* Por Nilma Lacerda *

Arte islâmica por excelência, a caligrafia revela no próprio nome o vínculo com o desenho: em árabe, Khatt, do verbo Khatta, significa traçar uma linha. Em um tempo afeito à pressa e ao consumo volátil, o calígrafo libanês Moafak Dib Helaihel traz às paredes do Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro uma forma de caminhar pela vida em que o norte pode estar na ponta de um cálamo embebido em tinta.

Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 2010.

A exposição Islã tem o foco na caligrafia e nas artes visuais e oferece ao visitante delicadeza, opulência, sabedoria, a importância da expressão em face da vida. Exemplares do Corão, azulejos de cerâmica, tinteiro e lâmpada de cerâmica, cálamo e porta-cálamo de cobre e ouro, peças que vêm do século IX até o presente e nas quais se incluem tábuas de escrever do Marrocos, atestam a pujança cultural de uma civilização que muito tem contribuído para a riqueza cultural do Ocidente, em representações do mundo pautadas pelo ornamento e pelas dimensões reduzidas, em íntima aliança entre escrita e pintura. O mundo para caber num desenho. O mundo como sede de beleza e lugar de busca do conhecimento: a primeira palavra revelada ao profeta Muhammad foi “Lê” (Iqra). “Buscai o conhecimento ainda que na China”, “Buscai o conhecimento do berço ao túmulo”, “A tinta do sábio vale mais que o sangue do mártir” são alguns dos provérbios a evidenciar a opção pela cultura letrada e seu legado.

Em belo azul-turquesa, Helaihel escreve nos estilos farsi, thuluth jali, tughra, diwani jali e cufi, a sentença que toma como exemplar: “Deus facilita e não dificulta”. Outras máximas, em poesia, como no primeiro texto dos textos abaixo e em prosa nos demais, reafirmam a razão de ser dessa íntima relação entre mão, superfície, tinta e pincel – conhecer, procurar saber, reconhecer.

Para onde iremos após a última fronteira, para onde

voarão os pássaros após o último céu?

O futuro pertence àqueles que acreditam na beleza de seus sonhos.

Cria o que vocês não conhecem.

Confiro a última frase na caderneta de viagem. Apesar de corrida, a letra está bem legível e apresenta o erro de concordância. Na transcrição para esta página, mantenho o anotado, sem saber a origem do equívoco, se na tradução, no processo para plotagem ou se em minha própria cópia.

A maior parte dos objetos para esta exposição provém de museus da Síria e do Irã, enquanto objetos do norte da África procedem da BibliAspa (Biblioteca América do Sul-Países Árabes) e da Casa das Áfricas, instituições sediadas em São Paulo. Obras de artes visuais provêm de coleções privadas ou museus de Londres, Nova York, Paris. Entre o antigo e o novo, o distante e o próximo, dois dos objetos travam um diálogo inesperado. Uma página do Sagrado Corão, manuscrito do século IX, uma produção de arte contemporânea de Kamel Yahioui.

A “Surata da Luz” escrita em pele de gazela é parte do acervo do Museu Nacional de Damasco. Os vigias (em memória de Tahar Djaout), é uma antiga máquina de escrever cujas teclas, em vez de expor as letras, mostram balas de variados tamanhos e calibre, apontadas para cima, e pertence a uma coleção privada em Paris. É uma instalação de Yahioui, em homenagem ao jornalista e poeta argelino assassinado em seu país, em 1993, em crime jamais elucidado e atribuído aos radicais islâmicos. Autor do romance Os vigias, publicado em francês em 1991, traduzido ao português em 2004, Djaout lutava por um país laico e democrata, em que todos pudessem respirar e pensar livremente.

A surata e a máquina de escrever que mata me conduzem à procura da lâmpada, mágica ou não, que na justeza da escrita me dê a justiça da luz. Ofereceria de bom grado a pele para entregá-la, pergaminho, à verdade, que segundo Maomé aparecerá como resultado de boa escrita. Insha’Allah.

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Nilma Lacerda é escritora