C hegou ao local combinado: um hotel discreto num bairro discreto. O fim de tarde e o resto de sol sufocado entre os prédios indicavam que a noite viria mansa e pontual. Mas dentro de Albertine um turbilhão de emoções contrastava com a atmosfera de serenidade e com sua imagem angelical e elegante. “Não adulterarás”, alertava o sino da igreja que ao invés de badalar a passagem do tempo, nele reverberavam delícias em antecipada condenação.

Saborosa maçã.

Amarga maçã.

Albertine foi ao encontro, como das outras vezes, sem saber o nome do parceiro. Não deveria fazer perguntas nem mesmo ver o seu rosto. Ela participava de um grupo secreto, exótico e ultra fechado que se organizava pela internet.

Ao Eduardo, seu marido, disse que iria participar de uma terapia em grupo por causa de uns problemas de pele que a doutora Elizabete insistia em causas psicológicas. Voltaria antes do final da novela das nove. Júlia com seus sete anos de idade, era o xodó do casal. Uma das virtudes do marido era contagiar a todos com a paz que emanava de sua alma em perfeito equilíbrio (desculpe-me a intromissão, mas eu que duvido do perfeito, rabisco essa palavra). Calmo, carinhoso, adepto da ioga, da busca de boas energias através da alimentação e de suas meditações diárias. Ele tentava repassar essa harmonia para o lar e era a fonte vital para a sustentação física e espiritual da família. Conheceram-se na universidade, casaram-se depois de anos de namoro e noivado, viviam a madureza do amor que se transformava ano a ano em algo sereno e amistoso.

Mas ela guardava segredos, impossível tocá-los em tempos de seca, apenas quando transbordavam nas cheias é que se debatia com seus horrores em luta com o inconsciente.

Seu padrasto, importante político de uma metrópole brasileira, foi prefeito por diversas vezes. Casou-se com sua mãe, quando Albertine era bem pequenina. Ele, um homem robusto e rígido de princípios, como chefe partidário comandava a casa com a mesma inflexível autoridade com que comandava a política e a administração da prefeitura, distribuindo ordens aos subalternos e gratificações aos correligionários. Sua mãe à sua maneira dissimulada dava-se bem com o marido. Nos momentos de contrariedade da esposa, ou quando ela passava por algum problema, nunca deixou arrefecer sua generosidade, proporcionando-lhe viagens, comprando as melhores roupas, não se importando com gastos em salões nem restringindo o uso do cartão de crédito ou o saldo bancário. Ele tratava Albertine como se fosse sua filha legítima, por isso, Gilda não via problemas se a menina dormisse com o pai postiço, quando ela viajava para os seus constantes retiros espirituais nos polos de consumo espalhados pelo mundo ocidental ou quando dos seus usuais passeios com as amigas em cruzeiros de alto luxo.

Enterrava as unhas na sua pele para afugentar desejos. Sua lasca preferida era uma casquinha no antebraço esquerdo que iniciará com a ponta afiada de um broche em forma de cruz, herança de família, e com a urgência das unhas se perpetuava em ferida. E o broche arranhou a pele da barriga, a ponta afiada passeava pelo corpo. Ao marido reproduzia a teoria da dermatologista: doença de pele, mas ele sabia que não era tão simples. Não, ela não considerava sua atitude um delito voluntário, mas lhe parecia um vício, uma força íntima, demoníaca, que a tomava e a mantinha escrava do alívio e do prazer com homens brutos. Os demônios existem e são autoritários. Deus também é arrogante e ditador.  Ela lutava contra ambos. Apesar do remorso que sentia quando chegava à sua casa, não conseguia frear a busca incontrolável por algo que a palavra não traduz. Época de grandes enchentes: o dique rompe-se e a grande água escapa.

No último encontro, o sujeito nem era lá essas coisas, deu-lhes uns tapinhas sem graça e ela saiu decidida a afastar-se do grupo e voltar para sua vida de boa esposa e dona de casa moderna. Na internet, ninguém mostrava o rosto, nem identidade, essencial preservarem o anonimato. Mas ao invés de romper o ciclo vicioso, ela optou no cardápio sexual por um parceiro mais abusado, alguém mais sádico, desejava experimentar uma situação mais pungente, algo e alguém mais terrível que Gengis Khan. Necessitava extravasar “esse algo” que insistia por um final: um basta. Sua existência de fêmea era um labirinto de contradições, não vislumbrava a saída, a mulher em agonia a procura pelo mínimo conforto de ser e estar. Contentaria com o vazio, uma espécie de pausa, mas havia sempre uma possibilidade na repetição. Novamente o caminho conhecido, conhecido pela confusa mistura de sensações.

Ela estacionou o carro numa rua afastada, caminhou com as pernas bambas e lentas, ainda havia tempo para se preparar para o encontro. Esse affair prometia… Seguiu em direção ao hotel com seu kit, uma valise com peças, adquiridas num sex shop, que ela mantinha trancada a sete chaves no armário pessoal da empresa, onde trabalhava como arquiteta.

Lembrou-se da morte do padrasto, num trágico acidente de carro, quando voltava de uma das reuniões do jogo de tênis com amigos num clube burguês nos arredores da cidade. Na época em que trabalhava para sua candidatura como deputado federal. Com a morte súbita, ela viu a oportunidade de um recomeço: desinfetar sua consciência (e o inconsciente como adestrá-lo?) Empesteada pelo escândalo e pelo pecado. (Pecado? Não está nada claro o que seja o pecado).

Perdoar e esquecer.

Silenciar-se-ia, todos os dias. Enterrar a menina. Coberta de terra, a mulher renasceria. Levaria dali para frente uma vida pacata. Aprendera no catecismo lições bíblicas: “Honra a teu pai e a tua mãe, como o Senhor teu Deus te ordenou, para que se prolonguem os teus dias, e para que te vá bem na terra que te dá o Senhor teu Deus”.

Sim, perdoaria.

Mas involuntariamente, nas suas noites insones ou em seus pesadelos, ainda se lembrava de como ele se referia a sua enteada: ma petite femme. Naquele aniversário de doze anos, contrariado com as denúncias dos opositores ou embriagado pelo conhaque ou pela casa vazia, pediu que ela se sentasse em seu colo, dizendo aleluias pelo dia em que nasceu, afundou suas mãos gordas entre suas pernas, usou de força para separá-las, buscando um lugar dentro de sua calcinha: diabinha do papaizinho, linda do papai, quieta, deixa eu te abraçar, papai te ama tanto, feliz aniversário ma apetite femme. Da boca o hálito de conhaque, o corpo amaciado e perfumado pelos sais de banho. Ela sentia os pelos eriçarem e uma vontade dúbia de correr dali e ficar mais um pouco. Era bom agradar quem aplacava sua febre, ajudava nos deveres da escola, amenizava a indiferença materna, preparava festas surpresas em seus aniversários. Fora isso, sentiu uma corrente elétrica se aproximando, mas sentia também que não poderia deixar que essa fonte energética eclodisse, pensou no dever de casa que tinha que preparar, mas o perfume, o medo, a experiência do corpo, a dor, tudo acontecendo, ela então: chorou. Albertine chorou cobrindo a vagina com as mãos. Imediatamente, recebeu o tapa e o castigo: ficará sem ir à escola por dois dias, por usar esse perfume de sua mãe, confundiu-me.

Perdoaria!

A mãe, quando percebia algum hematoma, cuidava da mesma maneira que fazia quando ela caía de bicicleta, você gosta do seu pai, não quer prejudicá-lo em sua vida pública, né, meu anjo.

Perdoaria! Mas, e as filhas de Ló que o embriagavam, se deitavam com ele para terem filhos? A preleção do padre chicoteava sua mente. O amargo na boca que brotava caudaloso e dissimulado, herdeiro das circunstâncias. Inabalável era o seu silêncio. Albertine considerava em seu íntimo que era culpada pelos excessos do seu padrasto. “Não descobrirás a nudez da mulher de teu irmão; é a nudez de teu irmão”. Contradição de vozes que ecoavam pelas paredes da igreja, como uma cascata acicatando sua carne e sua alma. A nudez de sua mãe exposta aos seus olhos. Silenciou.

Entre a dor, culpa e prazer, ela se digladiava com o obscuro mundo das sensações. Um dia, ele lhe disse: você sabe que isso é ilícito, você não pode mais dormir comigo, paramos por aqui, melhor ter um namorado e não contar nada disso para ninguém, nunca. Vamos esquecer; eles podem não entender seus desejos de mocinha e você será queimada na fogueira da moral. Silencie – ele determinou.

Nunca tocou no assunto com a mãe, que ficou viúva apenas por dois anos, casou-se com outro político da cidade, companheiro de partido do marido, eles mudaram-se para Brasília, quase não se viam mais. Albertine disfarçava, mas não suportava a mãe. Então melhor assim, longe. Gilda sugeria frequentemente à filha que procurasse numa terapia a alternativa para enfrentar seus problemas… a insônia, por exemplo.

Albertine entrou tensa no hall do hotel, fez seu cadastro – eles nunca repetiam o local dos encontros, usavam identidades falsas. Disfarces e estratégias. Subiu para o quarto e se preparou para receber o desconhecido.

A memória instigando conflitos: o marido a esperaria com seu famoso creme de aspargo e ela ainda ajudaria a filha com as lições de casa, mas agora, não pensaria em ninguém.  Em nada. A tourada estava apenas começando. Tinha fé, essa seria sua última e derradeira noite de aventura. “Faço misericórdia a milhares dos que me amam e aos que guardam os meus mandamentos”.

Só por hoje, depois silenciaria. Novamente.

Com Eduardo desfrutava de uma vida sexual monótona, transavam cada vez menos, ele era bastante carinhoso, nunca usava a agressividade ou táticas mais picantes ou selvagens para alcançarem o prazer. Papai e mamãe, o trivial. Albertine se mostrava muito recatada – é a criação cheia de regras e etiquetas – e não permitia maiores ousadias do marido; ele desistiu dos sobressaltos, não exigia, não questionava.

Ela tomou um banho demorado, as mãos suadas seguravam a taça de vinho tinto. Tentava relaxar. Para esses encontros, pintava todo o rosto com uma tintura branca, maquiava os olhos e boca marcantes, traços bem delineados, a sombra chumbo cobria-lhe toda a pálpebra, cílios postiços, uma outra mulher. Já o pressentia no quarto ao lado do seu e a qualquer momento ele entraria pela porta que ligava os dois ambientes. De fato, ele bateu à porta, cumprindo parte do ritual, as mãos trêmulas de Albertine apagaram as lâmpadas, apenas uma tênue luminosidade no ambiente, espelhando as silhuetas de seu corpo pelas paredes. Com máscaras cobrindo-lhes os olhos e outros mundos, eles se encontraram. Ele veio pronto: alto, nu, forte e másculo. Sem nenhuma apresentação, num golpe rápido, macho enfurecido, puxou-a pelos cabelos, atirando-a com violência sobre a cama, com o chicote na mão ameaçava o açoite, estalando-o no ar. Com a outra mão, arrancou sua minúscula calcinha, sem prestar atenção à sensualidade insinuante do transparente tecido que mal lhe cobria o corpo, impelindo aquele momento ao mais desejado ápice. Precipício e gozo. Feito um brutamonte possesso e sedento, arrastou-a para a beirada da cama, puxando pelos pés, depois, virou-a de costas, penetrou-lhe o ânus com gula e raiva, sem esperar o rapport umedecido do prazer preliminar. Mas entre a dor, medo e a espera do gozo, Albertine deu asas à imaginação, para sediar uma indomável sensação que chegava desde outras épocas.

(Entre o triunfo e fracasso ela ficava no quase).

Dor e prazer.

Como um homem potente e feroz, aquele homem sem rosto, intuindo a rendição de sua presa, interrompeu o ato, ainda puxando seus cabelos, ordenou que ela se colocasse de quatro, com as mesmas mãos brutas do passado abriu-lhe mais as pernas e forçou sua cabeça para baixo, e sem nenhum cuidado introduziu em seu ânus um objeto em forma de pinça de inox com pequeninas e várias garras cortantes, bem afiadas, abrindo-a num giro de 360 graus, repetindo o movimento como se o objeto representasse seu ódio pela espécie. Ódio e controle. Enquanto, ejaculava a esmo, urrando como um animal. Humano. Vendo-a rendida e muito machucada, retirou o objeto, jogando-o no chão. Não tinha mais o que fazer, não era sexo a sua fixação. Deixou o quarto sem ao menos se importar com o sangue manchando as pernas da mulher e o lençol da Bela.  Ela imóvel, porém trêmula. Intraduzível sentimento que algumas vezes vinha à tona daquele subsolo secreto e inviolável da velha criança e da mulher que num consórcio involuntário e de uma autêntica irmandade siamês.

Albertine recordou do padrasto, da mãe, do marido que a amava, da filhinha, de outras épocas, exceto o futuro. Da voz bíblica: “para que me não exaltasse demais pela excelência das revelações, foi-me dado um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás para me esbofetear, a fim de que eu não me exalte demais”. Teve medo, depois ira; medo e ira. Desta vez, não chorou. O grito débil e ancestral eclodiu, estirado, potente, tempo sufocado na garganta da petite femme, ecoou derrubando barragens psicológicas, livre e áspero tocou lugares, antes anestesiados, mas vivos. Esse grito submergiu desvelando segredos, culpa e nódoas. Albertine desmaiou, tamanha a intensidade daquela brutalidade, não suportou a dor aguda. Soberana angústia que não quer mais aquietar-se. Ela não pôde escutar, minutos depois, a sirene estridente da ambulância com suas luzes intermitentes, alertando a urgência de um resgate. Enquanto Deus e o diabo se digladiavam, o desgelo acontecia. Quem sabe, por sorte ou misericórdia, nenhum dos dois vença e a valente menina ressurja dos escombros, não sem esfoliações, mas com a sensação que a grande pedra de Sísifo, enfim, deslocou-se de seus ombros e rolou para algum lugar fora do ponto de partida.

*

Eltânia André é escritora, autora de Manhãs adiadas, entre outros