* Por Beatriz Resende *

O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história.

Walter Benjamin, Obras escolhidas, v. 1, p. 223.

Os cronistas entram na literatura ocidental como intelectuais a serviço dos reis da Idade Média, com a tarefa de registrar pela escrita o que a memória dos tempos guardava e de organizar em narrativa o que os registros esparsos documentavam. Enfim, fazer história. Na literatura de língua portuguesa, a discussão dos limites entre história e ficção se coloca a partir do primeiro cronista geral, Fernão Lopes, no século XV:

[…] grande licença deu a afeiçom a muitos que teverom cárrego d’ordenar estorias, moormente dos senhores em cuja mercee e terra viviam e forom nados seus antigos avoos.

O talento extraordinário de Fernão Lopes não só põe em discussão o papel do historiador, assumindo, na organização do passado,  o papel de intérprete, como literalmente complica a história quando, além daqueles que lhe deram a tarefa de “ordenar estórias”, inclui no relato a si mesmo, como narrador, e ao povo.

[…] nosso desejo foi em esta obra escrever verdade, sem outra mestura, leixando nos boõs aqueecimentos todo fingido louvor, e nuamente mostrar ao pôboo quaesquer contrairas cousas, da guisa que aveerom.

Estudando o narrador, Walter Benjamin diz que o cronista é  o narrador da história, isso porque sob o amplo espectro da crônica se abrigam todas as formas de narração. Nas “teses sobre a filosofia da história”, alerta que somente a humanidade redimida do passado poderá citar seu passado em cada um de seus momentos.

A crônica de que tratamos aqui é a que ressurge, no século XVIII, indissociavelmente ligada à imprensa, seu veículo de divulgação e, portanto, em uma relação direta com o público. O hebdomadário inglês Tatler, criado em 1709, contém este tipo de ensaio periódico que estabelece uma relação direta, como mútua fonte de assunto, com os cafés. Além desse, o Guardian e outros publicam ensaios que dão conta da arte, da crítica de arte, da literatura e da crítica literária. Nesses periódicos, “o público se olha no espelho”. O público, como tal, não se compreende completamente, mas se percebe “entrando ele mesmo como objeto na ‘literatura’”. Será o modelo francês, no entanto, que, após a revolução burguesa de 1830, lançará a moderna produção jornalística. Esse modelo é o do feuilleton, ou varietés: espaço nobre, na página do jornal, dedicado ao entretenimento. Aí se publicam faits divers, pequenos contos, anedotas, crítica de arte em geral e crônicas. O espaço alcançará todo o seu sucesso quando se descobrir que nele pode ser inserida narrativa ficcional como romances em fatias: o romance-folhetim.

Na França do século XVIII o público era constituído pelas variantes de “La cour et la ville”, como mostra Auerbach, isto é, formado pelos lecteurs, spectateurs, auditeurs. Ou seja, a crônica de que vamos nos ocupar passa a ter importância na imprensa quando a esfera pública burguesa (Habermas) está organizada, inclusive como esfera pública literária. É o momento em que os bens culturais, com a evolução socioeconômica, tornaram-se mercadoria e podem ser, ao menos em tese, acessíveis a todos. É o momento em que se inicia a perda da unicidade do objeto artístico, portanto, a perda da aura.

Compreender a crônica na especificidade de sua constituição é perceber o que a diferencia de outras formas mais totalizantes de expressão. Acreditamos poder compreender a crônica como uma expressão alegórica, no sentido que Benjamin dá ao termo alegoria, opondo-a a símbolo, em Origem do drama barroco alemão. A alegoria, assim entendida, despe-se dos elementos puramente edificantes e enigmáticos para se transformar numa escrita a ser compreendida. Da mesma forma, a escrita alfabética aparecera como uma compreensão profana que se opunha ao valor sagrado dos hieróglifos. Diz Benjamin que:

Não se pode conceber nenhum contraste mais flagrante com o símbolo artístico, o símbolo plástico, a imagem da totalidade orgânica, que esse fragmento amorfo que constitui a escrita visual do alegórico.

Na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento. A alegoria se “orgulha” da riqueza de significações. A ambiguidade e a multiplicidade são traços fundamentais da alegoria.

A alegoria, que objetiva, antes de mais nada, a compreensão, recusando a ininteligibilidade que sacraliza o desconhecido, aparece como uma ruptura de fronteiras entre os gêneros, quando o universo das artes plásticas se introduz na esfera de representação das palavras. Na perspectiva alegórica dominante, a crítica está presente nas próprias obras. Essas obras, de saída destinadas a uma destruição crítica, são obras que já perderam a aura; e assim se apresentam ao público. É como esquema que a alegoria se constitui em objeto do saber.

Apontando o exemplo dos fragmentos poéticos de Novalis, Benjamin afirma que a relação entre o fragmentário e o alegórico não é acidental, e o fragmento, como a ironia, constitui metamorfose do alegórico. Finalmente, quanto à linguagem de que a alegoria se utiliza, ela também se fraciona e, mesmo isoladas, essas palavras são fatídicas. A compreensão da perspectiva alegórica como dominante é o caminho que buscávamos para apreender o percurso do “sagrado”, real, para o “profano”, plebeu, que vai de uma temporalidade histórica para os limites cronológicos do dia a dia.

A função hermenêutica que a representação alegórica exerce em relação a um saber “divino”, a crônica vem exercer em relação a um saber literário sacralizado. À ideia de vida acabada que formas sublimes como o romance clássico ou a epopeia significam, a crônica – em sua representação alegórica – vai opor a visão de fragmentos de vida, que uma escrita sedutora aproxima daquele a quem cabe conhecê-la. É por ser fragmento (de forma, de ideias) que a expressão literária pelas crônicas é múltipla, contendo sentidos perceptíveis a um vasto público. Na recusa de seu destino nobre, a crítica que se produz na esfera pública e a ela é dirigida, apresenta-se como ruína daquelas significações comprometidas com o poder.

Identificamos, pois, a crônica como representação literária do fragmentário, do ambíguo, do efêmero; como espécie que ao utilizar-se de sua própria maneira de ser alegórica apresenta o presente – que ao ser narrado já é passado – como ruína.

No genial ensaio de Benjamin citado na epígrafe sobre o conceito de história, onde ele cria a alegoria do “anjo da história” a partir do quadro de Paul Klee, Angelus Novus, aí onde vemos uma “cadeia de acontecimentos”, o anjo vê “uma catástrofe única que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”. A tempestade que sopra do paraíso impede-o, porém, de juntar os fragmentos.

 Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

Esse ensaio, o desenvolvimento de teses sobre a filosofia da história, está preocupado com a articulação entre a revisão do passado e a pre- paração do futuro. Domina-o a convicção de que todo monumento da cultura é também um documento de barbárie e “assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura”. Compreendendo a história como um tempo saturado de agoras e vendo o sujeito do conhecimento histórico como a própria classe combatente e oprimida, Benjamin dirá no mesmo texto que:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade.

A concepção de história como articulação entre o passado em ruínas e a tempestade do progresso que o futuro traz, reagindo contra a representação homogênea ou contínua da história, propondo a compreensão do fragmentário, parece-nos a única capaz de conviver com a leitura de crônicas de um momento anterior ao nosso. Elas serão, então, percebidas como alegorias iluminadoras de nosso próprio cotidiano.

A crônica brasileira nasce no século XIX, num espaço do jornal dedicado, como o modelo francês, ao comentário do próprio jornal, do dia a dia da cidade e do país. Nessa seção chamada folhetim cabem expressões literárias que apresentam a forma de fragmentos, como o conto, a poesia e a crônica. E, ainda, o romance picotado. Nesse rodapé a crônica vai ganhando importância e o espaço desperta interesse e atrai os leitores, sobretudo por contrastar com a massa compacta que o jornal representa. Dessa forma, a crônica surge entre nós também indissociavelmente ligada à imprensa, pretendendo – como de resto o folhetim todo – divertir, informar, ilustrar o leitor. Ilustrar talvez seja o termo mais apropriado por apontar para uma inevitável contaminação entre o exibido e o escrito. Por isso mesmo a crônica não pedirá nunca  o acompanhamento de fotografias.

A crônica, tal como a fruímos hoje, não difere muito da face que toma no Modernismo com Manuel Bandeira, Alcântara  Machado, Carlos Drummond de Andrade e outros. Quando Mário de Andrade chama Táxi à série de crônicas que escreve para a imprensa de massa, já a define: o táxi é um transporte público que pega qualquer passageiro e se dirige a qualquer parte.

Este tipo de texto confirma-se como espaço de experimentação e de investigação livre sobre a realidade brasileira. A língua de que se utiliza é, mais facilmente do que em qualquer outro gênero, a língua da cidade, a língua brasileira.

A geração de 1940 reitera a ideia de uma afinidade toda especial, em termos de Brasil, do Rio de Janeiro com a crônica. No Rio, Carlos Drummond continua sua longa contribuição à imprensa; no Rio também escrevem Rubem Braga e Fernando Sabino. Do Rio- Zona Sul farão a crônica Carlinhos de Oliveira e Paulo Francis.

Os anos de desenvolvimento e democracia fizeram nascer, em 1951, Stanislaw Ponte Preta, vertente talentosamente irreverente e humorística do jornalista Sérgio Porto. Stanislaw continuará desenvolvendo toda a autoironia que podia ser feita pelo carioca durante anos difíceis até a morte do autor em 1968. Nesse uso do humor na imprensa como forma de resistência ao autoritarismo, Sérgio Porto seguia o caminho de outro cronista de humor “engajado”: Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

Apporelly, como começou, fundou ainda no fim da República Velha o “hebdromedário” A Manha, fechado e reaberto diversas vezes, entremeando-se com as prisões do barão. Quando o reabre em 1934 põe na porta os dizeres: “Entre sem bater”. N’A Manha relançada em 1945 colaboravam, entre outros, Marques Rebelo, Sérgio Milliet e Rubem Braga.

A crônica, justamente pela sua condição alegórica, fragmentá- ria, que a insere numa tradição de modernidade, escapa aos esforços classificatórios. Por isso mesmo nos limitamos aqui a apontar alguns aspectos da crônica.

O compromisso da crônica é com o aqui e o agora, com a contingência. Segundo Davi Arrigucci Jr., a crônica, veiculada pelo jornal, destina-se à “pura contingência”, mas acaba “travando com ela um arriscado duelo, de que, às vezes, por mérito literário intrínseco, sai vitoriosa”. As contingências de pressa e de obrigação profissional que caracterizam a crônica na modernidade levam à opção por uma coloquialidade agradável que faz do leitor um cúmplice. Mas trazem também imperfeições, incorreções (como as causadas pelo fato de o cronista citar sempre de memória) e a presença de contradições. Ser contraditória, aliás, é uma das peculiaridades da crônica.

O cronista é um artista perseguido por chronos, mais terrível que os deuses que prendem Prometeu. Acuado pela necessidade de seguir sempre adiante, evitando olhar para trás, o cronista lança marcas – pedaços de si – pelo caminho para que o possam seguir.

Na fragmentação dos gêneros que a crônica revela, há ligações com outras possibilidades, como a memória, “registro de vida escoada” (Arrigucci), o lirismo poético de um eu que parece falar sozinho ou com alguém muito íntimo, ou o diário, espécie de crônica sem destinatário. A intromissão do ficcional se dá, além do recurso a pequenas histórias paródicas, pela criação de um personagem que o autor assume por meio de pseudônimo ou outros que visitam a coluna.

A ligação direta com o veículo que a divulga faz com que a própria imprensa seja com frequência matéria da crônica. As notícias ou as outras crônicas ou artigos são referências permanentes, tornando-as, às vezes, redundantes, espaço fértil para aparecimento de obsessões e desenvolvimento de polêmicas.

A delimitação do espaço da crônica no jornal como coluna assinada limita as relações políticas entre o periódico e o autor. A expressão crítica do pensamento do autor passa a ser de sua responsabilidade pessoal. No grande jornal, em épocas de repressão, esta se abaterá diretamente sobre o cronista que manifestar oposição ao sistema.

As crônicas de que vamos tratar aparecem com uma peculiaridade: estão em sua forma congelada, ou seja, sob a forma de livro. Ao se transformar em obra literária, a crônica se desloca do universo descartável da imprensa para a permanência em livro.

Rubem Braga definiu o caráter contingente do gênero em entrevista em que diz que a crônica “é viver em voz alta”, e, mais adiante: “Um estilo ingrato, o sujeito morre e ela termina”. Diversos exemplos de cronistas que tiveram papel importante na vida da cidade pelo exercício sistemático da crônica mas não sobreviveram sob a forma editorial o com- provam. Um caso entre outros do Rio de Janeiro é o de Antônio Maria, que fez da cidade letra, em periódicos, mas não sobreviveu como livro.

Estudando a crônica machadiana, John Gledson chama a atenção para o fato de que, embora havendo um aparente consenso em torno da ideia de que “os gêneros menores não podem ser ignorados”, mesmo a produção para jornalismo de um grande mestre como Machado de Assis tem sido pouco estudada. Para o pesquisador inglês a justificativa seria a falta de instrumentos para a tarefa de análise, ou seja, para o entendimento do caráter literal, da referencialidade, das crônicas, que seriam dificilmente compreendidas pelo leitor a elas não contemporâneos. Este, aliás, é o desafio a que se lança Gledson no livro Machado de Assis, ficção e história, propondo uma leitura que se guie pela decodificação de todas as referências, todas as chaves do texto.

Sabemos, no entanto, que o efeito produzido pela leitura do texto literário por um público diverso daquele a que originalmente se dirigia, isto é, de outro tempo e espaço, é sempre muito diferente. Isso acontece também com outros gêneros e, de certa forma, neutraliza a ideia de “interpretações corretas”. Se não podemos decifrar todas as referências contidas nas crônicas de outras épocas, talvez seja justamente nesta capacidade ainda contraditória de sobreviver ao circunstancial, que lhe é inerente, que esteja a importância da crônica como gênero que vai além da designação de “gênero menor”. Ou seja, para além do circunstancial estaria a revelação do autor que também de si fala e estariam questões permanentes, como a da vida urbana, que a crônica traz ao debate público.

Parafraseando o Walter Benjamin de “Desempacotando a minha biblioteca”, poderíamos dizer que na elaboração do livro que coleciona crônicas realiza-se a “tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem” que é a existência do colecionador de livros.

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Beatriz Resende é professora titular da Faculdade de Letras da UFRJ, pesquisadora de literatura, crítica e autora de diversos livros.

O texto acima integra o livro Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, que Beatriz acaba de lançar pela Editora Autêntica

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