Literatura de testemunho

levii

Por Jacques Fux *

Em 1947, após ter vivenciado as terríveis atrocidades da Shoah, Primo Levi escreveu seu livro É isto um homem. Levi, como muitos outros sobreviventes de catástrofes e genocídios, precisava contar ao mundo o que aconteceu, mesmo que este mundo não estivesse preparado para acreditar.

Segundo o próprio autor: “a necessidade de contar ‘aos outros’, de tornar ‘os outros’ participantes, alcançou entre nós, antes e depois da libertação, caráter de impulso imediato e violento, até o ponto de competir com outras necessidades elementares.”

O livro passou batido durante muitos anos e só na década de 70 apareceu como um grande documento histórico e literário – o testemunho primário.

O testemunho, de acordo com o pesquisador e professor Márcio Seligmann-Silva, possui basicamente duas acepções: 1) “no sentido jurídico e de testemunho histórico”; 2) “no sentido de ‘sobreviver’, de ter-se passado por um evento-limite, radical, passagem essa que foi também um ‘atravessar’ a ‘morte’, que problematiza a relação entre a linguagem e o ‘real’”. Entretanto, o testemunho não consegue eliminar certos elementos ficcionais e passa a ser um modo literário/discursivo “difuso” e implicado em todos os tipos de escrita.

Algum tempo depois do lançamento do livro de Levi, o Prêmio Nobel, Elie Wiesel, lança Noite (1955). Seu livro tocante, tanto pela sua história de sobrevivência, perda e trauma, tanto pela bela forma literária que idealiza a dor e o sofrimento, se junta a É isto um homem como obras fundamentais da literatura de testemunho.

O testemunho é essa vontade e necessidade de se lembrar. Lembrar-se de fatos traumáticos e revivê-los no presente. Escrever, tentando se libertar, mas sempre calcado na verdade histórica e memorialística. Cito a famosa frase de Noite: “Nunca mais esquecerei esta noite, a primeira noite no campo, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada. Nunca mais esquecerei aquele fumo. Nunca mais esquecerei as pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em espirais sob um azul mudo. Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram para sempre a minha fé.”

Mas o testemunho é suscetível a invenções e criações já que trabalha com a nossa própria capacidade de recordação de um evento traumático. O ato de inventar e criar, no entanto, não almeja adulterar ou profanar a História. Inventar e criar deliberadamente fatos da Shoah permitem que os negacionistas (aqueles que negam a existência da Shoah) adquiram crédito, como é o caso do livro Fragmentos.

Binjamin Wilkomirski, autor fictício do livro Fragmentos: memórias de uma infância 1939-1948, ou no original Buchstücke: aus einer Kindheit 1939-1948, problematiza a questão de se fazer ficção ou não com a Shoah. Este livro virou um best-seller e, posteriormente, foi descoberto que não se passava de uma ficção, apesar de clamar por uma verdade histórica e memorialística do autor.

O tema da fraude literária ultrapassa os limites da ficção e aterroriza o testemunho. Uma violação muito mais radical existe quando tratamos da Shoah, já que ao inventar falsos testemunhos, desprezamos e colocamos em risco o verdadeiro testemunho e a verdadeira história.

Entretanto, visto que o testemunho primário está se extinguindo (já que os sobreviventes estão morrendo), surge uma nova via contemporânea para se tratar literária e historicamente a Shoah, como pela proposta do livro As benevolentes, de Jonathan Littell.

A obra coloca, de forma surpreendente e muito bem construída, a narração da Shoah e das atrocidades nazistas na voz de um dos perpetradores da Solução Final. O livro é ficção, mas baseado em documentos históricos e pesquisas exaustivas. Diferentemente de Fragmentos, não clama por uma verdade memorialística, deseja retratar as muitas atrocidades da guerra na visão daquele que não teve a sorte de “não matar.”

O livro de Littell apresenta diferenças importantes em relação ao livro de Wilkomirski já que não há fraude alguma e nem invenção do testemunho. Baseado em pesquisa documental, mostra uma representação contemporânea da Shoah. Assim, continuamos trabalhando com a literatura, com o testemunho e a História. Os livros de Levi e de Wiesel devem continuar a ser estudados, agora em conjunto com novos documentos e pesquisas, a fim de não esquecer (e não repetir) as atrocidades que aconteceram durante a Shoah.

*

Jacques Fux venceu o Prêmio São Paulo de Literatura 2013 com o livro Antiterapias, além do Prêmio Capes de Melhor Tese de Letras/Linguística do Brasil em 2011.  É pesquisador visitante – Universidade de Harvard (2012-2014), pós-doutor em Teoria Literária – Unicamp e pós-doutorando em Literatura Comparada – UFMG

Tags: , , , ,