* Por Pedro Maciel * 

O escritor gaúcho João Gilberto Noll não é apenas um contador de histórias trágicas, mas um autor que arrisca buscar novos caminhos a cada livro. Toda a sua obra eleva-se como um movimento musical: “quando escrevo, a palavra tem aos meus ouvidos uma vibração mais musical que semântica”. Não há elaboração intelectual no que ele escreve, mas um aflorar da intuição que se traduz em imagens e metáforas. As aspirações de sua alma em busca de conhecimento não prescinde dos sentidos.

Noll destaca-se dos escritores de sua geração porque revela uma galeria de personagens “desqualificados para o mercado, sem teto, sem nome, sem identidade, que perderam essa aliança com a comunidade de alguma forma. E eu estou muito preocupado com essa questão que para mim é trágica. Eu sou um autor trágico e faço questão de afirmar isso, categoricamente. Eu esperneio contra a irreversibilidade de algumas questões humanas.”

Como numa grande e complexa sinfonia, os temas fundamentais da obra de Noll se anunciam: a solidão como condição do homem, sua impossibilidade de comunicação, mesmo no amor, a incompreensão como meio de ultrapassar a compreensão, a emoção que pertence ao corpo e é apenas reconhecida pelo espírito. O universo alucinante criado pelo iluminista João Gilberto Noll é habitado por criaturas assombradas, lúdicas, selvagens, oníricas _ criaturas que querem o tudo e preferem o nada, a náusea, a dor, sempre inglória.

João Gilberto, a música é a arte que mais te inspira a escrever? Sem dúvida. Eu só escrevo praticamente com música. Evidentemente que com música instrumental, sobretudo com música clássica, porque se eu for colocar música com letras e palavras eu iria me dispersar.

Você escreve escutando os clássicos, como Bach? Essa é minha preferência total e absoluta. Ouço muito Bach, porque tem um aspecto litúrgico muito forte e eu prezo muito isso na música. Se bem que eu seja absolutamente ateu. Uma liturgia pagã, uma liturgia que te faz mediador entre essa repetição do cotidiano talvez. Alguma coisa que te possa levar para uma certa elevação, para uma certa antenação. Talvez coisas que a gente não esteja muito acostumado a olfatar, a farejar. A música talvez seja a arte que eu mais admire porque ela te ajuda a descentralizar do mundo real. Não é alguma coisa que te traga para um eixo muito preciso, muito demarcado. É uma expressão artística que te convida a viagem, a peregrinação por coisas que você talvez não soubesse que existiam, que estavam aí.

O ritmo é naturalmente o núcleo da poesia… O que me faz escrever os meus romances é o ritmo, muito mais do que o tema. Geralmente eu estou muito turvo diante das possibilidades temáticas do que se pode fazer. Não sei, não é muito bem o quê seria minha direção temática. A minha direção temática é a posteriori, depois é que eu vou ver. Mas o que me puxa realmente é uma questão de respiração, muito mais orgânica do que intelectual e, muitas vezes, uma questão muito histérica. Eu sou absolutamente histérico no sentido de que eu exacerbo na escrita coisas que tem muito mais a ver com ritmo, com movimento no sentido do movimento musical. Eu gosto de escrever em alegro, em adágio. Enfim, isso para mim está em primeiro lugar, depois é que eu vou ver quais são os temas que vão aderir a esse fluxo.

O ato da escrita é um ato de aventura, é não saber onde vai chegar, é a procura da luz, não é já estar com a luz de antemão

Você quer dizer que o sentimento, a comunicação que as palavras transmitem é mais importante do que a criação do jogo de palavras? Eu acho que sim porque eu não consigo ver a arte como essencialmente um jogo, como você disse. Isso seria de um formalismo atroz e eu acho que a arte, a literatura vêm sobretudo do drama humano, da paixão humana, dessa incógnita humana. Enfim, eu acho que vem fundamentalmente daí. É claro que numa camada qualquer também tem um aspecto lúdico, porque não vai apresentar esse drama em estado imediato. Você vai mediar pela palavra e a palavra tem esse aspecto lúdico, inegavelmente.

O que te faz escrever é a vergonha? O sentimento motriz é a vergonha. É tocar em coisas que eu, como cidadão, não tocaria jamais. Eu sou uma pessoa absolutamente introvertida, não gosto de chocar. A literatura para mim é um trauma, um choque, ou não é.

É uma idéia existencialista… Ah, sem dúvida. É uma questão de geração minha, é um abcesso. O Nelson Rodrigues gostava de dizer que o teatro dele era um abcesso e eu me identifico muito com isso. É um momento que você vai espetar esse abcesso com uma agulha, tocar, deixar expulsar aquilo que está ali, latejante. É uma inflamação. Escrever é uma inflamação.

Você escreveu recentemente que a literatura é um lugar “do não-saber, da fúria, do debater-se em vão, em vão se arremessar em mais esta manhã”. O escritor é aquele que sobrevoa o inimaginável? Esse paralelo está muito bom. A manhã é a possibilidade de você sobrevoar, de não chafurdar nesse pântano, que é a base do abismo. Aí eu sou extremamente (eu não queria ser, mas redunda nisso) algo bastante cristão. A psicanálise também tem a sua raiz judaica, bíblica, queira ou não queira. Sem você realmente se banhar deste desconforto enorme que é… Eu nem sei dizer o que é. A sobra, as forças expletivas. Se você não mexer nisso, quem há de mexer se não for o escritor, o artista ou aquele que tenta exercer a função poética. Se não for ele a mostrar para o leitor… Às vezes o escritor é aquele que pega o leitor pelo cangote, como se faz com cachorro, e põe o focinho do leitor ali na merda, isso que o ser humano não quer ver.

Você passa uma ideia que estar vivo é desconfortável. É na literatura que você se salva? Os personagens são os seus melhores interlocutores? O leitor é a razão de ser da minha vida. Se existe uma religião em mim é a religião do leitor. Claro que é uma coisa absolutamente vaga, uma entidade, eu não tenho pensamento em nenhum leitor específico. Nada disso. Isso é psicologismo bobo, atender as demandas de tal pessoa, fulano ou beltrano. Mas existe uma função libidinal na literatura inegável para mim. Eu costumo invocar o Walt Witman nesse sentido. Ele queria que o leitor tocasse no tecido do canto dele, da paixão. Acho que é por aí. Mesmo tocando neste desconforto, neste mal-estar da existência muitas vezes, que você vai dar realmente para o leitor é uma tentativa de grito, de procura desesperada por uma beleza, uma beleza cruel, uma beleza feia, uma beleza cafajeste, o que for. Aliás, eu só acredito nesta beleza porque a beleza está muito desacreditada.

O artista ilude em nome da beleza. A beleza pode ser algo bastante produtiva e não aquela beleza cadavérica, helênica. Eu não clamo por essa. Eu clamo por uma beleza viva. Evidentemente que não é uma beleza de valores já caducos.

Todo mundo tem algo de belo a ser mostrado… Eu acho que sim. É importante você espernear para que essa beleza não seja sufocada. Porque hoje todo mundo está ligado em números. Você é um número de cartão de crédito.

A literatura não muda a ordem social ou política

A sua escrita nasce da fala, da oralidade… A substância que eu pego para escrever é a fala. O que não é nenhuma novidade, os primeiros modernistas já clamavam pela oralidade. Eu acho que se há uma contribuição realmente fundamental dos modernistas brasileiros é de dar vazão a oralidade brasileira e acho que a gente tem que radicalizar. Evidentemente que não num trabalho naturalista de querer apenas fotografar a fala. Literatura, arte para mim ou é reinvenção ou não é também.

Você é conhecido como um escritor que não usa os recursos tradicionais da narrativa, como o realismo, a verossimilhança e a psicologia. É um escritor autônomo, regido por leis próprias. Quais são essas leis? Se eu sou realmente isso que você disse… Eu cada vez vejo mais a literatura e o romance na sua teatralidade. Literatura como evento, não apenas como espelho das questões sociais mais imediatas, mas que ela traga o leitor para um horizonte ritualístico, um horizonte litúrgico. Que ele realmente sinta sua pulsação naquele momento, que ele presentifique a sua questão humana que é aquilo que ele traz dentro de si como uma porção humana e tal, que ele presentifique ao máximo. É como se ele fosse lá no palco e participasse junto com o ator, cada vez se integrasse mais pela voz, pela questão do ator. Não é a toa que meus últimos livros tratam de atores, de protagonistas, que são homens ligados ao teatro. Porque eu ando muito preocupado com essa questão da liturgia, do ritual. O romance não apenas como análise de decadências, da burguesia, aquele projeto de Thomas Mann, europeu. Que não seja apenas isso, mas que seja também um lugar onde você se exercite, exercite sua vocação para alguma coisa que rasgue esse horizonte tão automático, tão maquinal, tão mecânico que nos é imposto. Nesse sentido eu acho que o romance e a literatura realmente são coisas que devem se engajar nesse princípios, não naqueles princípios tão já questionados da minha geração, lá nos anos 60, que a literatura vai mudar a ordem social ou política, não é bem isso.

Qual é o seu romance mais revolucionário em termos de forma? Eu diria automaticamente qual é o mais clássico que é o Hotel Atlântico. Eu estava num momento muito revoltado contra uma certa estilização excessiva do nosso legado ibérico, tanto o português como o espanhol onde realmente a prosa é muito ornada, o ornato é muito importante, o enfeite da linguagem. Então eu quis fazer uma coisa bem despojada que realmente não atordoasse, mas logo voltei novamente para um certo atordoamento, mas já mais como um domador muitas vezes, talvez.

O que é a literatura moderna e o que é contemporâneo? A literatura moderna a meu ver é aquilo que foge desse espírito de telecine que impera tanto hoje na literatura. Todo mundo quer fazer o seu policialzinho bem descolado, tudo confluindo para o final “x”. Os autores escrevem já sabendo do roteiro todo enquanto que eu acho que o ato da escrita é um ato de aventura, é não saber onde vai chegar, é a procura da luz, não é já estar com a luz de antemão. A literatura hoje tem sido muito um entretenimento e nesse sentido eu sou um dinossauro. Para mim, literatura não é entretenimento, é aquilo que a gente estava falando, tem um lado lúdico, um lado claro que dá um sabor especial, um prazer mais imediato.

Os romancistas atuais começam a escrever com o roteiro pronto, contratam uma equipe da USP ou da Unicamp para fazer a pesquisa de época e os ditos “romancistas” só amarram a história… Você disse tudo. Não há o que comentar.

Essa tendência surgiu com a literatura chamada pós-moderna. Essa fase policialiesca marca o início do declínio da literatura moderna. Logo viria a literatura pós-moderna, caricatura de uma época perversa e “Kitsch”. Isso é o braço estético que nós chamamos repetidamente de neoliberalismo. Não vai se fazer uma edição de um livro para não se ganhar dinheiro, pelo menos um bom retorno e mais algum lucro. O sujeito quer domar a criatividade de escritor do lado de sua mesa, do seu gabinete, da editora.

Afinal, o que é a literatura contemporânea? Acho que o contemporâneo é aquele movimento artístico, cultural, político que de alguma forma assume essa ambivalência, essa indeterminação, até porque nós vivemos num mundo hoje que é pré-determinado, você já nasce com seu numerozinho. A ambigüidade é uma coisa muito mal vista nesta receita que nós falávamos, de literatura interior. A gente não pode arriscar em não vender o livro. De alguma forma eu também entendo isso.

Aí é o jogo do mercado… Ao mercado não interessa essa indeterminação, essa sondagem de coisas que você não conhece de antemão, que você vai escrever justamente para exercitar, para tentar…

Na literatura contemporânea não há um estilo único já que vivemos num período pluralista… Exatamente. São papos correlatos que nós estamos tendo aí nesse momento. É um momento de falta de certezas onde não cabe absolutismos, se bem que seja um momento absurdamente absolutista. A gente sabe disso. É uma verdade única, se você não for pragmático hoje, você é um louco, doido.

E a verdade é relativa e infinita… Desde que você deixe a minha liberdade em paz. Eu gostaria que esse valor fosse universal.

O estilo é uma maneira de pensar? O estilo é fundamental na literatura. Até na falta dele. Eu acho que um dos problemas hoje é que o estilo virou pecado, virou perfumaria dentro daquela receita que a gente estava falando. Virou alguma coisa supérflua, e não é supérfluo. Se a literatura tem uma função, ela tem várias funções também disso que a gente está falando, da contemporaneidade. Mas eu acho que uma das funções fundamentais da literatura é justamente ela não deixar que se apague essa coisa que se chama indivíduo. Porque esse bicho aí pode estar realmente com seus dias contados. Eu acho que a literatura pode ainda cutucar esse animal que é único. Eu acredito que se você escavar essa diferença vai encontrar algo que é comum e que foi esquecido. Eu não estou atrás da diferença, do estilo, apenas para folclorizar a diferença e o estilo, mas porque eu tenho absoluta fé que nessa coisa que é considerada o apogeu do indivíduo, da diferença, está a marca de um valor antropológico incomensurável. A dialética entre o único e o universal, entre o singular e o coletivo, é uma dialética que dá muito pano pra manga para qualquer ficcionista. E qual é a trajetória do ficcionista se não essa de seguir os passos de uma destinação singular para mostrar o humano?

Nós vivemos uma época de redescobrimento do individualismo? O ressecamento da generosidade das pessoas é uma coisa gritante. Sem nos vitimizarmos por isso. O negócio é tentar inventar as reações. Mas é gritante, está todo mundo cagando um para o outro cada vez mais. Evidentemente isso que eu estou tentando no meu debater-me, dizer com relação ao estilo, o indivíduo, a marca da singularidade, não é apologia do egocentrismo.

O ideal seria pensar individualmente para se descobrir o coletivo… Eu acho que sim.

Cada um ter opinião própria e a partir daí conjugar com o outro, entender o outro… A literatura é importante porque é um veio onde esse exercício do mesmo e do outro se faz. Realmente a literatura, a prosa de narrativa, não é uma abstração, não é uma ideologia da questão humana. Isso aí não é literatura, pode ser algo muito eficaz para o cientista social, o político, um ideólogo no bom e no mau sentido., mas o escritor não vai escrever para referendar a ideologia às prévias. O escritor é um sujeito que está a procura, às vezes até se sobrando no pântano das coisas, ele não consegue até seguir. Acho que é importante que o romancista, no caso, assuma o aborto muitas vezes da arte por isso mesmo. Às vezes ele não sabe como prosseguir, ele não sabe como prosseguir tantas vezes. A vida quantas vezes suspende, eu tenho um lance de saber tudo a toda hora com todo mundo, mas não dá. Eu acho que o romancista tem de ter essa humildade (essa palavra humildade eu também não gosto, mas vamos dizer modéstia), de deixar as coisas inacabadas, incompletas. Isso eu acho muito contemporâneo também. Essa aceitação de uma certa incompletude.

Flaubert diz que a imbecilidade consiste em querer concluir… Essa consciência em um camarada que queria realmente a coisa marmórea, a coisa perfeita. Parece contraditório ter dito isso também. Acho que isso é muito contemporâneo. O estilo nasce de uma deficiência, não é uma perícia sempre. Às vezes você se sente sufocado com os modos sintáticos impostos. É preciso realmente mostrar a sua respiração dentro de um contexto que tenta travar essa respiração.

A vida às vezes é demasiada…

Falemos da morte, que é um tema muito perseguido por seus personagens. A morte não tem nenhuma importância, desde que haja alguma coisa do outro lado… Tenho uma formação católica na minha infância, até a adolescência, mas depois daí… Eu gostaria de trabalhar com essa hipótese de que exista a existência do pós- mortem, mas não é isso que meu coração por enquanto ecoa. Eu acho que realmente a vida às vezes é demasiada… Isso Freud já disse também, não há nenhuma novidade nisso, de que você sente uma atração pelas formas mais primárias, elementares de vida, que é simplesmente você ser mais um elemento planetário, fósforo, cálcio em decomposição dos seus ossos, e não querer muito mais do que isso também. Mas ao mesmo tempo, tudo isso é um debater-se constante. Por isso que a gente escreve, por isso que a gente se cala, que a gente quer amor. Porque a gente não vê nada muito conclusivo do outro lado.

O homem luta sempre contra o rumor do esquecimento, as cicatrizes do tempo e a hora da morte… Isso é uma força muito grande. A força que te leva a querer permanecer é muito grande. Os momentos mais sublimes da vida são aqueles momentos que você se entrega a um certo esquecimento, que é o amor. É um esquecimento de você mesmo.

E o sexo? Como falar do amor nesses tempos de aids? A discussão da questão amorosa é vista hoje pelos bem pensantes como algo reacionário, demasiadamente abstrato, sublime. Mas eu não vejo o amor com essa sublimidade, essa coisa muito abstrata, não. Eu vejo como esse reconhecimento de você mesmo na força cósmica, na força material, esse apogeu da materialidade. Evidentemente que sempre buscando uma certa transcendência. É dicotomia. Eu não sei realmente de onde vem essa minha tendência pelas contradições.

Os meus personagens são personagens desqualificados para o mercado, sem teto, sem nome, sem identidade

 No amor você doa ao outro as suas melhores idéias? Eu acho que sim. As melhores idéias e a fusão, que é uma questão muito importante que é o núcleo da tragédia. A tragédia existe porque essa fusão se quebrou. Eu sou muito interessado nisso, em personagens trágicos que não conseguem mais viver essa fusão, que foram desmembrados. Os meus personagens, como diz o crítico David Trece, no prefácio dos meus trabalhos reunidos, são personagens desqualificados para o mercado, sem teto, sem nome, sem identidade, que perderam essa aliança com a comunidade de alguma forma. E eu estou muito preocupado com essa questão que para mim é trágica. Eu sou um autor trágico e faço questão de afirmar isso, categoricamente. Eu esperneio contra a irreversibilidade de algumas questões humanas.

O autor não consegue revelar a fragilidade humana na tragédia. Só a comédia é capaz de desvendar essa fragilidade… É, é isso aí. Mas eu sou espalhafatoso mesmo.

Você quer dizer que a sua literatura é incompatível com a realidade que nos cerca? Ou tudo ou nada, e não tem muito censor mesmo. Agora nesse momento da minha vida eu estou me reconciliando com isso. Eu achava isso um horror até há pouco tempo. Eu estou preocupado com esse cara aí, esquizóide. Eu gosto da visão esquizóide. Não é que eu goste. É a visão que me impulsiona pra escrever, essa discordância com o real.

O ato da escrita é um ato de aventura, é não saber onde vai chegar, é a procura da luz, não é já está com a luz de antemão

 A função da arte é eleger o indefinido, o indeterminado, o inconcluso? A literatura deve ressaltar o assombro, o estranho, o imprevisível? O romancista tem que entrar em questões não catalogadas por enquanto. A gente tem que ir atrás do incatalogável, se não qual é o sentido de você ficar referendando ideologias prontas na ficção? Eu quero aquilo que possa em certos momentos, não o tempo todo, eu também tenho uma certa tradição ligada ao iluminismo. Não me coloque no caminho, no antro da loucura, da perdição, do ostracismo, do desvio, das luzes. Não é isso. O escritor não é aquele que fica só corroborando o que o mundo acadêmico já esgotou. O escritor não é o braço da USP, nem da PUC, nem do raio que o parta. É um trabalho que deve ser autônomo, independente. Muitas vezes a atividade mental acadêmica embalsama as coisas e quer que o escritor seja servil a esse esquema. Não é que o autor hoje deva ser um extraviado das luzes. Eu não acho isso. Eu também quero compreender a minha época, o mundo que me foi dado viver. O escritor também é um exercício no sentido da compreensão desse mundo. Existem maneiras e maneiras, várias, múltiplas maneiras de você compreender essa sua época, esse seu presente drumondiano. Às vezes realmente o autor vai ser muito mais útil, muito mais eficaz, num trabalho de convulsão, de trazer as forças da animalidade do que ficar apenas ilustrando ficcionalmente a realidade e os preceitos acadêmicos iluministas. Mas fora da razão, da compreensão, da análise, também eu acho que não se faz muita coisa não.

Pode-se dizer que os seus romances desenvolvem-se a partir de uma narrativa cinematográfica? Cinematográfica sim, de uma certa maneira. Mas não esse cinema que está por aí nos shoppings centers.

Fellini e Pasolini são seus mestres prediletos? O cinema poético do Pasolini pra mim é cada vez mais claro. Eu acho que é uma das saídas para essa narrativa macarrônica que se faz hoje, essa coisa telecinemática o tempo todo. Eu acho que a ficção hoje está muito “bronca”, sem estilo, um estilo depalperado, se é que existe estilo. A gente tem que espernear.

Falemos do tempo e da loucura. Há certos personagens em seus romances que buscam estrelas no mapa zoodíaco, fora do tempo, como num jogo de lunático… A literatura tem que mexer também com as suas utopias, com a utopia de evasão. A evasão é uma coisa que você tem que ir, mas tem também que voltar, porque se você apenas se trânsfuga do real também é destrutivo. Eu acho que a gente deve, enquanto romancista, lutar pela participação da maior parte das pessoas na vida e lutar pela conservação dessa vida em qualquer instância que você possa imaginar. Que o sufoco é grande, a opressão do real é grande, esse real que nos metem pela goela abaixo é grande, e muitas vezes eu faço esse momento litúrgico, onde os personagens se evadem um tanto quanto da realidade para vivenciar nesse brinquedo cósmico. E qual é o problema? A literatura não está aí apenas para reproduzir situações problemáticas do ser humano, mas muitas vezes para brincar um pouco também. Porque só o poeta pode brincar. Eu sou absolutamente favorável de uma literatura híbrida, que mexa na fronteira entre a poesia e a prosa, entre a poesia e a narrativa. Não prosa poética porque eu acho a expressão um pouco balofa.

Na ficção, o escritor pode falar de momentos inesquecíveis mesmo quando todos que viveram esses momentos já os esqueceram… Claro. Eu acho que a literatura tem como função também falar do não nomeado, daquilo que é colocado pra debaixo do tapete pra que ninguém veja porque é ocioso.

O passado não está morto. Às vezes ele nem sequer passou. Os gregos diziam que a memória é a condição do pensamento humano. Isso é ao mesmo tempo muito benjaminiano… Walter Benjamin dizia que o passado pode ser recuperado, pode ser reinventado e que você tem que presentificar essas potencialidades esquecidas do passado. Evidente que você está mexendo na ordem do ficcional, na ordem do poético. Essa recuperação desse passado que foi vivido doidivanamente que você se impregnasse nele. Eu acho que você pode revivenciar o passado. É muito importante você presentificar. A literatura como presentificação. Quem fez isso magistralmente no Brasil foi Clarice Lispector. É chamar realmente o leitor para o próprio processo da construção romanesca de como realmente é difícil a expressão, de como realmente mostrar isso, abrir as vísceras da expressão, desmistificar essa história de que a beleza literária é uma coisa pronta e acabada. É uma coisa que se faz com o leitor, para o leitor. A gente tem que chamar o leitor para a co-produção do seu texto.

A eternidade está no presente? Não tem outra possibilidade para mim se não esta. Acho que é uma boa síntese. Eu escrevo também por isso, não apenas para reconsiderar um mundo que acabou, que é o projeto dos anos 30. Eu não sou um romancista dos anos 30 que produziu mestres incontestáveis como Graciliano Ramos. Eu cito Graciliano porque foi um dos caras que mais transcendeu, que mais ultrapassou uma certa estética do romance de 30 que é um tanto quanto positivista. Criar essa exigência até hoje. Hoje até começa a se esboroar um pouco esse projeto do romance de 30. Eu não sou contra o romance de 30 em si, eu sou contra essa hegemonia que persiste, que é o romance social. Eu não clamo por um romance que fale do sexo dos anjos, eu quero o real sim, mas quero inclusive a possibilidade do romance fazer o leitor viajar.

Não dá para fugir do tempo de ir e vir… Não dá, quem quer ultrapassar o ir e vir é esse capitalismo escochante que quer usar a tecnologia pra tudo ficar mais abreviado, instantâneo. Eu não sou adepto desse mundo. Eu acho que você pode dar margem para uma certa celebração, deixar um pouco o fluxo narrativo para poetizar um pouco essa cadência das coisas.

Falemos um pouco sobre seu livro que aborda a preguiça, dentro da coleção “Plenos Pecados” . A preguiça não nos deixa reconquistar o paraíso? Os meus personagens todos são muito contemplativos, muito oprimidos pelas injunções da produção, do ativismo da produção. Aliás, o meu personagem protagonista do livro da preguiça é um personagem que se mineraliza. A preguiça é mais um pecado capital, algo que é visto como inútil dentro da sociedade… A preguiça é visto como inútil por desenvolver apenas um sentido lúdico que é esse momento que as pessoas vivem e esquecem porque se perdem, se apagam, nessa injunção da utilidade, nessa injunção da burocracia existencial. Não vejo porque isso só possa ser feito pelo poeta, esses momentos que tocam numa certa tendência, numa certa pele do que é chamado irreal.

O ócio é o negócio do artista? Ah sim. Sem ele não sai uma linha.

O autor e a obra

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre (1946). Em 1980, publicou o livro de contos “O Cego e a Dançarina” (Prêmio Jabuti). Tem os seguintes romances publicados: “A Fúria do Corpo” (1981), “Bandoleiros” (1985), “Rastros do Verão” (1986), “Hotel Atlântico” (1989), “O Quieto Animal da Esquina” (1991) e “Harmada” (1993). Em 1996, lecionou Literatura Brasileira em Kerleley (EUA). Romances e Contos Reunidos” (1997), entre outras obras.

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Pedro Maciel é escritor, autor de A noite de um iluminado (Iluminuras), entre outras, e artista visual

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