* Por Raimundo Neto *

Abas: “A navegação por abas já é – praticamente – um patrimônio dos navegadores. Pouquíssimos navegadores lançados recentemente não utilizam alguma forma de manter diversas páginas abertas em uma única janela”.

“Nem reparamos a virada do milênio (…) Já era meia-noite e vinte”. P. 199

Em Meia-noite e vinte, temos Aurora (bióloga), Emiliano (jornalista), Antero (publicitário) que protagonizam o romance. O outro protagonista é a morte de Andrei (escritor), assassinado de modo violento. Amigos que, nos anos 90, mantinham um fanzine virtual Orangotango, em Porto Alegre. A morte de Andrei, o Duque, é o que aproxima os amigos, em 2014. Andrei é uma potência da nova literatura brasileira contemporânea, e é assassinado. O outro contexto é Porto Alegre vivendo um calor monstruoso, e nas costuras do tempo, há ainda uma greve dos rodoviários municipais. Assim, três narradores vivem deslocamentos entre Porto Alegre e São Paulo, principalmente, mas cometendo viagens (algumas superficiais) pela internet: criando, pesquisando, gozando, inventando, traindo, existindo. No entanto, há mais na obra de Galera:

Voltei para a capa do livro, algo que, para mim, faz parte da obra. Na capa, as letras que definem Meia-noite e vinte sugerem um tipo simplificado de holograma. Jogar no Google e pesquisar Holograma, ofereceu-me 4.820.000 resultados, em 0,36 segundos, dentre textos curtos, alguns mitos, esclarecimentos rasos, vídeos de como fazer hologramas em casa, hologramas reais, e uma notícia de que Leifert surgirá na casa do BBB 2017 como um holograma.  Perdi alguns minutos, não totalmente imerso, mas perdido mesmo em algo que eu não precisava. Quatro milhões, oitocentos e vinte mil resultados em 0,36 segundos na busca por ‘holograma’. O quanto é possível aprofundar a respeito de holograma nessa imensidão impossível que a tecnologia/internet e suas ferramentas ofertam?

Foi difícil construir a resenha sobre Meia noite e vinte, dentro e fora dessa reflexão. Ler e reler alguns trechos do romance e anotar. Abrir o navegador e, depois de muitos cliques, espiar algo sobre Daniel Galera e descobri-lo sempre grande e elogiado. E ainda assim constatar que Meia-noite e vinte é uma obra de figuras de linguagem empobrecidas, personagens de profundidade questionável, embora uma escrita cuidadosa de um jovem escritor talentoso. Talvez esse seja um dos méritos do autor de Barba ensopada de sangue: assumir a internet e todas as suas abas escancaradas de superficialidade para emprestar aos personagens uma profundidade limitada.

Aba 1: Na extensão do romance, existem muitas menções sem profundidade e função sobre twitter, facebook, instagram, pixels, transferência de arquivos, compressão de vídeos, streaming, perfil no Playstation Network, jogo Skyrin, MacBook, tumbrl, Skype, whatsapp, memes, Ipad, virais, Iphone, Gmail, Google, Youtube, likes, mensagens in box, MySpace, StumbleUpon, AskFm, Formspring, aplicativos como SprintRun, gifs animados, leitura de posts, emoji com olhinhos piscando, perfil no chatubartes.

Aba 2: São inúmeros clicks em links dispersos abrindo-se em vozes que narram um apocalipse vencido, ultrapassado, num rastro de superficialidade impressionante, a cada página. Três personagens narrando suas experiências presentes e passadas, e todas as expectativas antigas, projetadas num futuro de agora, e todas as suas abas que despencam a cada like. De todas essas novidades contemporâneas avançadas, citadas e nem tão exploradas, apenas mencioná-las ao longo do romance não torna a obra um arroubo de “um novo formato de fazer ficção”.

Aba 3: Galera é um bom escritor contemporâneo. Escrevi Daniel Galera no Google e: 550.000 resultados em 0,44 segundos. Prêmios, divulgação massificada em inúmeros veículos. Gente famosa. Muitos elogios. E em Meia-noite e vinte, ele não se perde completamente nos modos de produzir possibilidades de bons debates sobre tecnologia e um apocalipse perdido nas mãos de uma juventude antiga que lamenta nas linhas renovadas da internet sua capacidade de ser passado.

Aba 4: Há, em alguns momentos, um didatismo desencorajador, nos discursos dos três narradores. É possível entender que o autor realizou pesquisas comprometidas sobre temas diversos (Sade e biologia, propaganda, manifestações apartidárias, por exemplo) e soube aplicá-las na construção do romance; calculou o didatismo dos temas que se apresenta na construção dos personagens, no entanto, deixou muitas abas abertas padecendo de superficialidade.

Aba 5: As demasiadas descrições e reflexões existenciais dos personagens fazem desacreditar a profundidade das mesmas, considerando as potencialidades dos dramas nos quais os personagens estão tentando manter-se imersos.

Aba 6: São três personagens centrais os narradores: personagens adultos perdidos em reflexões de wikipedia: nem tão disparatadas e também questionáveis.

Aba 7: Tem algo de engenhoso também na construção deste livro; as camadas que quase funcionam, quando o personagem Antero descreve e analisa 120 dias de Sodoma, de Sade, como uma narrativa algorítmica, utilizando-se dessa interpretação para o contexto do fluxo de informações e construção de narrativas em comerciais e propagandas, venda de produtos que chegam a “usar Sade para vender lenços de papel” (p. 86).

Aba 8: A tensão pré-milênio é referida no romance pelos personagens-narradores apenas como expectativa, como sensação ultrapassada, um ranço na alma. O apocalipse que nunca chegou é chiado distante num tentativa de se conectar com o futuro.

Aba 9: Três homens e uma mulher. Um homem morto. Dois quase vivos, e uma mulher prestes a viver um aborto.

Aba 10: Citar em passant protestos contra o aumento das passagens de ônibus em Porto Alegre, em 2013, é suficiente para tornar um livro atual? E as menções a redes sociais e mensagens de whatsapp faz de um livro um projeto contemporâneo?

Aba 11: A escrita de Galera mostrou-se potente em Barba ensopada de sangue. Mas Meia-noite e vinte está perdido em tantas vozes ecoando em menções dispersas sobre quase tudo que existe de contemporâneo e moderno em tecnologia, redes e transmissão de dados.

Aba 12: Debates pelo facebook. Perfis falsos no twitter. Sites de pornografia. Punhetas rápidas, traições virtuais, e um professor que abusa de uma talentosa e melancólica aluna da USP. Menções superficiais sobre partidarismos e críticas a Dilma e ao antipetismo festivo. Temas potentes, possíveis de serem explorados em profundidade, todos perdidos em um romance que talvez tentou explorar intertextualidades entre mídias e outros gêneros.

Aba 13: Não é apenas o didatismo bem ajustado na fala de alguns personagens ao explanarem sobre suas ideias de mundo que traz certo desconforto. Quando a personagem Aurora pretende explicar o funcionamento do oscilador central do relógio biológico da cana-de-açúcar não a faz uma mulher distante de um estereótipo feminino. Da mesma forma, Emiliano ser um homem com perfil diferente de um gay afeminado, que tem uma preferência por um perfil específico de homem para se relacionar, que se arrisca, às vezes, a dançar Madonna e paquerar homens na rua só para ter o corpo quase estraçalhado por socos e outras agressões, não é um modo de romper estereótipos. Nem creio que o autor tinha tal intenção. Pois os modos de enxergar o mundo (o passado potente e o presente frustrado) de Aurora, Emiliano e Antero é uma forma de manter os personagens no rótulo pelo avesso.

Aba 14: Ou seja: Muitas abas abertas tratando assuntos variados, atenção dispersa, de forma superficial, profundidade questionável. Nem tão fundo e longe da superfície.

Abra 15: O romance mantém um formato tradicional de narrativas contemporâneas com menção ao que é recente, no entanto, os elementos são aplicados na tentativa de contextualizar e explicar a provável superficialidade dos personagens. Os temas surgem realmente para contextualizar a contemporaneidade? Como se a modernidade estivesse apenas nas marcas e produtos e não em como as relações e seus humanos modificam-se a partir dela.

Aba 16: “Era tudo tão insólito que as imagens ganhavam um estranho peso metafísico”. Pág. 65

Aba 17: Estão presentes na obra possíveis explanações filosóficas e existenciais sobre o fim do mundo e o progresso tecnológico. E existe, sim, através das narrativas de Aurora, Antero e Emiliano um presente melancólico e desesperado, com um caráter de desesperança, construído com determinação por Galera.

Aba 18: Algum pessimismo nos personagens, mas a menção ao passado e o presente através das redes sociais, aplicativos diversos, manifestações de junho de 2013, não constrói profundidades que sustentem as reflexões que os personagens tentam levantar sobre si e sobre o futuro.

Aba 19: As narrativas não chegam a produzir elipses ou perspectivas muito diversas que diferenciem características marcantes dos personagens e suas peculiaridades. Só se percebe que são três narradores pelas indicações dos próprios, mas não por uma construção de narrativa. Na passagem dos capítulos, a impressão é de que uma única voz relembra a presença da morte de Andrei/Duque, bem como a velhice da Orangotango. Mas talvez isso caracterize partes da contemporaneidade: saber muito pouco sobre muitas coisas é avançar para o futuro.

Aba 20: O romance possui amplitude, mas não profundidade.

Aba 21: Personagens doloridos, melancólicos, imersos num mormaço rarefeito, mas que não transmitem tais angústias em suas narrativas de modo marcante.  Uma realidade obscura insinuada através da fina camada do superficial.

Aba 22: Aquilo que poderia apontar para desconstrução dos rótulos de alguns personagens chega ao leitor como uma construção apressada, no limite do clichê e do didatismo, embora o autor se mantenha sem extravagâncias na linguagem, sem vacilar ou acentuar o “aspecto artificial de sua arquitetura linguística” (Karl Erik Schollhammer).

No final de todas as linhas todos os cliques, Meia-noite e vinte é um romance que gera 504.000 resultados, em 0,49 segundos, quando digitado no Google. É um livro razoável, médio, pelas possibilidades de reflexão sobre todos os muitos temas levantados.

Meia-noite e vinte, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 208 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

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