Literatura nacional, Flip e a crítica: um bate-papo com Paulo Werneck

Paulo Werneck (foto SPR)

Por Ricardo Belíssimo *

Devida à sua vasta experiência no setor editorial, aliado ao desempenho competente e dinâmico junto à Flip de 2014, Paulo Werneck será, pela segunda vez, o curador da maior festa literária do país.

Nesta entrevista exclusiva à São Paulo Review, Werneck fala sobre a sua ligação afetiva com os livros, suas impressões sobre a crítica no Brasil, os rumos da tradução, entre outros temas relevantes à literatura em nosso país.

E tudo isso com a propriedade de quem possui uma experiência acumulada como editor durante 11 anos, cinco deles atuando à frente da editora Cosac Naif e os outros seis como editor-assistente na Companhia das Letras. Somado ainda aos conhecimentos adquiridos no período em que atuou, por três anos, como editor do caderno Ilustríssima, da Folha de São Paulo.

Werneck será também curador de uma nova iniciativa da Associação Casa Azul (entidade que realiza a Flip) por meio de uma jornada de debates sobre a história oral e os ofícios que deram vida a Paraty antes da abertura da estrada Rio-Santos, construída em 1973.

Prevista para acontecer no final de 2014, essa empreitada será uma das primeiras ações do Museu do Território de Paraty, atualmente em fase de implantação, e que promete reunir um acervo significativo, todo digitalizado, sobre o patrimônio material e imaterial da cidade.

Em sua memória de infância, quais foram os seus primeiros contatos e impressões mais afetivas e efetivas com os livros? Cresci numa casa cheia de livros, pois sou filho de intelectuais – meu pai é escritor e jornalista, e minha mãe, antropóloga (Humberto Werneck e Mariza Werneck). Tenho um tio que é autor de livros infantis. Então os livros vieram parar na minha vida em chave totalmente afetiva. Quando eu era criança, criança mesmo – sete, oito anos – eu tinha uma “editora” com o meu “melhor amigo”, o Jonas: a Editora Quatro Quadrinhos (EQQ), que durou até os meus doze anos. Publicávamos livros de ficção, revistas, jornais xerocados, vendidos na escola – no Colégio Equipe, onde estudei, chegamos a ter cerva de 50 assinantes de um jornalzinho chamado O ortodrômico. Nessa época, li o Monteiro Lobato inteiro numa coleção de capa vermelha que havia na casa do meu avô, depois O apanhador no campo de centeio, O senhor das moscas…. Então eu era um nerd literário, vamos dizer, e nunca deixei de fazer projetos pessoais e/ou editoriais, até me profissionalizar na área.

Com a sua primeira experiência como curador da Flip em 2014, o que acha que poderia ser melhorado, agregado ou mesmo reestruturado do ponto de vista curatorial para a próxima edição do festival? Como em todo projeto, sempre há muito a ser melhorado. Sinceramente, não sei ainda o quê, concretamente – estamos na fase de prospecção, de observação dos lançamentos, de consideração que será a homenagem e de avaliação do que deu certo e do que deu errado em 2014. E nesse momento nenhuma ideia pode ser descartada – precisamos juntar muitas ideias diferentes, submetê-las à crítica interna e dos nossos interlocutores. A escolha do Millôr em 2014 foi assim: um processo de escuta, de amadurecimento de uma ideia que, a certo ponto, nos pareceu inapelável. As mudanças são bem-vindas e, em última análise, necessárias, inevitáveis, sob risco de a Flip (ou qualquer outro projeto cultural) se fossilizar. Mas é preciso também contrabalançar e saber manter o que é a marca da Flip, aquilo que não pode ser mudado, caso contrário o projeto se descaracterizaria.

Certa vez você afirmou que, para um evento literário de porte como a Flip, seria interessante fazer a literatura dialogar com outras formas de expressão artística. Fale um pouco mais sobre isso. Há uma tentação de vermos a literatura como um campo sagrado, “puro”, que não pode ser conspurcado por “outras áreas”. É evidente que a literatura é, de fato, algo específico, tem uma força própria e singular. Mas se reivindicarmos o purismo, sobretudo num contexto cultural mestiço como o Brasil e a cultura internacional de hoje, vamos acabar afastando-a da vida e do público. Ora, a literatura vem sendo marcada, desde o modernismo, por milhares de matrizes “não literárias”, que inseminam a linguagem literária com novas vozes, imagens, pontos de vista. A literatura do século 20 se engrandeceu ao beber no cinema, no jornalismo, nos quadrinhos, na música popular, na filosofia. E depois que essas matrizes se consolidaram na literatura, ficou impensável, a meu ver, promover discussões “meramente” literárias. Vamos discutir o quê? O narrador em primeira pessoa? O foco narrativo? Certamente, mas numa perspectiva cultural mais ampla, mais “suja”, que é o que me interessa. Afinal, as experiências literárias mais interessantes sempre vêm embebidas de elementos “não literários”, impuros.

Como vê atualmente a crítica literária no Brasil? Na sua opinião, ela já foi melhor e mais profunda? Outra tentação que temos é a de ver o passado como um tempo idílico, melhor que o presente. Tivemos gerações poderosas de críticos no passado, e isso frutificou de forma extraordinária nos dias de hoje. Hoje temos grandes críticos literários na universidade, por exemplo, e mesmo em certas publicações. Temos um jornal especializado em crítica literária, o “Rascunho”. O “problema” é que a crítica talvez tenha perdido certa conexão com o público: ao se especializar, ela perdeu interesse ou vocação, por exemplo, para indicar um bom romance para ler nas férias, ou para dizer se o novo romance do autor X vale a pena ou não. Uma tarefa mais ingênua, menos “profunda”, talvez, porém necessária. Seria preciso restituir esse aspecto, que vem sendo cumprido por festivais, por editoras. Isso não aconteceu por um apequenamento da crítica, mas talvez por uma ampliação massiva do público e pela incorporação da literatura à cultura pop.

O universo da crítica hoje estendido a blogs e sites literários independentes está tendo ampla repercussão nas redes sociais. Acha que esse universo autônomo, desvinculado muitas vezes da grande mídia, é onde o leitor vem mantendo um contato mais assíduo e fiel com o que está sendo produzido literariamente no Brasil e também no mundo? Vejo algumas experiências interessantes, porém isoladas: são iniciativas individuais, muitas delas incríveis, mas não vejo a formação de um novo “sistema” que independa da comunicação de massas. A comunicação de massa precisa abrir mais espaço para a divulgação e para a crítica literária, como acontece por exemplo na França, onde há programas de TV sobre livros. Caso contrário, esses fenômenos poderão ficar restritos a nichos e a iniciativas individuais.

Com a sua experiência e olhar como tradutor, que análise faria da situação atual da tradução no Brasil? Por acaso, tem acompanhado o programa do governo referente a bolsas de auxílio a tradutores? Em caso afirmativo, esta proposta parece satisfatória? No que diz respeito à tradução de livros brasileiros no exterior, avançamos bastante ao reconhecer que precisamos ajudar os editores estrangeiros a publicar livros brasileiros. Até pouco tempo, esse tipo de ação era condenado como “ajuda indevida a editores estrangeiros”, como algo injusto e imoral. Todos os países, exceto os de língua inglesa, fazem isso, e funciona bem. A Argentina criou um programa excelente, o Programa Sur, e soube aproveitar muito mais do que o Brasil a homenagem que recebeu em Frankfurt em 2010: publicou mais de 300 livros ao redor do mundo, a um custo menor do que o nosso programa. Ou seja, precisamos melhorar, mas estamos no caminho. Quanto à tradução de livros estrangeiros no Brasil, o nosso isolamento linguístico, somado à nossa matriz multicultural e à sofisticação de nossas editoras literárias têm mantido a grande diversidade de boas traduções que temos desde meados do século 20. Prova disso são as obras russas, japonesas, húngaras, latinas que vêm sendo traduzidas em velocidade impressionante, em geral com boa qualidade.

Ainda no que se refere a essa seara alternativa, como vê atualmente a produção de autores independentes em que muitos deles recorrem ao processo da autopublicação? Essa proliferação de escritores pode favorecer a qualificação do público leitor ou, ao contrário, deixá-lo ainda mais desnorteado pelo excesso de informação e conteúdo muitas vezes duvidoso? Esse fenômeno sempre existiu e apenas se renova, impelido pelas novas tecnologias. Li uma crônica do Manuel Bandeira, dos anos 20 ou 30, na qual ele fala do excesso de lançamentos, dos livros se acumulando na escrivaninha, das impossibilidade de ler tudo. O próprio Manuel Bandeira e outros poetas como o João Cabral se autopublicaram, e bons poetas de hoje ainda pagam, às vezes, suas primeiras edições. Mas em geral – haverá certamente as exceções que confirmarão a regra – as editoras acabam descobrindo quem é bom e apostam nesses nomes. Autopublicação não é um valor em si, não é uma “chancela”.

Em relação à plataforma digital, acredita que e-books serão de fato o futuro dos livros? E já se habituou a leituras feitas em leitores digitais ou ainda é um adepto convicto do livro impresso? Não sou futurólogo. Acho que o e-book encontrará nichos – livros didáticos, biografias (que se beneficiam de recursos multimídia), best-sellers… Mas não vejo a tal “morte do papel” se aproximando. Ainda há muitas questões, técnicas, culturais e mercadológicas, a serem superadas.

Paulo Coelho declarou recentemente, na Feira de Frankfurt, que o governo brasileiro não estimula a difusão de obras nacionais no exterior. Como vê esta questão, ainda mais pronunciada por um dos escritores que mais vende livros no mundo, aliado ao fato de uma tímida participação de autores nacionais este ano na Alemanha. Não li a declaração dele sobre isso.

Paulo Coelho ainda abriu a discussão, neste mesmo evento, de que o preço dos e-books seja mais baixo a fim de combater efetivamente a pirataria. Como analisa toda essa logística mercadológica, sobretudo quando se sabe que, recentemente, a Amazon foi alvo contundente de criticas por parte das grandes editoras e de seus respectivos escritores ao cobrar uma taxa considerada exorbitante para que fossem comercializadas algumas obras em sua livraria on line? Não entendo muito bem desse mercado. Mas em qualquer mercado a concentração é um fator de preocupação. Os autores americanos e europeus estão reagindo a essa concentração, afirmando que a Amazon usou os livros para ganhar mercado, conquistar bons clientes (quem compra livros é fiel, não dá calote, gasta com o coração…) e agora se dedica a vender outros produtos para essa excelente base de clientes. A Amazon americana hoje vende de tudo, os livros são apenas mais um item. Por que no Brasil seria diferente? Para meu espanto, muitos autores brasileiros comemoram a chegada da Amazon aqui como um fator de progresso. Ela precisará nos provar isso.

Agora falando não apenas como editor ou curador, mas como pai. Como pensaria em um programa pedagógico efetivo para se incentivar a leitura nas escolas? O Brasil está caminhando, o governo compra muitos livros para as escolas e a rede particular muitas vezes faz um trabalho decente com livros. O fenômeno de literatura juvenil a que assistimos (John Green etc.) se deve, em parte, a isso. Mas leitura se aprende também (ou principalmente) em casa: é vendo os pais ali, parados por uma hora e meia com o nariz enfiado dentro de um livro, que as crianças tomam gosto por ler.

Na sua opinião, acha que grande parte do público leitor brasileiro deixa de ler pelo preço muitas vezes elevado de um livro ou é mesmo falta de hábito? E o que poderia ser feito, na sua concepção, para que o livro possa se tornar um artigo de amplo acesso a vários estratos sociais? Existem as duas coisas. Mas um hábito é algo que se adquire, se aprende. O livro é caro, certamente, e por isso precisava estar disponível em bibliotecas públicas. As pessoas reclamam do preço do livro mas não fazem campanha pela biblioteca do bairro, que é o que dá acesso efetivo ao livro. Precisamos brigar pelas bibliotecas.

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Ricardo Bellíssimo é historiador e escritor, autor dos romances Sufoco e Negro Amor, entre outros