* Por Rafael Gallo * 

Antes de abordar o livro da vez, quero tocar em outro assunto: as trocas de leituras. Eu tinha apenas ouvido falar de A luz difícil (Editora Bertrand Brasil), do colombiano Tomás González, e, confesso, seria pouco provável que eu o lesse. Isso mudou quando o vi na lista de leituras preferidas de 2018 do Humberto Conzo Júnior, no canal de Youtube dele, o “Primeira prateleira” (você pode ver o vídeo clicando AQUI).

A razão de contar isso é porque acredito muito na necessidade dessas recomendações, especialmente de pessoas com as quais você vai criando relações de afinidade e confiança. Há livros demais para lermos, então um certo “mapeamento” do que, provavelmente, vale a pena é necessário. Aliás, esse mapeamento existe em quase tudo (conhecemos – antes de conhecer – parte do conteúdo das séries da Netflix, dos filmes em cartaz, das bandas nos estilos musicais dos quais gostamos, etc.) e eu acho que se livros fossem objetos de conversas – e marketing – tanto quanto são esses outros produtos, teríamos bem mais leitores e leituras, especialmente de autores ainda vivos.

Enquanto os lançamentos da Inês Pedrosa não se tornam o destaque dos comerciais do Super Bowl, ou a revista Caras não mostra o Rubem Fonseca abrindo seu apartamento, a gente vai criando aos poucos essas redes de indicações de leitura e de escritores, para tentar apresentar a outras pessoas algo que elas provavelmente vão gostar (e, talvez, não conhecessem de outra maneira). É uma via de mão dupla, claro: enquanto apresentamos livros aos outros, também somos apresentados a outros tantos. Acho que esse é o grande objetivo desta coluna, por exemplo; não tento fazer aqui resenhas das obras abordadas, mas simplesmente sinalizar algo como: “acho que vocês podem gostar desse livro que li, vou dizer um pouco por quê”.

Então, vamos lá: A luz difícilé um romance curto, com pouco mais de 120 páginas, e é daqueles que fazem o leitor grudar à história, a ponto de ficar pensando (ansioso) na hora em que vai poder voltar ao livro, quando está longe. González tem bastante fluidez na narrativa, mescla muito bem humor e tragédia (mais tragédia do que humor), cria personagens interessantes e diversos cenários, afastados no tempo e no espaço, mas aproximados pelos temas.

A história orbita ao redor de David, o narrador e protagonista, cujo filho mais velho decide pôr fim à própria vida. Vítima de um acidente de trânsito que o deixou paraplégico e com muitas dores, o jovem Jacobo viaja na companhia do irmão para outro estado dos EUA – onde a família mora – a fim de realizarem uma espécie de eutanásia clandestina. A família, incluindo a mãe e um terceiro irmão, fica em casa com amigos, pelos dias em que dura essa viagem deles. O epicentro do romance são esses momentos, de tensão e impotência, quando cada um tenta cuidar de si mesmo e dos outros, em meio aos telefonemas dos viajantes, informando de tempos em tempos a situação deles.

Ao narrar tais episódios, David já está velho, de volta à Colômbia muitos anos depois, e em contexto bastante diferente. Esses dois planos criam relações de tensão e relaxamento, como em uma música da qual se quer escutar mais. Só o final – talvez, justamente por essa razão – me pareceu carecer de uma cadência um pouco mais interessante, mais conduzida; depois de toda aquela tensão anterior, as coisas se “resolvem” de uma maneira meio ligeira. Ainda assim, é fácil entender por que esse livro ganhou lugar na lista de preferidos do Humberto. Eu fico grato à dica dele, me proporcionou uma leitura por demais prazerosa, e espero que eu possa proporcionar o mesmo a alguém. É para isso que estamos aqui.

Trecho:

O que são as palavras. Eu já tinha ensaiado escrever a poesia e contos, quando era muito jovem, e não o havia feito mal. Naqueles dias, eu parecia ter mais aptidão para isso do que para a pintura, pois me vinha de família, na qual tinha havido escritores. E agora que volto a fazê-lo depois de tantos anos, me assombra outra vez o quanto são dúcteis as palavras; o quanto por si sós, ou quase por si sós, expressam o ambíguo, o transmutável, a pouca firmeza das coisas. São iguais ao mundo: instáveis como casa em chamas, como sarça ardente. Tudo isso sem que eu deixe de ter saudade do cheiro de óleo ou do pó do carvão ao tato, e sem deixar de sentir falta da fisgada, como a do amor, que se produz quando a gente percebe que toca o infinito, capta a luz esquiva, a luz difícil, com um pouco de óleo misturado com pó de pedras ou de metais.

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto “Réveillon” para o espanhol

 

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