* Por Elton Luiz Leite de Souza *

 

O homem seria metafisicamente grande

se a criança fosse seu mestre.

Kierkegaard [2]

 O fundo da arte, com efeito, é uma espécie de alegria,

sendo mesmo este o propósito da arte.  Não, não há criação triste.

Gilles Deleuze

Os dois manoeis

Eu sou dois seres.

O primeiro fruto do amor de João e Alice.

O segundo é letral.

                                                     (…)

O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu e vaidade.

O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades e frases.

E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.[3]

O poeta se diz “dois seres”. O primeiro “é fruto do amor de João e Alice”, seus pais. O segundo tem uma natureza “brincativa”[4], ele é “letral”. Sua poesia nos mostra que o Manoel-letral , que sempre nos recebe generosamente em seus versos, não é menos vivo que o Manoel que há pouco nos deixou, o filho de Seo João e Dona Alice. Talvez  a saudade que sentimos deste último possa ser minorada pelo encontro com o Manoel que vive sem distância com seus versos, e nestes vive cada vez mais vivo, sempre mais novo, extemporâneo: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”[5].

O “letral” não é apenas letra morta, sintática: “nossas palavras se ajuntavam uma na outra por amor e não por sintaxe”[6]. O “letral” é o devir-poético conquistado por Manoel: “a palavra abriu o roupão para mim, ela quer que eu a seja”[7].

O primeiro Manoel faria 100 anos em 2016, se vivo estivesse. O segundo Manoel, o letral, quantos anos tem? Quantos anos faz? Talvez não se possa medir sua existência em anos. O Manoel-letral é só nascimento, invenção, como possibilidade poética de renascimento através de nós, que nos reinventamos também através dele. Sempre múltiplo, já descoberto e ainda por descobrir: como “afloramento de falas”[8].

Muitos desejam conquistar títulos, fama, prêmios, fardões. Manoel desejou tão somente se tornar totalmente letral: “pelos meus textos sou mudado mais do que pelo meu existir”[9]. O autêntico devir-letral nunca é solitário ou sozinho. Manoel se torna letral para nos tornar também. Ser letral é ler, na letra, mais do que a letra. É se deixar ler também por ela, buscando outras relações na existência que não sejam apenas aquelas governadas pela sintaxe econômica, utilitária, academicista.

A imagem do primeiro Manoel fixou-se no velhinho sorridente e simpático, cuja vida findou aos 97 anos. Quanto ao Manoel-letral, que imagem fazer dele? Difícil fixar uma…. Cada pessoa que o lê pode formar a sua imagem desse Manoel-letral, pura virtualidade que vive no sentido que o poeta inventou. De minha parte, o Manoel-letral é um menino: “inventei um menino levado da breca para me ser”[10]. Esse menino, afirma o poeta, é “a criança que me escreve”.  O tal menino disse ao poeta enquanto o poeta o inventava: “sou eu que te invento poeta, enquanto você me inventa”.

É esse devir-menino que vejo também no velhinho que sorri brincativo nas fotos e capas de livros. “Não, não há criação triste”[11].“Tristeza”, aqui, deve ser entendida no sentido de Espinosa. As paixões tristes diminuem nossa potência de existir, já as paixões alegres aumentam nossa potência de existir. É sempre a existência o critério para distinguir tristeza e alegria. O Manoel que viveu 97 anos certamente experimentou tristezas, como todos nós. Mas o Manoel-letral não é fruto daquelas tristezas, e mesmo estas são transfiguradas pela criação poética, tornando-se poesia, isto é, canto da palavra: “Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar”[12].

Aprendendo a dizer “eu-te-amo a todas as coisas”[13] , tal como no amor fati enquanto afirmação incondicional da vida, o Manoel-letral conquistou mais do que muitos anos de existência, ele conquistou a eternidade do seu devir-menino :

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.        

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro

botando ponto no final da frase.[14]

A empoética manoelina

Mais importante do que o pensamento é o que “dá a pensar”;

mais importante do que o filósofo é o poeta.

Gilles Deleuze

O que seria , enfim, a poética de Manoel de Barros? É possível defini-la? Em filosofia , as coisas definíveis recebem uma essência, uma identidade. É essa essência-identidade que permite o conhecimento científico da realidade. Porém, há coisas indefiníveis. As coisas indefiníveis não cabem em um conceito. Elas se permitem ser apenas experimentadas, vividas, intuídas. Não obstante, elas podem ser compreendidas. Compreender não é o mesmo que conhecer. Não podemos conhecer o infinito, mas o compreendemos. Talvez nunca tenhamos um conceito ou conhecimento científico da liberdade, porém compreendemos sua necessidade.

A poética de Manoel de Barros talvez possa ser compreendida como uma originalíssima    “empoética” . Não há regras ou cânones nessa empoética , uma vez que “empoemar” é um verbo que toda palavra pode conjugar quando perde seu limite utilitário e gramatical. Empoemar as palavras também é subverter os clichês e as representações que as fazem “acostumadas”. Essa empoética manoelina  não possui regras de fabricação, a não ser o retirar das coisas as suas próprias regras: errar o idioma, fazer a gramática .O “errar o idioma” não se faz por uma fala pessoal que se equivoca nas regras, mas por intermédio de uma “fala coletiva” que diz um sentido que foge a toda regra, que leva a própria regra a variar.

Manoel empoema a palavra . Ele a liberta do mero informar. Ele empoema sobretudo as palavras mais simples. Redescobre, adulto, o falar empoemado da criança.A palavra empoemada não é mais representante linguística do mundo, pois ela incorpora o mundo que expressa:

Um subtexto se aloja.

Instala-se uma agramaticalidade quase insana,

que  empoema  o sentido das palavras.                     

Aflora uma linguagem de defloramentos ,

um   inauguramento  de falas.[15]

Há nisso mais do que poesia… Talvez seja isso a autêntica poesia: ser mais do que poesia. A má poesia, ao contrário, é sempre menos. A autêntica poesia não é só verso: embora não seja conceito filosófico, ela “dá a pensar”, empoemando-nos. Este “dá a pensar” é o “inauguramento” de um sentido sempre novo, que não deixa a poesia  se fechar nela mesma, na mera palavra ou  letra. É preciso descobrir, na letra, a fala que a fez nascer. Não a fala pessoal como instância inferior à língua gramatical. A fala poética é sempre “afloramento de falas”: falas da infância, falas das coisas e das pré-coisas, falas do chão, falas dos loucos, falas dos passarinhos, falas do silêncio e até mesmo falas daqueles que não têm falas. Poesia é língua de brincar.[16]

A empoética manoelina também é uma terapêutica: “A terapia  literária consiste em desarrumar a linguagem a  ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos”[17]. Uma terapia como afirmação da saúde, e não mera luta contra a doença. O exercício de tal terapia enseja  uma didática da invenção[18]. A lição que essa didática nos ensina não está nos livros, ela está na própria Vida como um “milagre estético” que “dá a sentir e pensar”:

Não é por fazimentos cerebrais

que se  chega  ao milagre estético

senão que por  instinto linguístico.[19]

Segundo Manoel de Barros, “quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”[20]. Quem descreve crê que o descrito existe fora da descrição, como algo que existe em si, com uma identidade definível e comunicável. Quem descreve se pretende “neutro”, imaginando falar de um lugar no qual não entram seu corpo e sua vida. “Eu escrevo com o corpo /Poesia não é para compreender, mas para incorporar”[21], adverte o poeta. É preciso incorporar Manoel de Barros: lê-lo é empoemar-se. Empoemando a palavra, Manoel nos empoema. Empoemar é um verbo que toda palavra pode conjugar, desde que “abra o roupão para o poeta e o deixe sê-la”[22].Empoemar é mais que conjugação de verbos: é conjugação da palavra com a vida, para “inventar comportamentos”[23].

Quando o poeta nos fala de um “transver” e de um “transfazer”[24] ele nos quer convidar a  experimentar a necessidade de ir além do mero ver que constata e do fazer que apenas reproduz mecanicamente comportamentos . O transfazer e o transver andam juntos: todo aquele que transvê, transfaz o que transvê.O fazer é atividade utilitária apenas. Mas o transfazer é recriar o próprio sentido que damos às coisas.Essa é a ideia que serve de base à sua Didática da Invenção: a ideia de “Oficina”. Uma oficina lúdica, “clínica”: uma oficina espinosista de transfazer a natureza.

Uma coisa é o poema, este é feito de versos; outra ainda é a poesia, pois esta pode também se expressar em forma de prosa; já a poética é mais do que poema e poesia: ela é a visão de mundo, da linguagem, do conhecimento, da natureza e de muitas outras coisas que podemos encontrar em um poeta. Essa visão de mundo é inseparável da maneira como esse poeta cria seu estilo e inventa sua poesia, de tal modo que sua maneira de ser criativo pode servir para que o sejamos em outras áreas.

Aprender/conhecer os poemas e a poesia de Manoel de Barros não se faz sem que entremos em sua poética empoeticamente, em sua maneira de criar e trabalhar a linguagem, para que assim aprendamos a trabalhar outras coisas à maneira como ele trabalha a linguagem.  Não há para isso uma receita ou cartilha. Manoel nos convida a práticas brincativas de desaprendizagens, para que a alma que  transvê una-se  ao corpo que transfaz, inventa, cria, experimenta: “poesia pode ser que seja fazer outro mundo”.[25]

*

Elton Luis é filósofo, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e autor do livro Manoel de Barros: a poética do deslimite ( Rio de Janeiro, Faperj/7letras, 2010)

[2] Epígrafe escolhida por Manoel de Barros na Primeira Parte do livro Menino do mato.

[3]Poemas rupestres, p. 45.

[4] “Nossa linguagem não tinha função explicativa, mas só brincativa” (versos do livro/poema Escritos em verbal de ave).

[5] Encontros: Manoel de Barros, p. 135.

[6] Menino do mato, p. 11.

[7] Livro sobre nada, p. 70

[8] “Uma didática da invenção”, Livro das ignorãças, p., 7.

[9] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81.

[10] Poema “Invenção”, Memórias inventadas – as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Planeta, 2010.

[11] Gilles Deleuze, A ilha deserta , p. 174.

[12] Poema “Línguas”, Ensaios fotográficos.

[13] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, O guardador de águas, p. 64.

[14] Poema “O menino que carregava água na peneira”, Exercícios de ser criança.

[15] “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, O guardador de águas, p. 62

[16] “Língua de brincar, filme sobre o poeta , dirigido por Gabriel Sanna.

[17] Livro sobre nada,  p. 70

[18] “Uma didática da invenção”, Livro das ignorãças,  p. 15

[19] “Biografia do orvalho”, Retrato do artista quando coisa, p. 81

[20] Entrevista concedida ao jornalista José Castello e publicada no site Jornal de Poesia, em 30/05/2005.

[21]Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 (segunda edição).  p. 212.

[22] Livro sobre nada, p. 70.

[23] “Comportamento”, Ensaios fotográficos, p. 65.

[24] Livro sobre nada, p. 75.

[25] Gramática expositiva do chão — poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1992 (segunda edição), p. 336.

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Entre os dias 25, 26 e 27 de outubro, acontece na Unirio e na UFRJ o evento “Poesia pode ser que seja fazer outro mundo – Uma homenagem ao poeta Manoel de Barros”.

O evento homenageia o centenário do poeta e terá quatro mesas. A primeira delas será intitulada “É preciso transver o mundo”. Acontecerá no auditório Paulo Freire,  na Unirio, no dia 25 de outubro, às 10h. Participam Mário Chagas, Salgado Maranhão, Mariana Hilgert e Paulo Vasconcelos (colunista da São Paulo Review). A segunda mesa está prevista para o mesmo auditório, no mesmo dia, às 15h, e contará com a presença do ator e diretor Pedro Paulo Rangel, que falará de seu trabalho em torno da poética de Manoel de Barros. Título da mesa: “Manoel de Barros, por Pedro Paulo Rangel”.

No dia 26 de outubro, acontece a terceira mesa, na UFRJ,em dois horários: às 10h e às 15h. A mesa será intitulada “Manoel de Barros: a sabedoria que não vem em tomos”. No primeiro horário comporão a mesa Samarone Marinho, Luiz Henrique Barbosa e Mário Bruno ; no segundo horário, Paulo Oneto, Alessandro Sales e Elton Luiz Leite de Souza.

A quarta mesa acontecerá no dia 27, também na UFRJ, às 15h, e contará com as presenças de José Mauro, Ieda Tucherman, Renato Silva e Antônio Jardim. Título da mesa é “Poesia não é para entender, poesia é para incorporar”.

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