* Por Rafael Gallo *

E a lista de excelentes autores da literatura portuguesa contemporânea só cresce. Conheci mais um recentemente: Valério Romão, de quem li o primeiro romance, Autismo (Editora Tinta da China), publicado em 2012 em Portugal. Por enquanto, é o único do autor lançado no Brasil.

O estilo de Romão tem algo em comum com outros autores lusitanos, dos quais gosto muito, como Afonso Cruz, José Luís Peixoto e Inês Pedrosa, porém é mais ácido do que os deles. Há o lirismo e certo aspecto barroco – revelado em frases como, por exemplo: “[…] o passado ficava lá atrás, balcanizado, intransponível, como um país repartido pelas armas ou como uma recordação estanque, como a memória silenciosa de uma doença de que, por pudor, nunca mais se fala” – mas há também uma espécie de causticidade (no bom sentido da palavra) que se liga ao tema e se espraia pelo estilo e pela estrutura do romance.

Pai de um filho autista, Romão partiu da própria experiência, de certa maneira, para elaborar a ficção na qual um casal, Rogério e Marta, têm de lidar com o autismo do filho deles, Henrique. Os capítulos se alternam entre diferentes narradores e propostas, o que cria uma sensação de estilhaçamento da história, propícia ao contexto abordado. O autismo do menino desestrutura a família quase inteiramente. Mas esse não é um daqueles livros que usa a fragmentação como desculpa para se criar um arremedo de trechos desconexos; o romance é muito bem estruturado e as partes se complementam e se retroalimentam.

Tudo se inicia com a notícia do atropelamento de Henrique, em um dos capítulos narrados em primeira pessoa pelo avô materno. Um dos eixos, portanto, é o da família no hospital, após tal incidente, esperando por conseguir notícias do filho, que é mantido no setor de urgências e fora de alcance. Alternando-se às cenas desse episódio, há inserções do passado mais ou menos distante, instantâneos – na forma de diálogos telefônicos – da rotina imediatamente anterior do casal, transcrições de postagens de um blog do pai e outros recortes da história.

Aliás, o pai também tem certos aspectos de “autismo”, ou ao menos de isolamento e falta de empatia. Além desse blog ser feito sem qualquer comunicação com a esposa, em certa passagem, ele diz ter a impressão de que não faria diferença se outro homem viesse à casa no lugar dele, oferecendo os mesmos biscoitos e entretenimentos ao garoto; porém, o pouco que comunga com o filho parece colocá-lo do outro lado da mesma moeda. Henrique não é uma criança única para Rogério; se fosse outro garoto ali também, mas com o mesmo transtorno, aparentemente não faria grande diferença para o pai. O autismo é uma barreira que divisa os dois lados igualmente, obstruindo o olhar do homem em relação ao menino.

Não há consolo em Autismo, não há saídas fáceis, tampouco redenções que gerem alívio. O livro é duro e Romão nega qualquer abrandamento das dificuldades. E, sim, para nós, brasileiros, é provável que a leitura lembre a de O filho eterno, de Cristovão Tezza, também escrito a partir da própria experiência (no caso de Tezza, em relação a um filho com síndrome de Down). Autismo, no entanto, é mais fragmentado, mais barroco e desolador. As personagens do romance português permanecem presas no próprio labirinto, sem qualquer forma de acomodação.

Se você gosta de livros com um trabalho de linguagem caprichado, estruturas não-lineares (pelo menos, não de todo) e que rejeite qualquer consolo fácil para o que nunca teria consolo fácil, Autismo é uma excelente pedida. O trecho que coloco abaixo – de um diálogo do pai com a psicóloga, na sessão de terapia dele – dá uma ideia do quão forte o livro bate.

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Trecho:

[…] Estamos aqui a falar de luto já há algum tempo mas, de facto, estou a fazer luto de quê? De quem?

Do seu filho.

Mas o meu filho está vivo.

O Henrique está vivo. O “seu” Henrique não. O seu filho ideal. Aquele que imaginou ter e que, entre muitas características, era normal.

[…]

Ainda há dias me dei conta de que não sou capaz de olhar para as fotografias antigas do Henrique sem chorar compulsivamente. Desculpe, só de pensar nisso não consigo conter-me.

O que são as fotografias antigas dele, para si? O que sente quando olha para elas?

Uma dor muito grande, como se ele já não existisse.

O Henrique?

Sim, quer dizer, mais ou menos. Aquela versão do Henrique. Aquele Henrique.

O Henrique normal?

Sim, o Henrique antes da descoberta do autismo. O Henrique antes das terapias, antes de perder as competências, o Henrique antes de ficar um ano em casa, antes disto tudo.

O seu Henrique.

Sim, o meu Henrique. Desculpe.

Tem saudades dele?

Tenho tantas saudades dele, tantas, tantas. Nem consigo exprimi-lo. Dói-me só de pensar nisso. Queria tanto voltar a esse tempo, quando não sabíamos de nada. Quando havia esperança…”

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

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