O Sapo
Ao Abreu Paxe
“as coisas jogadas fora
têm grande importância,
– como um homem jogado fora”
(Manuel de Barros)
em meio a moscas e estilhaços
de telas de tevê quebradas
vive um enlameado sapo
vindo de um longínquo regato
terra sem glifosato ou patente,
no meio do anonimato
ali onde jazem os fragmentos
de produtos do ocidente
como caixas de detergente
garrafas de leite presidente
com os ingredientes em russo chinês e árabe
o sapo recolhe seu repasto
entrando de esguelha
num reluzente frasco
como fazia nas cabaças da aldeia
com as quais se produziam ditados
kyula ukota mu knala tekama
agregando às bordas da lata
resquícios de sua terra barro
puro como as Geórgicas de Virgílio
turpis non est quia per naturam venit
Brekekekex ko-ax ko-ax
Brekekekex ko-ax ko-ax
cessa de coaxar o batráquio
quando entre as moscas se depara com o corpo
do homem, não pelas autoridades,
mas por Diógenes procurado
Catedral
pedra vertical
vertigem projetada
pedra sobre pondo pedra
torre de catedral
é pedra projetada
na horizontal
contra quem viola a lei
que na pedra foi gravada
anjos gárgulas
ângulos de uma projeção
a escolhida a rejeitada
todas as pedras estão manchadas
o
divino
habita
outra verticalidade
órgão de vastos
tubos e teclas
hostes de anjos de
inumeráveis asas e trombetas
morada dos velhos deuses
anteriores ao rito da pedra
a
árvore
SPQR
São as do meu deserto as cores das casas em Roma
O amarelo claro, quando a sombra da acácia se espreguiça
O laranja da manhã, hora da girafa de sombra que se estica
O cinza esbranquiçado, do meio-dia que afugenta a girafa
O ocre da tarde, tempo do pescoço da girafa perseguir os camelos
O rosa bem claro antes da acácia pela copa da noite ser absorvida
Roma tem muitas árvores altas que aqui chamam de pinos
Girafas com cabeça de acácia
Acácias com pescoço de girafa
As muitas janelas de Roma refletem o sol
Mas meus olhos estão cobertos de sal
E tragam tudo ao meu redor
Nas tampas dos bueiros nas ruas
De Roma estão gravadas as letras SPQR
Nelas eu leio Se Pudesse Queria Regressar
Mas o deserto está ao meu redor
As dunas nas muitas escadas de Roma
Nas escassas crianças de Roma as acácias
Saudade pouco que resta
Mas dentro dos olhos tenho o deserto
Que traga tudo ao meu redor
*
Manual onírico de jardinagem, de Mauricio Vieira (editora Glaciar, 96 págs.)
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