressai, o divertido “Avenida Atlântica”. Montada num jegue, de trotar “meio capenga”, a personagem-narradora passeia, “altiva”, com visão “privilegiada das cabeças dos passantes”, pela orla sem atrair a curiosidade de ninguém. Não liga para os sinais do trânsito, ouve “um Fagner bem rasgado”, pede e toma uma água de coco. Fim da história? Não conto. Vá ao livro. Bem diferente é outro conto de Natércia, o agoniante, mas também com pitadas de humor e terror “Autoritarismo”, publicado em Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019). Em processo de autoconhecimento, a personagem faz uma viagem noturna de carro, que atropela um “senhor pequeno”, e se confunde com o motorista do carro, os outros ocupantes e o atropelado, “formando um todo”. Conto antológico.

O conto “Senhora aos domingos”, texto de esmerada fatura de Nelson de Oliveira (Guaíra, SP, 1966; vive em São Paulo), abre o volume e sintetiza bem o universo de Algum lugar em parte alguma (Record, 2006), a solidão contemporânea. De chapéu e com sua melhor roupa, Madalena vai passear numa praça, onde contempla “um grupo de velhos na orla da lagoa, todos parados, seis ou sete estátuas saídas de algum asilo das redondezas”.

Se ainda existissem a revista Status e seu concurso de contos eróticos (nos anos 1970 foram premiados Dalton Trevisan e Rubem Fonseca), hoje poderia ser consagrado o belíssimo “Platero e o mar”, de Daimon junto à porta (Dublinense, 2011), de Nelson Rego (Porto Alegre, 1957). Em linguagem serena, sutil, sem deixar de ser clara no clima libidinoso, o escritor conta a história da modelo de pintores Inocência, que finge não querer se mostrar a garotos fascinados pela sua sensualidade (“Por que não, Inocência, hein?”). Eles não podem assistir às sessões de pintura ao vivo, mas num verão a mulher se hospeda na mesma casa de praia dos garotos. (“A nudez completa como um ponto de exclamação sobre a extensão da praia.”).

Nilma Lacerda (Rio de Janeiro, 1948) certamente entrará numa seleta de contos contemporâneos com o texto que dá título a Estrela-de-rabo e outras histórias (Nova Fronteira, 2005). Inspirado em uma reportagem sobre gente que vive do que recolhe em lixões, é um belo e doloroso conto que transborda poesia, solidariedade e denúncia social. Texto para ficar na história da literatura brasileira.

“Dentro do pátio sem luz” é um dos destaques de O pão do corvo (Editora 34, 2001), de Nuno Ramos (São Paulo, 1960). Trata-se de um texto pictórico (o autor é também artista plástico), sem renunciar à magia, ao enigma literário, em que o protagonista atravessa vários espaços em busca do pátio sem luz, no qual entra, mas nunca encontra a paz, a serenidade ou a felicidade plena que parece procurar. Destaca-se ainda “Para a desaparecida”, outro conto sobre uma aflitiva busca.

A exemplo de Mayara La-Rocque, sua conterrânea e nascida no mesmo ano, Paloma Franca Amorim (Belém, 1987; vive em São Paulo) é uma grande revelação da nova literatura brasileira, com o superlativo e contundente Eu preferia ter perdido um olho (Alameda, 2017). Além do conto título, doloroso, comovente e belo como expressão literária, há vários textos antológicos no volume, todos poéticos, surpreendentes e incisivos, como “Humanismo”, “Um samba para Maria”, “O Machado de xangô”, “Vespário”, “Os passarinhos da tua varanda”, “Portugal”, “Leal”, “Isso de deu em outubro” e “Manágua”. Fluentes como cachoeira, os textos ferem a pedra e transbordam beleza e verdade.

Pelo menos dois textos de Escrevendo no escuro (2011), de Patrícia Melo (Assis, SP, 1962; vive em São Paulo), merecem integrar uma antologia atual: o conto-título, angustiante relato de um escritor em busca da obra-prima, e “Acerto de contas”, aflitiva história sobre o que filmes idiotas da TV podem ensinar a uma adolescente – após um ato violento, arbitrário e desumano vêm o penoso remorso da mulher adulta e, por fim, a remissão pela mesma moeda. Dois contos primorosos.

Forte, instigante e singelo, o último volume de contos de Paulo Bentancur (Sant’Ana do Livramento-RS, 1957; Nilópolis-RJ, 2016), A solidão do diabo (Bertrand Brasil, 2006), reúne vários textos dignos de uma antologia dos anos 2000. Em “Música”, um primor de narrativa, forte na essência e suave na linguagem, um homem olha pela janela de casa, sente “o som do tempo”, que pode ser também o som da solidão. Um vendedor de bilhetes de loteria que não vende nenhum declara guerra ao mundo em “Convocação”: “À merda com esse governo, com essa polícia; à merda com gente que parece séria”… Em “Piedade”, um grito de indignação contra a soberba do homem, os embustes de igrejas e TVs. Esses e o melancólico “O outro filho” e ainda “Melancolia no sangue” são alguns exemplos de ótimos e atualíssimos contos de Bentancur.

No incisivo e antológico “Destino de artista”, incluído em Cenas da favela (org. Nelson de Oliveira, Geração Editorial/Ediouro, 2007), Paulo Lins (Rio, 1958) narra a disputa mortal entre dois autores de samba-enredo sobre a Transamazônica, tema que ultrapassa a ditadura militar e chega ao Brasil de hoje, “samba que só tem mentiras, que a Amazônia tá acabando, e o governo tá contribuindo com isso”.

Não apenas o conto-título de Ainda orangotangos (Bertrand Brasil, 2007), de Paulo Scott (Porto Alegre, 1966; vive no Rio), pode integrar uma seleta brasileira atual. Também desconcertantes, tensos, surpreendentes caleidoscópios da parcela sombria da vida urbana contemporânea, merecem relevo ainda “Funny Valentine”, namorada engraçada como a da música de Frank Sinatra e trágica – a cada linha uma surpresa e um susto (mistura de riso e apreensão, mentira e realidade, perigo e medo), e “Manhãs”, desajuste familiar, pai separado, filhas divididas entre amor e ódio por ele, remorso, solidão e dor, em texto paradoxalmente quase sereno. Contos cruéis com arte.

No comovente “Réveillon” Réveillon e outros dias (Record, 2012), Rafael Gallo (São Paulo, 1981) já se mostra autor maduro no livro de estreia. A solidão de um idoso viúvo que na despedida transmite ao filho a sua mais importante lição. Há algo de “Feliz aniversário” de Clarice Lispector no texto, bem como um quê de Dalton Trevisan em parte dos diálogos, mas o novo autor revela segura voz própria no estilo e na estrutura do conto, de cenas cinematográficas, a câmera passa do plano geral para o primeiro, o filho e o pai, surdo, em comunicação por sinais particulares.

Outra bela estreia é a de Raimundo Neto (Batalha, PI, 1982; vive em São Paulo), com Todo esse amor que inventamos para nós (Biblioteca Pública do Paraná, 2018). Em linguagem poética, próxima da canção, Neto trata de uma questão sensível e difícil, a homofobia, aponta sem raiva e com humor refinado a violência às vezes silenciosa, não apenas no antológico conto-título. Também o preconceito de cor e a injustiça social estão presentes no livro, crueldade e doçura lado a lado, como em “A herança da casa” – sobre uma ama de leite negra: “Maria, antes do dia acabar, enfia a noite de si na boca do menino. Tu vai ficar como meus filhos, todo cheio de coragem e calma”. Poesia em prosa da mais alta expressão, novo vigor à literatura brasileira.

No século XVIII, o personagem de “O astrônomo”, de Ramon Cardeal (Bragança, PA, 1970; vive em Belém), o mais expressivo conto de em O estrangeiro e outros andarilhos (Instituto de Artes do Pará, 2013), manda construir um “engenhoso observatório” no alto de uma torre da mais elevada colina de sua terra e reúne rica biblioteca sobre os astros. Passa a admirar “o mesmo céu que Aristarco de Samos observou”, a olho nu, há milênios. Mas sabe que os instrumentos são desnecessários para perceber que a Lua e a Terra são iluminadas pelo Sol. Doa o observatório e guarda somente alguns livros. Dedica seus últimos dias “à leitura direta da transparência celeste”, como os seguidores de Zoroastro. Só atinge a serenidade quando se lembra de que no seu corpo há elementos que também existem nas estrelas.

Ao recriar contos populares, Ricardo Azevedo (São Paulo, 1949) alcança belos resultados, como no antológico “Maria Gomes”, de Contos de espanto e alumbramento (Scipione, 2005). Em encantadora história circular, um pescador faz uma promessa arriscada em troca de “pescaria de engasgar navio”. Envolvida no trato, sua filha aceita o desafio e cumpre perigosa trajetória, com traços de Diadorim de Guimarães Rosa, até a revelação final, que é a história do próprio conto, que arrebata leitores de todas as idades.

Ricardo Lísias (São Paulo, 1975) terá seu trabalho como contista muito bem representado numa seleta atual com o inquietante e curioso “Fisiologia da memória”, de Concentração e outros contos (Alfaguara, 2015). O vaivém da narrativa, tanto no tempo quanto no espaço, com repetições e lapsos, reflete a ação cerebral que emaranha e seleciona episódios, reais ou imaginários, como em outros textos de Lísias, que tem sido considerado autor de autoficção.

Metáfora da busca da liberdade, com os inevitáveis absurdos e vaivéns da vida, o conto “Beleza”, de O professor de piano (7Letras, 2010), de Rinaldo de Fernandes (Chapadinha, MA, 1961; vive em João Pessoa, PB), em que o narrador-personagem galopa uma égua roubada em lugares inusitados, certamente entrará em antologias atuais, não só pela história, mas também prosa apurada, sem deixar de ser simples e fluente.

Entre os poucos contos atuais de inusitada estrutura, está o irônico e sarcástico no enredo e original na forma “Concurso”, de Reserva natural (Cia das Letras, 2018), de Rodrigo Lacerda (Rio, 1969; vive em São Paulo). Outro conto antológico do volume é “Santuário da Lagoinha”, espécie de retorno, com belezas e riscos, de um casal à natureza intocada, talvez algo como o paraíso bíblico.

“Eu, eu já sou de barro” e “Aos oito anos”, primeiro e último contos de Das pequenas corrupções cotidianas (Patuá, 2018), de Rodrigo Novaes de Almeida (Rio de Janeiro, 1976; vive em São Paulo), são os melhores, mais fortes e originais textos do livro. Em ambos, a angústia de uma garota, em primeira pessoa em “Eu…”, atormentada dentro do carro em que os pais brigam, e na voz do pai, no outro, sobre o dia em que a filha de oito anos “menstruou” na escola. Dois contos de arrepiar. Para antologias atuais.

Em três dos vários contos antológicos de Céu de Lúcifer (Azougue, 2003), de Ronaldo Bressane (São Paulo, 1970), “O quarto dos ventos”, “WTC/NY” e “Quanto eu morrer”, todos em primeira pessoa, há um diálogo franco, doloroso e poético com a chegada do momento capital da vida. No primeiro, o personagem-narrador, sozinho num quarto de pousada à beira-mar, treme de “febre, tesão e êxtase” enquanto batem “à porta” sem parar. No segundo, uma brasileira remonta, pedaço a pedaço, quase todo o corpo do poeta que amava estraçalhado no 11 de Setembro. No terceiro, o autor evoca Guimarães e Noel Rosa, em belo texto de uma trágica história no interior de Minas.

O conto-título do melhor livro de Ronaldo Cagiano (Cataguases, MG, 1961; mora em Lisboa) até agora, Eles não moram mais aqui (Patuá, 2015), merece figurar em qualquer antologia de contos brasileiros. De belíssimo fôlego poético, o conto aborda uma questão pouco vista na literatura contemporânea, a solidão e a aspereza da capital do país, e parece ecoar versos de “Segunda fala de Brasília”, de Alphonsus de Guimaraens Filho: […] “e em mim se projetam/ regiões desiguais,/ e vidas desiguais,/ e dores nunca iguais”. Também merece destaque, entre outros, “Esperas”, a aflição de pacientes e familiares num pronto-socorro, exposta de maneira original e vigorosa, falas entrecortadas na descrição.

O telúrico, onírico, conto à Juan Rulfo, “Lua Cambará”, de Faca (Cosac & Naify, 2003), a maior obra-prima de Ronaldo Correia de Brito (Saboeiro, CE, 1951; vive no Recife), tem entrada garantida em qualquer antologia que se faça hoje ou em qualquer época no Brasil.

O kafkiano e bem-humorado “A prisão de Homero” e o machadiano “O sobrenatural”, de Manual de tortura (Esquina da Palavra, 2007), de Ronaldo Costa Fernandes (São Luís, MA, 1952; vive em Brasília), terão presença assegurada em seleções de contos brasileiros contemporâneos. No primeiro, um comerciante honesto, homem íntegro, se julga autor de um crime (inexistente) e se impõe severa pena, passa a contar o tempo que falta para recuperar a liberdade e, por fim, tenta, de maneira curiosa, escapar de seu próprio arbítrio. No outro, um cético se deixa levar por um vigarista conhecido como Pai Bentinho. Merecem destaque, ainda, “A fábrica”, história de um arrivista, que, triturado pelo sistema, volta às filas de desempregados, e “O incêndio”, sobre um homem que faz a limpeza de um necrotério. Contos de mestre.

Cheiro de chocolate e outras histórias (Nova Alexandria, 2012), de Roniwalter Jatobá (Campanário, MG 1949; vive em São Paulo), traz alguns contos antológicos, como “Névoa do passado”, “O soldado Arlindo” e especialmente “Último sonho”. São histórias entremeadas de sonhos e pesadelos, realidade e devaneios, a vida difícil de imigrantes moradores na periferia de São Paulo, sempre mergulhados em temores e incertezas. Linguagem simples mas bem cuidada, em certos momentos poética.

Dois contos se destacam em Pequenas criaturas (Cia. das Letras, 2002), de Rubem Fonseca (Rio, 1925), “O bordado”, cruel e divertida crítica ao machismo e à possessividade feminina – a mulher obriga o homem a tatuar no pênis seu nome, Maria Auxiliadora – e “Virtudes teologais”, o conflito entre duas beatas por causa de esmolas a mendigos (verdadeiros ou falsos?) ao redor da igreja nas missas dominicais, além da alusão às desigualdades sociais.

Feito habilidoso maestro, Rubens Figueiredo (Rio, 1956) harmoniza acordes e silêncios, ciúme e inveja, lucidez e mistério em “Onde as montanhas dançam”, de Contos de Pedro (Cia. das Letras, 2006), história da amizade entre dois músicos, Pedro e uma talentosa e fraterna colega de estudos musicais, que terá presença garantida na pauta de quem vier a organizar uma antologia atual de contos brasileiros.

Inspirado na música de mesmo título de Jorge Mautner, o conto “A rainha do Egito” de Coletivo 21 (org. Adriano Macedo; Autêntica, 2011), de Sérgio Fantini (Belo Horizonte, 1961), deve ter presença certa em qualquer antologia brasileira destas duas primeiras décadas do século. Texto preciso, lapidado, traz a pulsação de um dia Sheyla, uma garota de programa feliz. A onomatopeia da cama rangendo é perfeita.

No conto-título de Doce paraíso (L&PM, 2008), Sergio Faraco (Alegrete, RS, 1940; vive em Porto Alegre) reafirma a maestria presente no hoje clássico Dançar tango em Porto Alegre (1998) e em toda a sua obra. Num clima bíblico e machadiano, um adolescente vai estudar com uma tia solteira, professora de latim, considerada na família severa e respeitosa. O garoto acaba por ler escondido o surpreendente diário dela. O final, claro, é bem diferente de “Missa do galo”. Afinal, estamos no século XXI. No esmero do texto, o grande mestre Faraco de sempre.

“A crucificação” (O livro de Praga – narrativas de amor e arte, Cia. das Letras, 2011) talvez seja o melhor conto que Sérgio Sant’Anna (Rio de Janeiro, 1941) já escreveu até hoje. O que no início parecia a culpa pelo suicídio de uma bonita mulher, Giorgya, em Praga (cidade “habitada por fantasmas demais”, segundo Carlos Fuentes) torna-se um texto místico, fascinante (permite também uma leitura cômica), de paixão do assustado amante por santa Francisca, que de bronze se faz carne e corresponde a esse afeto, com humana e delicada beatitude. Uma história que em certos momentos faz lembrar o polêmico Je vous salue, Marie, de Godard.

Entre os primorosos contos de Queda da própria altura (Confraria do Vento, 2012), de Sérgio Tavares (Niterói, RJ, 1978), autor de textos plásticos, poéticos e dolorosos, no mínimo dois terão presença assegurada numa antologia atual: “Evolam-se os barcos” (um homem se isola de tudo e todos até tornar-se invisível) e “Cerimônia” (a comovente história de um garoto sensível que sempre escolhe as roupas que veste, exceto uma).

O antológico “Carta ao pai”, de Sheyla Smanioto (Diadema, SP, 1990; vive em São Paulo), publicado na coletânea coletiva Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019), é uma versão feminina do famoso texto de Kafka, com as naturais diferenças de país, época e motivo. O destinatário do texto de Sheyla é um pai que impõe à filha o silêncio de ambos como barreira. “Alguns homens, homens como você, só falam quando estão na beira de um precipício. […] Já nos pedem silêncio demais, pai. Todos os dias.” A narradora grita: “Pai, a ditadura está voltando”. E reage: “Uma mulher quando não fala está morta, eu aprendi a gritar para continuar viva”. Um conto de alerta e resistência.

Nas duas primeiras décadas deste século, Sílvio Fiorani (Vista Alegre do Alto, 1943; vive em São Paulo) publicou em revistas vários contos antológicos que merecem ser reunidos em livro. Giram em torno da questão religiosa, especialmente o Cristianismo, tema de seus romances. São contos encantados e inquietantes, um ou outro onírico, de apurada elaboração literária, como “Dois perdidos numa noite estrelada” (Revista E, SescSP, dezembro 2017), “Concerto para cordas” (mesma revista, dezembro 2011), “O mestre dos pássaros” (mesma revista, dezembro 2006), e “Rosas de Celeridge” (A Confraria do Vento, nº 13, Rio, 2007), todos disponíveis na internet.

Um dos contos antológicos de O destino das metáforas (Iluminuras, 2011), de Sidney Rocha (Juazeiro do Norte, CE, 1965; vive no Recife), é o que dá título ao volume. Um piloto de avião de guerra sofre com a ausência de um amigo de infância desaparecido. Uma amizade de ferro, verdadeiramente solidária, em apurada harmonia entre texto e história. “Oh, há coisas no futuro, gordo, que não tem nenhuma graça sem a companhia de um amigo”, diz o personagem-narrador.

A superpremiada Stella Maris Rezende (Dores do Indaiá, MG, 1950; mora no Rio de Janeiro), especialmente na área infantojuvenil, é também uma grande contista, como atestam, por exemplo, “Os tocadores de flauta”, versão moderna do pecado sem culpa de Eva, e “Corpo tenso voz passiva”, delicioso e instigante texto sobre o claro e o escuro, de Coração brasileiro (Lemos, 2003). Contos sensíveis como tudo que Stella escreve.

A presença de Susana Fuentes (Rio de Janeiro, 19??) numa antologia atual é certa no mínimo com estes três contos primorosos: “Sumaúma e reco-reco” e “Só por hoje”, de seu Escola de gigantes (7Letras, 2005), e “Britadeira”, da coletânea coletiva Contos brutos (org. Anita Deak, Reformatório, 2019). Poético, denso, o primeiro traz a tocante história de um garoto pianista e seu gato e a volta à natureza no Jardim Botânico carioca; o segundo exala em onze linhas, qual uma flor, a fugacidade da vida (“Se não conheço o tempo não vou colher as horas”) e o momento de despedida (“Meu destino desconheço até que o dobre o sino”). “Britadeira” pode ser lido como metáfora da opressão, no tempo em que o ruído da máquina bruta tentava silenciar a arte (“…a vida sem poema nas árvores, nas ruas”) e a resistência do escritor (“Mas a palavra escapa, fura, vaza, goteja…”).

No singelo e expressivo livro de contos simbólicos Grades do céu (Libretos, 2009), de Susana Vernieri (Porto Alegre, 1965), dois textos se sobressaem. Em “O fim do labirinto”, a personagem, mulher inominada preocupada com a simbologia de cores e números, dispensa o fio de Ariadne pelo menos duas vezes em suas andanças por Porto Alegre e sucumbe-se ao Minotauro. No divertido e trágico “Da estante”, a personagem se dá mal ao se desfazer de sua biblioteca para conseguir um companheiro.

No conto “Rolex de ouro chama a atenção de bandido”, de Transversais do tempo (Bertrand Brasil, 2006), Tailor Diniz (Júlio de Castilhos, RS, 1955; vive em Porto Alegre) narra com magistral comicidade o ambiente autoritário e insólito de uma empresa pública. O chefe “Verinaice” irrita seu assessor de imprensa (e o leitor, que também ri) ao exigir, entre outros absurdos, que ele “mande” publicar na primeira página dos jornais notícia sobre a 15ª semana interna de prevenção de acidentes do trabalho, que também teria de ter cobertura da televisão. Um conto divertido que se transforma em policial. Trabalho de mestre.

Em texto sóbrio, natural e bonito, a passagem do tempo, angústia e dor atravessam os contos O tempo em estado sólido (Grua, 2012), de Tércia Montenegro (Fortaleza, 1976), como o inquietante “As paisagens” (uma artista monta guarda na galeria com máscara de cão, figura de seus quadros); o triste, doído e dilacerante “O que reluz e arde no ar” (o cotidiano de garotas num prédio de encontros); e pungente “Semelhante ao mar” (uma mulher volta à terra natal para os funerais do pai, de quem havia se afastado, e para outro encontro também doloroso). Entre outros do volume, são contos antológicos.

Além de novelista de TV, Thelma Guedes (Rio, 1962) é uma ótima contista, como se pode constatar em seu livro O outro escritor e alguns contos mais (Nankin, 2009). No belíssimo “As mãos”, tão cênico, a voz do narrador como que conduz uma câmera. Contudo, não é apenas cena o que expressa o texto. Ao unir dois momentos da existência humana, na bonita relação da avó “alquimista” e laboriosa com a netinha feliz e perspicaz, o texto traz som, sabor, cheiro, tato, calor humano – vida. Mas há o dia seguinte. Conto singelo e de esmerada fatura, merece figurar em qualquer antologia que se faça hoje no Brasil. São também antológicos “A última gota” e “O nome do diabinho”.

No mínimo quatro textos de Histórias do Rio Negro (Martins Fontes, 2007), de Vera do Val (Campinas, SP, 19??; vive em Manaus), “Das Dores”, “Águas”, “Tocaia” e “Curuminha” poderão figurar em seleta de contos brasileiros contemporâneos. Todos retratam agruras, belezas, amores de ribeirinhos amazônicos – harmonia de texto e histórias. Das Dores traz nos “olhos girassóis, nas ancas o balanço do rio, no andar a suavidade dos peixes”. Em “Águas”, a labuta de um casal já velho saudoso dos três filhos que o rio levou e do quarto que sumiu em busca de sonhos. Teresa perde o marido, José, baleado em “Tocaia”. No poético “Curuminha”, uma história de Boto do rio “sinuoso”, que corre “lascivo e sem pressa”. Na obra de Vera do Val, o brado em defesa de uma riqueza natural e humana ameaçada.

Sul (Editora 34, 2016), de Verônica Stigger (Porto Alegre, 1973; vive em São Paulo), reúne três textos de “gêneros distintos” (conto, peça e poesia), segundo apresentação na contracapa, mas o poema narrativo “O coração dos homens” não deixa de ser um conto. Um trabalho à maneira de “A montanha de vidro”, de Vida de Cidade (City Life, 1970), do norte-americano Donald Barthelme (1931-1989), traduzido no Brasil por Jaime Prado Gouvêa (Artenova, 1975). Nessa bela e divertida história sobre a encenação de Branca de neves e os sete anões, em inglês, por crianças monoglotas da pré-escola, dirigidas por professoras sem noção, Verônica apresenta o rito de passagem da personagem-narradora, marcado pelo sangue em várias fases de sua vida. Para completar, o livro traz, lacrado, outro texto, “A verdade sobre o coração dos homens” (o primeiro leitor precisa abrir as páginas com uma espátula), outra versão do conto, bem diferente, uma espécie de aula sobre como escrever um texto de ficção. Textos antológicos.

De Vento sul (Cia das Letras, 2011), de Vilma Arêas (Campos dos Goytacazes, RJ, 1936; vive em São Paulo), pelo menos dois contos podem entrar numa seleta do conto brasileiro deste século, “Zeca e Dedeco” e “O rio”. Em ambos, memória e saudade, aflição e alívio são tratados com delicadeza e arte. E da sua mais recente obra, Um beijo por mês (Luna Parque, 2018), o grande candidato é “Como se fosse eu”. Passageira a princípio resiste ao galanteio de um motorista de táxi, ambos faceiros viúvos idosos, e depois faz a ele a proposta que dá título ao livro.

No monumental História universal da angústia (Bertrand Brasil, 2005), W. J. Solha (Sorocaba, 1941; vive em João Pessoa), artista polifacetado – ator, contista, letrista, pintor, poeta, romancista –, reafirma seu talento em sete narrativas extraordinárias, não somente sobre figuras e personagens históricas, ficcionais ou mitológicas, como Lucas, Édipo e Hamlet, mas também sobre as tragédias do mundo contemporâneo, expostas em 126 angustiantes textos curtos extraídos de jornais no antológico conto “A gigantesca morgue”. Um exemplo bem atual é o de número 71: “O advogado Nivaldo Miranda – diretor de recursos humanos do Grupo Rui Barreto – comanda um processo de enxugamento, nesse conglomerado de empresas, que reduz o quadro de pessoal de 1.100 para 600 empregados. E é demitido”. Outro, o 87: “Veja como eu costumava assustar meu primo”, um adolescente mostra um revólver a um amigo. “Descarrega cinco balas no outro, deixando a sexta na arma, que leva à cabeça, apertando o gatilho.”

Nestes tempos de assassinato de rios, “A gente era pobre e feliz” e “Acerto de contas”, de Para pegar bagre de dia, é preciso sujar a água (Leitura, 2006), evidenciam o vigor e a atualidade da obra de Wander Piroli (Belo Horizonte, 1931-2006). No primeiro conto, o adulto lembra-se de seu tempo de menino, das alegres pescarias com o pai na “água sempre honesta” do rio das Velhas, sem imaginar que em pouco tempo ele se transformaria “num rio de ácido e fezes”. No outro conto, a morte lenta e cotidiana do Velho Chico – “conspurcamos seu corpo líquido com a nossa ambição e ignorância”.

O vigoroso e pungente “Fome”, de Coreografia de danados (2ª ed., Ficções, 2012), é o melhor dos três contos novos incluídos por Whisner Fraga (Ituiutaba, MG, 1971; vive em Piracicaba, SP) na reedição de seu livro de estreia publicado em 2001 com narrativas escritas até 1999. Em texto enxuto e bonito, rico em imagens, analogias e outras figuras de linguagem (exemplos: “Anjo é um delicado frenesi de proteções”; “Morrer é enfrentar remorsos de pulos e de correrias”), o conto traz reflexões de um rapaz, que se “tornava o novo homem da família”, dirigidas à irmã menor, durante o velório do pai em casa (“Não quero nunca mais ver alguém morto na copa.”). Na “fatia de voz” que lhe “açoitava a covardia”, o personagem-narrador distingue numa frase da irmã a palavra “fome”, mas “não era hora para você se entregar à chantagem do estômago”. E pergunta: “Que atitude tomar diante da verdade daquela urgência?”. Obra-prima.

***

A maioria dos contos lembrados aqui apresenta a solidão de que nos fala o irlandês Frank O’Connor (1893-1966) em The Lonely Voice (1962). Ao contrário do romance, diz O’Connor, o conto não tem herói; traz a população submersa, excluída da sociedade “normal”. Vários autores seguem o que preconiza Ricardo Piglia em Formas breves (Cia das Letras, 2004, trad. José Marcos Mariani de Macedo), o conto traz duas histórias: “um relato visível esconde um relato secreto, narrado de um modo elíptico e fragmentário. […] O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático”.

Os autores dos contos citados têm segura consciência do tempo e lugar em que eles e os personagens vivem. Em seus livros, está claro que aprenderam com Aristóteles que a verossimilhança não é a fidelidade ao que aconteceu, mas ao que poderia ter acontecido. Na maioria dos bons contos brasileiros contemporâneos, como diria um crítico acadêmico, há “um latifúndio psicológico”, em que se cruzam questões coletivas e individuais, literárias, intertextuais. É preciso acrescentar: contos surpreendentes, fascinantes. À espera de uma bela antologia.

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Hugo Almeida (Nanuque, MG, 1952; vive em São Paulo), escritor e jornalista, é autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Scipione, Prêmio Bienal Nestlé 1988), os contos Cinquenta metros para esquecer (Didática Paulista, 1996) e os infantojuvenis Viagem à lua de canoa (Nankin, 2009; PNBE 2011) e Meu nome é Fogo (Dimensão, 2007). Tem inéditos o romance Vale das ameixas e o volume de contos Certos casais. Doutor em Literatura Brasileira pela USP, com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins, fez palestra na ABL sobre a vida e a obra do escritor pernambucano: “Osman Lins, 40 anos depois, mais atual”, disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=5cf0j89AO98).

 

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