Caminhando contra o vento, da italiana com ascendência somali Igiaba Scego, é misto de ensaio e depoimento amoroso sobre Caetano Veloso. “Este homem salvou a minha vida”, diz ela na apresentação da obra, que traz o músico baiano já cânone. A autora – uma das estrelas da Flip, que começa no dia 25 – mistura em seu ensaio pessoal a própria biografia romana e somaliana à do brasileiro. Ela coloca-se à mesa de almoço dos Velosos, em Santo Amaro da Purificação (BA), cita canções que a acompanham e faz pequenas análises da obra do músico, criando um itinerário acerca dele, com humor e carisma.

Igiaba Scego nasceu em Roma, em 1974. É formada em Literatura Moderna na Universidade La Sapienza e é doutora em Estudos Pós-coloniais. Trabalhou como jornalista em veículos como Il Manifesto e Internazionale. Entrou para o mundo literário em 2003, depois de vencer o Prêmio Eks&tra com o conto “Salsicce”, em que uma garota muçulmana somali decide comer salsichas pela primeira vez. Na Flip, lançará os livros Adua e Minha casa é onde estou, ambos pela editora Nós, além de Caminhando contra o vento, numa parceria Nós e Buzz Editora. Leia trecho do livro abaixo.

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#CaetanodeCueca

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Em 16 de julho de 2015, uma hashtag domina o espaço da rede social mais sintética que existe. Em poucos minutos, aliás, segundos, o Twitter é invadido por um tsunami composto por 14 letras. Poucos, na Itália, perceberam, mas nos países de língua portuguesa foi um delírio. A hashtag em questão – #caetanodecueca – se tornou um dos ending topics em todo o país.

O resultado foi surpreendente também nos países do Atlântico Sul, ou seja, Cabo Verde, Angola, São Tomé e Príncipe e, naturalmente, Portugal. A esses países deve ser acrescentado Moçambique, que não dá para o oceano Atlântico, mas é fortemente ligado à língua e à cultura portuguesa.

A palavra cueca subitamente começou a ressoar como um trovão por todo o Atlântico Sul. Um vozerio contínuo, um barulho intenso, um sussurro desajeitado acontecendo, decididas cotoveladas de camaradagem e entendimento.

Cueca, cueca, cueca…
Como se fosse uma fórmula mágica.
Cueca, cueca, cueca…

Mas o que signica cueca, exatamente? Não nosdeixemos enganar pelo som redondo, cheio, quase aristocrático. Não, não nos deixemos enganar. Cueca não tem nada a ver com tronos dourados ou coroas de diamantes. Não há reinos esplendentes no horizonte ou noites de gala. Cueca é simplesmente a palavra em português que corresponde à nossa “mutanda”. Entenderam bem: cueca é mutanda.

Nada de poético, sinto muito.

Portanto, #caetanodecueca significa simplesmente Caetano in mutande.

E aqui também, aparentemente, parece haver pouca poesia.

Mas que Caetano? Se vocês têm em mãos esse livro, a resposta é fácil. Caetano Veloso, naturalmente, o único, inimitável.

Nesse nome e sobrenome já há tudo. Caetano Veloso é um guru, um pai de santo da música, o amigo que nos dá consolo quando os amores acabam ou tomam o rumo errado. É ele quem organiza o movimento, mas também foge de qualquer tipo de ideologia postiça. Um homem honesto, transparente, simples, rebelde.

Todas as vezes que penso nele, lembro-me da bolsa de Mary Poppins. Daquela bolsa mágica, a babá perfeita tira autênticas maravilhas: um cabideiro, um espelho, um rouxinol. E Caetano Veloso faz a mesma coisa. Faz emergir de dentro de si todos os tipos de coisas, de velhos sambas de Vicente Celestino, passando por sugestões fellinianas pescadas sabe-se lá de que lugar, até as notas estridentes de Henri Salvador que tanto o fascinou em sua juventude. Caetano Veloso é fundamentalmente um homem curioso.

Nunca foi um catedrático, nunca dividiu a cultura entre alta e baixa. O povo tem sua sabedoria e ele sempre teve um grande respeito pelo povo. Inclusive porque também é parte dele. Mistura tudo, o místico e o popular, o sonho e a razão. Caetano Veloso é uma vitamina, uma daquelas em que a polpa, a casca e as sementes se combinam. Não exclui, inclui. No fundo, ele é como o Brasil. Cheira como essa terra feita de contradições e beleza, de horror e paraíso. Nunca tomou para si a missão precisa de narrar o seu país; isso simplesmente aconteceu. Talvez seja por isso que no dia 16 de julho de 2015 sua foto de cueca circulou nas redes sociais do mundo todo.

A história da mutanda precisa ser explicada melhor. E não pensem mal, não há nada de ofensivo em uma cueca.

Tudo começou na Suíça.

Dois amigos admiradores, os cantores Carla Perez e Xandy, foram encontrá-lo no camarim em Montreux, onde o cantor estava trabalhando durante sua turnê com Gilberto Gil, comemorando com os fãs ambas suas carreiras. A turnê tinha o sugestivo título Dois amigos, um século de música, e não por acaso teve grande sucesso de público em todos os lugares em que se apresentaram. Em Perugia, por exemplo, o show Gil-Veloso foi o segundo em venda de ingressos da edição do Umbria Jazz de 2015. E, em Roma, esgotaram-se as entradas para o show de 6 de maio de 2016. Até os lugares em pé, no Auditorium2, foram vendidos. Estive presente em ambas as datas e posso con rmar isso. Éramos muitos tanto em Perugia como em Roma. E foi fascinante, como sempre.

Mas voltemos à cueca.

Caetano Veloso estava no camarim relaxando, quando os amigos chegam e ele os recebe mesmo em désha- billé. Eles riem, divertem-se, brincam. Com eles, estava também Paula Lavigne, ex-mulher do cantor e sua empresária. Paulinha é uma criatura maravilhosa. Quem ama Caetano Veloso não tem como não amar Paula Lavigne, aliás, adorá-la. É ela a “Branquinha” da música “Carioca de luz própria”, a pessoa que, após o casamento (e os dois lhos), cou ao lado do cantor para cuidar dos seus negócios. Passaram por tantas coisas juntos e se respeitam.

Ela não é apenas a sua empresária, mas também relata sua vida para nós, fãs, quase minuto a minuto. No Instagram da Paulinha, há muitíssimas fotos do ex-marido, e isso nos faz sentir mais próximos dele. Claro que ela também coloca fotos de outros cantores com quem trabalha, como por exemplo o rapper Emicida. Mas do Caetano há mesmo uma avalanche de fotos de todos os tipos. Uma delícia para nós que o adoramos. Minha preferida é aquela em que ele está rodeado por uma garotada superjovem em Paris, onde todos parecem resplandecentes de alegria por estarem ao lado dele, que emana luz como uma grande estrela de uma galáxia solitária. Eu me vi na alegria e nos gestos daqueles jovens parisienses desconhecidos. Olhando aquela foto, entendi que nós que amamos Caetano somos de fato uma comunidade. Sou de origem somali, mas não sou tão diferente de uma espanhola do bairro de Malasaña, em Madri, ou de uma brasileira de Salvador. Sofremos da mesma paixão. Caetanite aguda.

É por isso que a foto do nosso herói de cueca nos fez sentir ternura.

Muitos, para dizer a verdade, ironizaram nas redes sociais, zeram chacota, piadas e montagens. Mas Caetano Veloso, com 73 anos à época, de cueca, parece só estar super à vontade. Porque ele é assim. A roupa é só um detalhe. Algo com o que brincar, sem muita preocupação. Uma diversão e com certeza não uma couraça para vestir contra o mundo. Ele nunca está contra, ele é só a favor. Mesmo quando ca bravo, é um homem propositivo. E depois, quando se veste, é júbilo em estado puro.

Nós, os fãs, sabemos bem. Nós o vimos vestindo ternos azuis impecáveis ao cantar tristes boleros sul-americanos, mas também com estampas do Paquistão amarradas na cintura caminhando por uma praia tropical. E seus cachos hippies que esbanjava com orgulho nos anos setenta e que caram em nossos corações. Seu guarda-roupa é algo que conhecemos de cor: a camiseta que usava no Coliseu dos Recreios de Lisboa em 1981 quando cantava a maravilhosa “Você não entende nada”, por exemplo.

Por isso os fãs, talvez para imitar sua forma despachada e brincalhona, começaram a postar freneticamente seu Caetano de cueca. Apareceram como praga fotos de sunga listrada, sunguinhas hippies no Leblon e cuecas vermelho-fogo que deixaram ruborizada a Internet. Cada um tinha o seu #caetanodecueca para mostrar e defender. Assim festejamos, de um jeito um pouco bizarro, a alegria de estar vivos, de ser irreverentes, bonitos e, sobretudo, irônicos. Contudo, aprendemos com ele que a vida deve ser vivida enfrentando incertezas, errando como todos e acertando só no essencial. Raiva, felicidade, tristeza, tudo assume o colorido de um acorde, a plácida compostura de um verso.

Caetano Veloso não concilia o sono. Muitas vezes o perturba, e nessa perturbação cada um de nós em alguma medida encontra um pedaço de si mesmo. Em “Peter Gast”, uma das suas baladas mais belas e menos conhecidas, diz:

Sou um homem comum

Qualquer um

Enganando en e a dor e o prazer Hei de viver e morrer

Como um homem comum

Mas o meu coração de poeta

Projeta-me em tal solidão

Que às vezes assisto

A erras e festas imensas […] E sou um.

Nem todos conhecem essa música que Caetano dedica idealmente ao compositor alemão amigo de Friedrich Nietzsche, cujo nome real era Heinrich Köselitz. “Peter Gast” é uma música para os paladares mais refinados. Uma balada melancólica que no final transforma-se num compêndio de filosofia.

Descrevendo-se, nos descreve, nós que nos perdemos naquela música introvertida e melancólica, naquele nome – “Peter Gast” – que é uma reminis- cência de Nietzsche. Ele é nós e nós somos ele. É a partir dessa correspondência de sentidos amorosos que começa a nossa ressurreição.

Esse homem salvou a minha vida.

Todas as vezes em que a vida me ignorava ou me maltratava, havia sempre uma canção sua pronta para me segurar. Uma canção sua que era para mim um escudo contra aquele mundo às vezes hostil e maldoso. Foi através da sua voz que a alegria de existir se expressou em mim como nunca havia se expressado.

Paul McCartney dizia que talvez as pessoas tirem sarro de nós por causa das músicas pop, alguém que, com uma insistência chata, falará de silly love songs, bobas canções de amor, mas o que seria do mundo sem essas importantes silly love songs?

Eu amo a música porque me faz sonhar, dançar, acreditar que no fundo tudo pode acontecer.

De fato, para mim, não há muita diferença entre Mozart e Loredana Berté, quando as emoções estão em jogo. Eu sei, isso pode soar como uma blasfêmia. É uma blasfêmia. Mas eu sou blasfema quando o assunto é o amor. E é o amor que a música me transmite que faz com que ela seja vital para mim, tão importante como o ar que respiro.

É por isso que para mim (e acho que também para alguns de vocês) Caetano Veloso é uma religião.

Uma amiga minha, a poeta Lidia Riviello, disse-me uma vez algo semelhante sobre Totò. “Eu e você só vamos nos dar bem se você me garantir que gosta do Totò. Não consigo ser amiga de alguém que não ame Totò.” Eu compartilho do mesmo fundamentalismo da Lidia. Ainda bem que gosto do Totò e dessa forma a minha amizade com a Lidia não somente está salva como também é uma amizade profunda. Mas entendi o que ela queria me transmitir. Um amor in- condicional que muitas vezes não se pode explicar. Por que Totò e não Alberto Sordi? Por que Marilyn Monroe e não Bette Davis? Por que Mark Twain e não Ernest Hemingway?

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