* Por Marcos Peres *

 

 

No reason to get excited 

The thief he kindly spoke 

There are many here among us 

Who feel that life is but a joke” 

(All along the Watchtower – Bob Dylan)

Todos nós somos fantoches, Laurie. Eu apenas sou um fantoche que consegue ver os fios.”(Doutor Manhattan –

Watchmen)

Um dos mitos mais reproduzidos pela literatura, sem dúvida, é a possibilidade de acordar-se com as forças malignas. Ao contrário do divino, muitas vezes incerto, ausente ou morto, o Demônio tem sido motor propulsor de muitas ficções desde que Dante se viu perdido em uma selva escura e Milton perdeu o paraíso.

Talvez a razão principal da frutificação deste mito seja a possibilidade do contrato. É recorrente na Tradição literária que Satanás tem muito a dar, mas também deseja algo do pactário – invariavelmente sua alma, no além-morte. E o que recebem os contratantes? Dorian Gray exigiu a estática juventude; Adrian Leverkühn, do Doutor Fausto,de Thomas Mann, pleiteou genialidade musical; Macário, de Álvares de Azevedo, recebe a visão aérea de uma São Paulo incipiente e fantasmagórica, Riobaldo Tatarana pediu por coragem em sua travessia. Os pedidos variam, de acordo com o tempo e o local, mas, se é possível formular uma teoria geral do contrato com as forças malignas, talvez seja essa: dá-se o que têm; pleiteia-se o que pode. Normalmente, algo a ser usufruído pela curta vida terrena. E aqui, ao falar de uma teoria geral, impossível não mencionar o Fausto,de Goethe.

O mito de Fausto é antigo e fecundo. Nasce com o Fausto histórico, que segundo a tradição, viveu em Colônia, Alemanha. Quase cinquenta anos mais tarde, surge a versão literária de Spiess. E, em seguida, a de Marlowe. Mas é com Goethe que o Fausto se tornará paradigma.

Por si só, o mito seduz por sua humanidade: ter o que não se tem, ter o que não se teria através de uma ruptura do status quo, através de um contrato proibido – um contrato que sempre ecoará no fruto proibido do conhecimento e na consequente queda do paraíso. Ao contrário de seus antecessores, o Fausto, de Goethe, não encerra apenas a sorte dos pactários. Assim como o Dom Quixoteé lido como metáfora do surgimento do romance e da ascensão da burguesia, Fausto, de Goethe, pode ser interpretado como um contrato (diabólico, claro) de uma sociedade que anda impreterivelmente para frente, rompendo-se consigo mesmo e desejosa para evoluir cada vez mais.

Marshal Berman, em seu ensaio Tudo o que é sólido se desmancha no aranalisa o Fausto de Goethe e conclui que este é mais amplo e mais profundo porque o contrato não visa apenas mudar o personagem-protagonista. Ao contrário, o objeto de transformação (de ruptura) é o mundo todo: um mundo que se distingue dos seus antecessores por seu dinamismo, por sua riqueza, por seu impulso de seguir adiante, desenvolvendo-se cada vez mais. Para evoluir, esquecemos de nossas antigas crenças, não nos envergonhamos de contratar com o próprio Mefisto, seguimos rompendo com o velho e com as tradições em busca da evolução. Tal contrato não é assinado apenas por Fausto, mas por toda a modernidade. O pacto foi assinado, e é indissociável à força motriz que roda a História. Todos nós somos pactários – ou como diria um outro arauto da modernidade: há esperança. Mas não para nós.

No entanto, ainda que sejamos partícipes do contrato com o Coisa-Ruim, Berman vê um alento. Este homem fáustico (este homem moderno) que insiste em caminhar para frente sem piedade, sem solidariedade, sem compaixão, encontrará no desenvolvimento a justificativa para romper não só com o passado e com seu semelhante; no fim, instaurada essa nova sociedade, regida por Lúcifer, Fausto inevitavelmente romperá consigo mesmo: após destruir as tradições, as relações primitivas e os laços da sociedade, ele inevitavelmente se destruirá. O porvir do Fausto é o início da era do homem fraterno e justo. Na leitura socialista de Berman, parafraseando Marx, a solidez da modernidade se desmanchará no ar, criando as condições necessárias para que a classe trabalhadora emerja ao poder.

O Século XX, no entanto, com suas experiências políticas, seus totalitarismos e seus pensadores, derrubou o alento do princípio da modernidade. O sombrio olhar dos pensadores do Século XX para com seu tempo e espaço não foi capaz nem mesmo de poupar o pacto com Satã. Para Marcuse, o homem moderno é uma massa informe, sem vontades, sem princípios. Mesmo suas motivações são falsas, artificiais condutas volitivas, já inseridas em um modelo totalitário que destina domesticar as revoltas humanas. Seu Homem unidimensionalé o homem que não consegue mais, sequer, pactuar com Belzebu; não consegue mais porque a “atitude volitiva”, elemento determinante em qualquer manual de teoria contratual, não estará mais presente.O homem não sente mais vontade.

No mesmo sentido, Foucault, com sua tara por hospitais e prisões, não trata de outra coisa senão do homem incapaz de escolher. O modelo de carceragem que estuda é o Panóptico (ou Pan-óptico, ou aquele que tudo vê). Tal modelo (cuja única prisão da América se encontra em Cuba, na Ilha da Juventude) teve Bentham como um de seus idealistas e previa a possibilidade de um único carcereiro conseguir vigiar uma quantidade grande de encarcerados (mantidos em forma circular). A vigilância é pressuposto da punição, sabia Foucault. O totalitarismo das sociedades panópticas não se dá de maneira ostensiva; ao contrário, faz uso das aspas para criar a ideia de que somos livres em nossas escolhas. Não apenas uma forma específica de Governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e distribuição que bem pode ser compatível com o “pluralismo” de partidos, jornais, “poderes contrabalanceados” etc, diz Marcuse;

E, neste contexto, qualquer crítica, qualquer tentativa de rebelião já nasce morta, dentro da terrível máquina panóptica. Todas as tentativas de ruptura são sistêmicas, já previstas e propositalmente inseridas no seio da sociedade, como meio de domesticação e vigilância. Mesmo as nossas tentativas mais diabólicas de rebelião não passam de encenação; neste teatro, somos fantoches de um grande titereiro, que não cansa de nos vigiar. Mas quem vigia o vigilante?

O leitor pode imaginar que o assunto é tergiversação especulativa; que o contrato com o Demo (ou a sua impossibilidade) não altera em nada nossas vidas práticas. No entanto, há que se lembrar que vivemos assinando contratos. A cada “Li e aceito os termos” que marcamos ao ingressar nas redes sociais, ainda que sem ler, fazemos eco a Fausto. Damos aquiescência, permitimos que parcela de nossas vidas seja controlada. Ainda relembrando Foucault, o modelo Panóptico não apenas visa repreender o sujeito punido, mas usar da recompensa como maneira de domesticação, como meio de induzi-lo a uma determinada conduta. Não é uma fórmula atual de vigilância? “As pessoas eram recompensadas por participar do Stasi, o órgão de segurança da Antiga Alemanha Oriental. E hoje são recompensadas por participar do Facebook. Só que no Facebook elas são recompensadas com créditos sociais – ir para a cama com a vizinha – em vez de serem pagas diretamente. E é importante relacionar esse fenômeno com o aspecto humano, porque ele não se restringe à tecnologia, é uma questão de controle de por meio da vigilância. Em certos aspectos, é o panóptico perfeito”, diz Assange, fundador do Wikileaks, no prefácio do livro Cypherpunks.

A previsão soa hiperbólica, quase apocalíptica, sei. Nenhum usuário imagina que seu humilde aceite possa acarretar qualquer tipo de problema. No entanto, um fato que mostra a gravidade do contrato foi o vazamento de dados do Facebook para fins eleitorais, no começo de 2018.

Neste caso, confirmou-se que uma empresa (Cambridge Analytica) criou um aplicativo de perguntas (this is your digital life), que previa o consentimento do usuário no compartilhamento de seus dados pessoais. Volta-se mais uma vez ao Fausto, ao pacto, à interpretação de Goethe sobre o ato volitivo de assinar uma proposta. Por uma suposta falha de sistema da rede social, a empresa Cambridge Analytica conseguiu não apenas os dados dos usuários do aplicativo This is your digital life, mas também dos amigos e dos amigos dos amigos das pessoas que anuíram em ceder os dados. Na prática, 270 mil pessoas usaram o aplicativo e 87 milhões de pessoas tiveram seus dados pela empresa Cambridge Analytica, de acordo com reportagem do Channel 4, da TV britânica.

Estes dados foram utilizados para o mapeamento das pessoas e para tracejar perfis mais eficientes de manipulação ideológica. Utilizando-se de câmeras escondidas, um repórter, fingindo representar um partido do Sri-Lanka, perguntou como a empresa Cambridge Analytica poderia auxiliá-lo em seu pleito. A resposta deste caso concreto parece vir das piores admoestações de Vigiar e punir. A empresa afirma que eleições modernas não são vencidas com dados, mas sim explorando medos e esperanças. E a abordagem aos usuários deve ser feita de modo que não pareça um informe pago, mas uma notícia qualquer, que por acaso foi compartilhada na linha do tempo do usuário. Vale lembrar – apesar de não ter sido confirmado a efetividade da participação – a Cambridge Analytica participou dos pleitos do Brexit e da campanha eleitoral de Donald Trump.

O uso de dados confidenciais tem sido utilizado para a manipulação de resultados eleitorais, capazes de alterar a ideia da soberania e as diretrizes e agendas dos países. Enquanto isso, paira no ar a falsa ideia de que a internet e as redes sociais têm um papel integrativo, politizador, educativo; de que aceitamos ou rejeitamos compartilhar dados confidenciais; de que estas informações não serão usadas para fins diversos do que foram propostas. Pela ótica de Foucault, o panóptico está vigente, em pleno funcionamento. O Fausto de nosso século entra por nossas próprias trincheiras; sabe o momento certo e a forma adequada para nos convencer que precisamos do líder mais conservador ou do cereal sem açúcar. Sabe de nossas conversas, escuta nossos planos mais íntimos, perscruta-nos atrás de sua invisível teia; em um momento de descuido, propõe-nos o trato. Como o Mefisto polido que apareceu para Adrian Leverkuhn, o príncipe das Trevas (que é um cavalheiro) dirá que há uma proposta. E que podemos aceita-la ou não.

No entanto, não aceitar os termos do contrato infelizmente não nos excluirá da força maligna do panóptico.

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Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler(prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

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Imagem: Cena do filme Faust (2011), de Alexander Sokurov

 

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