* Por Cynthia Garcia *

No poema anti-épico “A máquina do mundo”, de 1949, o renomado poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade revela o mecanismo do mundo enquanto o indivíduo permanece como um enigma. Assim como Drummond, a instalação Peso-contrapeso, da artista conceitual paulistana Marcia Pastore, bebe na fonte da teoria helênica e renascentista de que o mundo é uma máquina. Peso-contrapeso põe a nu um complexo e desconcertante mecanismo criado para executar um impressionante jogo de tensão ao traçar linhas com cabos de aço no vazio do espaço arquitetônico, que é um dos temas recorrentes de Pastore, assim como experimentações na engenharia civil.

Juntamente com os cabos de aço, intercalam-se roldanas, canos de latão e pesos para criar linhas em zigue-zague que desafiam a experiência da arquitetura modernista ao transformar a estrutura espacial em uma experiência territorial indiscernível de completudes e vazios. Peso-contrapeso levita e desafia a gravidade ao refletir sobre o mundo que nos cerca e nossa relação com o espaço construído que nos protege, confunde e provoca.

Em 2012, Peso-contrapeso recebeu o prêmio Funarte de Arte Contemporânea – Galerias Funarte de Artes Visuais, São Paulo. A Funarte é a Fundação Nacional de Artes do Brasil.

Ficha Técnica
Marcia Pastore, Peso-contrapeso, 2012/2019, canos de latão, argolas de ferro, roldanas, cabos de aço, pó de mármore, braçadeiras e couro.

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Há uma forte correspondência conceitual nas duas obras apresentadas por Pastore. Enquanto Peso-contrapeso (acima) investiga o espaço e é concluído no corpo do espectador, que vivencia uma coreografia inconsciente para explorar o ambiente instalativo por dentro ao saltar sobre seus complexos cordões tensionados em zigue-zague, Frestas em máquina (abaixo), pelo contrário, investiga a escala humana, porém seguindo a trajetória oposta: começa no corpo e desloca-se para o espaço.

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As experiências com partes de seu próprio corpo são a base da obra da artista Márcia Pastore, na forma de relevos antropomórficos que desafiam a forma humana através de experimentações com superfícies côncavas/convexas e opostos positivos/negativos. Em Frestas em máquina, a artista começa por empregar um item básico tradicional da escultura: o molde em gesso. As frestas em questão são matrizes ocas moldadas a partir dos vazios de posições corporais contorcidas apropriadas da própria Pastore, que coloca em contato partes que de outro modo não se tocariam, violando assim a anatomia da fêmea homo sapiens para constituir uma nova equação corpórea que enfatiza frestas/vazios sensuais inexplorados. Depois que os moldes de gesso das frestas endurecem, eles são moldados em dois materiais diferentes: bronze e resina de poliéster. Enquanto a matriz metálica é polida a ponto de adquirir acabamento de joia, a resina de poliéster confere transparência e pureza ao conjunto de moldes de gesso.

As frestas moldadas de bronze polido pairam sobre a cama/plataforma feita de puro gesso em pó. Imediatamente abaixo de cada fresta de bronze, sobre a “cama” puramente branca, repousa a respectiva fresta moldada em resina de poliéster transparente. Neste ambiente branquíssimo também há cavidades, ou melhor dizendo baixos-relevos, no formato das frestas de bronze/poliéster. Estas são, no entanto, preenchidas com breu, também conhecido como colofônia, uma frágil resina semitransparente de coloração âmbar obtida a partir de árvores coníferas. Os baixos-relevos em colofônia “maculam” a paisagem imaculada e causam no espectador uma sensação de ausência.

A instalação conceitual sugere que Pastore toma para si os fundamentos da escultura. Porém, é importante ressaltar que seu trabalho confere novas equações ao processo escultórico milenar, ao passo que amplia o horizonte da arte contemporânea tridimensional.

Marcia Pastore (n. 1964) vive e trabalha em São Paulo, onde nasceu. Ao longo de sua carreira de três décadas, algumas individuais de Pastore ocorreram mais de uma vez nas instituições de arte mais relevantes do Brasil. No início de sua trajetória, a artista recebeu o 3º Prêmio Emille Eddé de Artes Visuais, em 1990, no MAC (Museu de Arte Contemporânea). Suas principais individuais aconteceram no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro (1993); como artista convidada no Centro Cultural São Paulo (2000); Centro Universitário Maria Antônia, São Paulo (2002 e 2007); Dobros, Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro (2010); Coagulatio, Museu da Saúde Pública Emílio Ribas, São Paulo (2010); e Impresssores, Caixa Cultural de Fortaleza, Ceará (2012). No mesmo ano, a exposição Peso-contrapeso recebeu o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea 2012. Outras individuais incluem Tira-linhas, Biblioteca Mario de Andrade, São Paulo (2015), e Corpo de prova, MuBE (Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia), São Paulo (2017). Atualmente, Marcia Pastore mostra Contrapeso na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2019/2020, e Transposição, 2019, uma instalação permanente in-situ que inaugurou o FAMA Campo, dedicado exclusivamente a projetos de land-art.

(*) Em 2012, a curadora Fernanda Pitta fez esta analogia entre o poema de Drummond e a obra conceitual de Pastore.

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Ficha técnica: Marcia Pastore, Frestas em máquina, 2003/2019, bronze polido, resina de poliéster, gesso, breu, cabo de aço, roldanas e ganchos, dimensões variáveis.

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Cynthia Garcia é historiadora da Arte

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Texto republicado do site da galeria. 

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