p arto em busca de ti
negro
ser negro
ser negro
ser parto em busca de mim
o som
o som
o som
trago o algodão na alma
o sol
o sol
o sol
tirar da flor a seda branca
: pesa
pesa
pesa
flor árida
flor árida
flor árida
o fardo da minha infância
***
sol a sol
sol sustenido
terra e sal
céu e sol
tirar da flor
a seda branca
***
: a mulher virou homem o trabalho
e a desigualdade por baixo da saia: trouxa
na cabeça camisa cáqui de mangas compridas
chapéu de palha quartinha de cabaça e só
calça comprida por baixo da saia
calça comprida por baixo da saia
calça comprida por baixo da saia
***
o sol anestesia a dor e de dor é feito
como deve ser feito de dor o frio do outro campo
***
sombreiro braseiro sombreiro braseiro sombreiro
eiro eiro eiro eito eito eito sombreiro braseiro
sombreiro sombrabrasil sombrabobrasil
sombrabobrasilis brasilis brasilis
brasilis brasilis brasilis
sombrasilis silis
silis silis
sil sil sil
lis
lis
lis
somsemeiranembeira
***
Abaixo o texto de apresentação da escritora Mariana Ianelli:
O SERTÃO BLUES À FLOR DO POEMA
me encontro
e te encontro
me encontro e te encontro
C.P.
Você que vem, venha com tempo e ouvido atento, que a viagem é em distância e fundura. Leva-nos este solo que é som e chão, tempo e ser. Um solo que nos envolve até a síntese encarnada de ser voz de uma nossa terra. Cida Pedrosa, esta mulher que sabemos multidão, poeta de palavra-labareda, é quem nos leva pela língua à infância da nossa história, Terra Brasilis, sangue e seiva, suas cores, seus ritmos, e, em cores e ritmos, suas extraordinárias mestiçagens.
A flor deste remoto novo mundo é, de nascença, uma flor épica. Azul e épica, resistente em luta e sonho, tantas vezes anônima, rubra de amores que a saudade azula, testemunha dos abusos que a descuram. Sim, a terra é testemunha. A terra fala por seus fósseis. Canta por sua música e seus músicos. Chora em acordes fundos. Conta do que viveu pelo quanto se inscreveu nela. Conta-nos do azul que aqui aportou, nos tempos da liberdade índia, o azul que aqui se impôs, rasgando estrada país adentro, por dominação da terra e da língua, por senhorio humano e divino.
O rumor da romaria nós ouvimos com ouvidos no chão, que é feita de chão esta poesia, com o que por ela passa ou nela mora ou nela e por ela morre, nela e por ela domina. E o que é flama flutuante nós apreendemos do que sobe aos ares, que é feita de música essa poesia, epopeia de milhões de anônimos, conquanto muito também se nomeie em homenagens.
Epopeia que tem por enredo a história mesma de um nosso imaginário poético-musical e uma nossa poesia nascida do canto e do lamento cantado, da labuta e do passo desenraizado, de caminhos cruzados, rural com urbano, boca em boca e página a página. Novamente: heroica em música, epopeia das nossas mestiçagens, das nossas palavras pardas, do nosso rosto índio, negro, mouro, cigano, mameluco. Fala a terra dos tupis e dos zumbis. Falam os campos de algodão e de batalha. Fala a terra de Gonzaga, João do Vale, Pixinguinha, Dominguinhos. Falam sertões bodorocôs e roseanos.
O som põe a mover a paisagem — “e depois do planalto da borborema // pora-pora-eyma / pora-pora-eyma / pora-pora-eyma” —, seguimos o traçado peregrino do mapa por onde calcorrearam ritmos que atravessaram mares, trazidos de outros campos ou cidades, viageiros de outros tempos, em porões de navios, lombo de animal, caminhão, do litoral ao Sertão, ritmos, emoções e instrumentos de uma música também ela parda de múltiplas cópulas.
Gaita, cuíca, caxixi, castanhola, cavaquinho, clarinete, contrabaixo, craviola, sanfona, sax, violão, violino, guitarra, banjo, bandolim. Baião, xote, foxtrote, tuíste, forró, frevo, maracatu, choro, bolero, mazurca, tango, blues. Saudade, “melancodor”, felicidade gitana, colo de Deus, rito pagão. Todos se misturam e se rearranjam em música sertã, transcontinental, azul, negra e rubra.
Grande poema de redescobrimento, essa epopeia é também, para a poeta, um buscar-se a si mesma numa escuta interna, tendo por bússola e amuleto, em viagem ao passado e às notas dos antepassados, uma gaita: “paraíso perdido prometido”, este vialejo azul que a poeta, ainda menina, ganhou do pai e nunca aprendeu a tocar.
Agora sim a poeta o toca, revolvendo tempos, trazendo à tona todos aqueles a quem ela e sua poesia se filiam, mestres, maestros, pais e mães de carne e alma que povoam sons da infância: o som da roca de fiar, o violão de seu Dim, os benditos cantados pelas mulheres nos campos de algodão, os aboios estrada afora na “voz blues” de seu Bindô, as ladainhas da mãe, a Ave Maria de Schubert numa serafina de teclas de marfim nas missas de domingo. Sons que vêm de longe, também de outras cidades, outras culturas, outros chãos peregrinos, como a gaita de Bob Dylan ou as guitarras de John e Tom Fogerty: “percussões primitivas letras de diásporas/ em uma língua pagã e seca/ tão seca quanto o chão/ que nos benze ao fim”.
Poema esse também de autodescobrimento em sua linguagem consubstancial às jazz bands que o inspiram, numa língua que sibila, zune, flui, percute, chora, brinca em êxtase de sílabas. Poema numa língua que está viva a inventar novos verbos e desdobrar-se em intertextos. Poema que se move e toma a forma do que evoca, tão moderno quanto ancestral em suas expressões gráficas. Poema que no som vário desse vialejo azul religa terra e céu. A poeta cosmopolita do livro Gris e a do Sertão de infância de Claranã aqui se fazem uma, no som que dá à luz seu “negro ser”.
Do reino das cinco pedras kariris, terras de Bodocó, sentimos a carne quente do nosso Sertão-mundo, o Sertão blues no som desse vialejo, “bramindo a beleza e o berço da civilização americonegroíndia”, uma flor árida e azul redescoberta, filha de sóis inclementes e longas noites de sonho. Então ali está ela, ao fim da viagem vertical. Ali está ela, no princípio de tudo. Flor de negro amor meu e seu. Nossa flor redescoberta: nosso encontro.
*
Solo para Vialejo, de Cida Pedrosa (CEPE, 125 págs.)