* Da redação *
Aceitar a velhice com lirismo. Este é o tema de Com a maturidade fica-se mais jovem, de Hermann Hesse, recém-lançado no Brasil pela Record. O livro traz contos, crônicas e poemas em que o autor mostra a influência de Nietzsche na sua vida, conhecimentos da psicanálise, e ceticismo em relação à transitoriedade da vida e do mundo.
A índole romântica do autor transparece nas breves histórias e em seus pensamentos repletos de recordações íntimas, aforismos e breves tratados filosóficos. Hesse nasceu em Calw, na Alemanha, em 1877. Começou a vida profissional como livreiro, mas idealizando uma carreira literária, que de fato iniciou muito cedo, aos 21 anos, quando publicou suas primeiras poesias. A chamada “primeira fase” do escritor se estende até Knulp (1915), produzindo nesse período romances de grande valor, como Peter Kamenzind (1904), Gertrud (1910) e Rosshalde (1914). Demian foi publicado logo depois da Primeira Guerra Mundial, em 1919.
Em protesto contra o militarismo germânico, Hesse era então um residente permanente da Suíça e sem dúvida figurava ao lado das maiores ícones da literatura em idioma alemão. A profunda humanidade e a penetrante filosofia que impregnam seus livros foram confirmadas em obras-primas que produziu posteriormente, entre outras Sidarta (1922), O lobo da estepe (1927) e Narciso e Goldmund (1930), que com seus poemas, contos e um considerável número de trabalhos de crítica valeram-lhe um lugar muito especial entre os pensadores contemporâneos. Em 1946 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura. Hermann Hesse faleceu em 1962, pouco depois da passagem do seu 85º aniversário.
Leia abaixo três poemas do livro:
Envelhecer
A futilidade que o jovem aprecia
Foi também por mim venerada,
Penteado, gravata, elmo e espada,
E muito mais a mulher esguia.
Só agora vejo com clareza,
Posto que, velho rapaz,
De nada disso sou mais capaz.
Só agora vejo com clareza,
De tais desejos a suma esperteza.
Lá se vão gravatas e permanentes,
Levando consigo toda a magia;
Mas o que além disso consegui,
Sabedoria, virtude e meias quentes,
Ah, logo depois também perdi,
E minha terra ficou fria.
Para os velhos é bom e são
Borgonha tinto ao pé da lareira,
E depois uma morte ligeira —
Porém só mais tarde, hoje não!
*
Chuva de outono
Ó chuva, chuva de outono,
Véu cinzento a cobrir as montanhas,
Folhas cansadas das árvores a cair!
Olhando pela janela embaçada,
O ano doente reluta em se despedir.
Sentindo frio no casaco molhado,
Tu vais à rua. Na orla da mata
Coberta de folhas desbotadas,
Sapos e lagartos se embebedam.
Descendo a ladeira,
A água corre e murmura sem parar,
Empoça na grama, sob a figueira,
Formando pacientes lagos.
Da torre da igreja, no vale,
Escorre o tom hesitante e cansado
Dos sinos que dobram por alguém da aldeia
Que vai ser enterrado.
Tu, meu caro, tens saudade,
Não do vizinho defunto,
Não mais da alegria do verão,
Mas sim do vigor da mocidade!
Tudo perdura na memória sagrada,
Guardado em palavras, imagens, canções,
Sempre pronto para festejar a volta
Com roupagem mais nobre e renovada.
Auxílios que guardas, ajudas serão,
Como flores que abrem,
Em fiel alegria, o teu coração.
* * *
A velhice tem muitos males, mas tem também seus benefícios,
e um
deles é aquela camada protetora, feita de esquecimento, cansaço e
afeição, que se cria entre nós e nossos problemas e nossas mágoas.
Pode ser preguiça, esclerose ou simples desinteresse, mas também
pode ser algo um pouquinho diferente que brota em momentos de
luz, como serenidade, paciência,
humor, sublime sabedoria e Tao.
* * *
A velhice nos faz desprezar muitas coisas. Quando um velho balança
a cabeça ou balbucia algumas palavras, alguns veem nisso uma
manifestação de sabedoria; outros, simplesmente esclerose. Se esse
comportamento diante do mundo é de fato produto do conhecimento
e da experiência, ou apenas consequência de uma disfunção
circulatória, é algo que ninguém sabe, nem mesmo o idoso.
* * *
Somente na velhice conseguimos ver a raridade do que é belo
e o verdadeiro milagre que ocorre quando entre fábricas e canhões
também vicejam flores, e entre jornais e papéis da bolsa
ainda há poesias.
* * *
Para vocês, os jovens, o que realmente importa é a própria existência,
a procura e a paixão. Para os velhos, a busca terá sido
um engano, e a vida, um fracasso, se não tiverem encontrado
algo de objetivo, algo além de si e de suas preocupações, algo
indispensável ou divino para adorar, algo a servir e cuja única
finalidade seja a de dar sentido à própria vida…
O jovem tem uma necessidade: poder levar a sério a própria
pessoa. A necessidade do velho consiste em poder sacrificar-
-se, pois acima dele existe algo que leva a sério. Não gosto de
formular dogmas, mas de uma coisa tenho certeza: a vida espiritual
tem de transcorrer entre esses dois polos, pois existir
é missão, ânsia e dever do jovem, enquanto a tarefa do ser humano
maduro é doar-se, ou, como outrora diziam os místicos
alemães, “não ser”. Para que possamos oferecer em sacrifício
essa personalidade, é preciso que antes tenhamos sido um ser
completo, uma personalidade autêntica, que sofreu as dores
desta própria individualidade.
*
Na velhice
É fácil ser jovem e praticar o bem,
De todo mal se afastar;
Mas sorrir, quem coração não tem,
É coisa para se estudar.
Os que o fazem não são idosos,
Ainda têm muita lenha a queimar
E com seus punhos vigorosos,
Podem os polos do mundo juntar.
Ao ver a morte à espreita,
Não convém ficar parado.
Há que ir a seu encontro,
Há que jogá-la pro lado.
A morte não está aqui nem lá,
Está em todo caminho a seguir.
Está em você e em mim está,
Logo que a vida começa a existir.
* * *
As pessoas jovens que não conseguimos imaginar como velhos
são justamente aquelas que têm a melhor velhice.
* * *
O fato de as pessoas jovens gostarem de se exibir um pouco,
adotando atitudes que os velhos jamais poderiam acompanhar,
não é, afinal, insuportável. A coisa só degenera no malfadado
momento em que o velho, o fraco, o conservador, o careca, o
adepto da moda antiga encara o assunto em termos pessoais e
começa a dizer: “Tenho certeza de que eles só fazem isso para
me irritar!” A partir desse momento, a situação se torna insuportável,
e aquele que assim pensa está perdido.
Nunca simpatizei com qualquer forma de destaque ou ordenamento
da juventude; velho e jovem são condições que só se aplicam a um
pequeno grupo de pessoas. Os seres humanos capazes e diferenciados
se apresentam ora velhos, ora jovens, do mesmo modo como
se sentem ora alegres, ora tristes. Aos mais velhos cabe lidar com a
própria capacidade afetiva de maneira mais franca, divertida, hábil
e benévola, assim como fazem os jovens. Os velhos sempre acham
que os jovens são precoces, mas adoram imitar-lhes os gestos e
hábitos, mostrando-se igualmente fanáticos, injustos, exclusivistas
e sensíveis. A velhice não é pior do que a juventude, assim como
Lao-tsé não é pior do que Buda, e azul não é pior do que vermelho.
O velho só é medíocre quando tenta se passar por jovem.
* * *
O que me repugna, há décadas, é a mera idolatria ao jovem e à
juventude, algo parecido com o que hoje acontece na América,
e mais ainda a instituição da juventude como estado, categoria
ou “movimento”.
* * *
Sou um homem velho e gosto dos jovens, mas estaria mentindo
se dissesse que tenho por eles um especial interesse. Para
os idosos, principalmente na época de grandes provações em
que vivemos, só há uma questão relevante: a da alma, da fé, do
sentido da vida, da devoção; a que vale a pena, que é capaz de
superar o sofrimento e a morte. Superar o sofrimento e a morte
é tarefa da velhice, enquanto o entusiasmo, o arrojo e a agitação
constituem partes do temperamento da juventude. Ambas
podem ser amigas, mas falam idiomas diferentes.
* * *
A história universal é construída, basicamente, por uma gente
jovem e primitiva que se encarrega de lhe dar impulso
e aceleração,
no sentido das palavras um tanto teatrais de
Nietzsche,
ao dizer que “quem quer cair merece ser empurrado”.
(Ele próprio um ser altamente sensível, jamais foi capaz
de dar semelhante empurrão em um velho, em um doente ou
mesmo em um animal.) Entretanto, para que a história tenha
também seus hiatos de paz, mantendo-se em níveis suportáveis,
é preciso que haja sempre uma força contrária, de ação
retardadora e conservadora, a ser exercida pelos mais velhos e
dedicados. Ainda que o ser humano que imaginamos e desejamos
venha a trilhar outros caminhos diferentes dos nossos,transformando-se em besta ou formiga, nossa missão continua
sendo retardar o máximo possível esse processo. Ainda que de
forma inconsciente, as forças que militam ao redor do mundo
conseguem até validar essa tendência oposta, na medida em
que — por mais acanhadas que sejam — preservam, a par da
corrida armamentista e dos alto-falantes da propaganda, suas
atividades culturais.