* Por Corinne Klomp *

Ela não é uma amiga.

Entre nós duas, nem se trata sequer de uma relação amigável. Não temos nenhum vínculo sentimental. Só temos um vínculo de proximidade. Todo dia respiramos o mesmo ar. Fresco, poluído, quente, usado… O ar do pátio dos nossos respectivos prédios. Moramos bem perto. Pertinho mesmo. Mas não juntas. Ela é minha vizinha. Minha, não, acho o pronome estranho. Enfático. Infantil. Queria dizer, uma das vizinhas que moram no meu bairro. No meu perímetro de sobrevivência. Na minha quase intimidade. Uma vizinha dentre outras. Uma vizinha qualquer sim, mas uma pessoa única. Portanto prefiro chamá-la de aquela vizinha.

Aquela vizinha, então.

Eu nunca falei com ela. Já lhe dei um oi, tipo: « Bom dia, tudo bem? ». Foi isso. De vez em quando, ao abrir a janela da cozinha, a vejo na cozinha também, mas na cozinha dela. Do outro lado do pequeno pátio que nos separa como uma fronteira invisível. Outra vida, outra perspectiva.

Como é que ela me vê?

O que acha do meu perfil, das minhas costas? O que ela está ficcionando sobre mim, a partir de tudo o que já conseguiu captar: trechos breves da minha vida, expressões fugazes da minha cara, cheiro insólito da comida que estou preparando? Gostou do meu novo corte de cabelo? Detestou? Não sei, nem quero saber.

E eu, como é que a vejo?

A maior parte do tempo ela só me parece o que ela é: um outro ser humano com desejos, medos. Cheio de alegria ou saudade, depende dos dias, da corrente da vida. Mas de vez em quando, eu me vejo nela. É ao mesmo tempo assustador e fascinante. Percebo nela a mulher que serei daqui a vinte, trinta anos. Nesses momentos, quando projeto meu futuro na visão que tenho dela, eu me deixo invadir por uma multidão de perguntas.

Como ela se sente hoje?

O que fez ontem, antes de dormir? Leu um livro? Assistiu a um filme? Se masturbou? Gozou? E agora, o que ela está a cozinhar? Será que convidou familiares para almoçar, para jantar? Ainda tem familiares? Amigos? Ainda tem prazer? Come carne, come peixe? Será que tem alergias? Ao glúten, à lactose, ao passar do tempo? Aos mariscos, aos maridos? Já foi casada? Quantas vezes? Já foi feliz? Quantas vezes? Tem filhos? É viúva? Eu acho, pois ela mora sozinha. Enfim, suponho. Nunca vi uma outra pessoa na cozinha dela. Nunca. Até esse dia de setembro…

É um dia como os outros.

Eu me lembro bem. Estou na cozinha, preparando o café da manhã, ouvindo um programa cultural qualquer no rádio. De repente o som de uma voz desconhecida me tira da minha rotina de comida. Fico intrigada. A voz de um homem, jovem, que provém do pátio. Eu viro as costas e ele está lá, na cozinha dela, com um outro homem, ainda mais jovem. Os dois, sem aquela vizinha. Pela janela aberta já entendi tudo: eles estão examinando o lugar, logo vão começar a reformá-lo. Mas ela, a moradora, cadê? Onde foi parar? Desapareceu? Por que ela não está lá para verificar se tudo vai dar certo, para transmitir aos dois operários as últimas recomendações? Não acho isso normal. De jeito nenhum. Nossa, será que ela…?

Aquela vizinha morreu.

Ao longo dos dias, a certidão implacável anda crescendo nos meus pensamentos. Impossível encontrar uma outra razão justificando o apagamento dela. Era velha demais para querer obras no apartamento. Como se sabe, os idosos não desejam mais nada. Exceto reclamar sem parar. E sugar o tempo livre dos jovens. Além disso, o que adiantaria fazer obras nessa cozinha? Especialmente esse tipo de obras, com uma reforma total do lugar: pintura, eletricidade, mudança dos móveis, dos eletrodomésticos… Ninguém consegue comer nem sentar ainda menos viver num lugar parecido. Apertado demais. Escuro demais. Eu posso falar, tenho o mesmo modelo de cozinha em casa. Não, decididamente, não dá.

A morte explica o inexplicável.

Explica tudo. Tudo se encaixa no caixão. A vizinha era inquilina, sem dúvida. Quando ela faleceu, o proprietário – ou a proprietária – decidiu metamorfosear o apartamento. Com o objetivo de alugá-lo depois a um preço mais alto. Pura, nítida, fantástica lógica capitalista. A morte de uns nutre a riqueza de outros. E vice-versa.

Eu sinto raiva.

Todo dia eu vislumbro os operários na cozinha. Trabalhando, assobiando, brincando. Como é que eles ousam rir assim? Na cozinha de uma morta esfriada há pouco. Que falta de respeito! No planeta azul, tem uma única pessoa pensando naquela vizinha. Com saudade e afeto. Sou eu. Só eu. Tento refazer pelo avesso o filme dos últimos meses da vida dela. Sou leiga em viagens espaço-temporais mas me entendo bem com a imaginação. Portanto, vou me lançar numa série de flashbacks potenciais.

Primeira opção: melodramática.

Nesses últimos tempos, ela está bem cansada sem saber por quê. Faz uma bateria furiosa de exames: sangue, tomografia, ressonância magnética… Talvez ela aproveite esse período para voltar para o psicanalista que não vê há séculos. O corpo, a mente e as células dela passam pelo crivo dos maiores experts. Na verdade, pouco plausível. Acho que, cereja do bolo, ela ganha uma aposentadoria ridícula. Seja como for, o veredicto-bomba de qualquer médico em fim de carreira explode: câncer. Incurável. O psicanalista tenta aliviá-la. Mas nessa época o especialista do mal-estar é corno, e tem sérios problemas com álcool e droga. Por causa disso, ou dele, aquela vizinha despenca numa depressão. Além do câncer. Uns meses de sofrimentos e de choros mais tarde, ela zarpa para a terra do descanso perpétuo. Sozinha.

Segunda opção: melodramática bis.

Uma noite quentíssima de verão. As temperaturas na cidade, quer dizer, no mundo, batem recordes inéditos. Aquela vizinha deixa a janela da cozinha escancarada. Pela primeira vez. Que erro!  Não tem mais ninguém no prédio. Todo mundo tirou férias. No mar, na montanha, no campo ou no hospital. No meio da noite, um ladrão ambicioso surge no pátio. Apesar da escuridão, ele repara na janela aberta. Que sorte! O cara escala a fachada até o quarto andar, sem problema. Como se fosse o clone do homem-aranha, versão maléfica. Ele adentra a cozinha e se depara com… aquela vizinha. Que horror! A coitadinha está ressequida, procurando água na geladeira. Infelizmente, o intruso não é o clone do homem invisível. Por uns instantes, os dois se entreolharam sem trocar uma palavra. A estupefacção preenche o ar. Ela berra. Ele fica apavorado. Ele não sabe que o prédio está vazio. Ela berra. De novo. Ele pega da pia uma panela, cheia de água. Dá-lhe uma pancada só, atrás da cabeça. Antes de desmoronar, ela sente a frescura da água pingando nas suas bochechas. Morre sorrindo. Por causa do aquecimento global.

Terceira opção: ficção científica.

Durante uma viagem de lazer interplanetária, dois marcianos enfrentam sérias disfunções do GPS. Portanto, eles têm que se guiar no espaço usando um mapa básico. O incidente cria entre os dois uma tensão e, o pior, uma discussão. Formam um casal, é bem provável. Eles brigam, eles gritam, e ao final se enganam de destino. Prova disso: pousam o disco voador no quarto daquela vizinha, em meio à cama dela. É um minúsculo disco voador, sim. Ou uma cama gigante, depende do orçamento geral do filme. Logo depois da aterrissagem, ao descobrir a vizinha toda intacta mas trêmula na cama e a decoração murchada do quarto dela, eles entendem de repente o significado da palavra saudade. Decidem consertar o GPS assim que possível, e voltar para o lar marciano. Ainda faltam nessa história umas voltas e reviravoltas sem maior interesse, bem como os efeitos especiais. No clímax, aquela vizinha embarca sã e salva no disco voador. Junto com o casal. Pois o GPS estragou para sempre, mas ela tem bom senso de direção. Desde então ela vive no planeta vermelho com os dois aliens, num trio. Aos olhos do universo ela não está morta. Mas para uma moradora básica da Terra, como eu, é difícil de engolir.

Quarta opção: ideal.

Ao menos do ponto de vista de um ser vivo fantasiando a morte.

Aquela vizinha se deita para dormir. Dorme logo. Nunca mais vai acordar.

Isso não dará um bom filme, de jeito nenhum, mesmo que não vá custar nada.

Fim dos flashbacks.

Eu sinto culpa.

A famosa culpa judaico-cristã de não ter cuidado daquela vizinha. Não me comportei bem. Por negligência, egoísmo, falta de tempo ou falta de coragem, tanto faz. Eu agi como todas as pessoas que nunca agem. Eu mereço um castigo exemplar, tipo… Ainda não faço idéia. Ah, talvez eu possa usar o açoitinho que meu ex me deu de Natal, com outros brinquedos sexuais. Nós nunca o experimentamos, pois nossa relação acabou no Ano Novo. Vale a pena tentar sim, mas fico na dúvida. E se por acaso eu tiver prazer me autoflagelando? Não dá para contar como uma punição, né?

Eu sinto raiva.

Mas dessa vez, daquela vizinha.

Ao desaparecer ela roubou uma parte de mim. Sem avisar. Como é que ela ousou me abandonar? E me deixar sem espelho, reflexo do meu porvir? Egoísta! Egocêntrica! Os idosos são assim, só se importam com eles mesmos. Aquela vizinha morreu? Beleza, boa viagem!

« Bom dia, tudo bem? »

Quem é que está falando comigo? Não consigo nem tomar um chá na minha cozinha sem que alguém venha me incomodar. Insuportável.

Eu me viro com cara de poucos amigos e vejo… aquela vizinha. Na cozinha reformada. Com um novo corte de cabelo. Sorrindo. Viva.

Fico boquiaberta.

Ela insiste: « Bom dia, tudo bem? » Viva.

Estou prestes a desmaiar.

Ao cair no chão, ainda percebo a voz dela. Suave. Carinhosa.

« Não se mexa, minha querida! Vou chamar o SAMU. Conte comigo. Sempre. »

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Corinne Klomp é autora francesa e mora em Paris, França. Escreve peças de teatro, roteiros (televisão e cinema), e ficções para a rádio francesa France Inter. Faz parte do Conselho de Administração da Sociedade de Compositores e Autores Dramáticos (SACD) do seu país. Tem grande paixão pelo Brasil e pela língua portuguesa. Começou a aprendê-la ao fim do 2014, depois de ter dado sua segunda oficina de roteiros, no Rio de janeiro, no Festival Varilux do Cinema Francês. Desde então escreve crônicas e contos em português

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Foto ilustrativa: escultura de Romain Langlois

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