* Por Rafael Gallo * 

Qualquer pessoa razoavelmente atenta aos movimentos políticos do mundo atualmente já se deparou – e deve ter se assombrado, em algum grau – com a questão do quanto o fim da democracia, tal qual a conhecemos, parece bem mais próximo agora do que nas últimas décadas. O último quarto do século XX e a primeira década do século XXI davam a impressão de que, em grande parte do planeta, a acomodação dos estados-nações e suas organizações democráticas era um processo em marcha sempre à frente. Retrocessos como a ascensão de líderes autoritários, recrudescimento de ideias fascistas e a presença de golpes políticos pareciam estar cada vez mais distantes no passado. Pareciam.

Países com regimes totalitários nunca deixaram de existir, claro, mas quando grandes nações democráticas assistiram, em seus territórios, a vitórias – ou quase vitórias – de líderes que burlam ou distorcem grande parte das regras do jogo democrático, que representam em suas posturas e falas muitas ideologias retrógadas e excludentes, bem como sinalizam a possibilidade (ou realização) de gestos autoritários, os alarmes começaram a soar.

Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, e Como a democracia chega ao fim, de David Runciman, são das primeiras e principais respostas em livro deste momento, cujo gatilho principal (mas não único) é a vitória à presidência de Donald Trump, nos EUA, uma das democracias sempre tidas como das mais sólidas do mundo. Enxergá-lo como ameaça a esse sistema não se trata de mero partidarismo ou não aceitação da derrota, por parte dos opositores. Nos EUA, houve bastante alternância entre os dois partidos, nas vitórias presidenciais, e nem por isso houve tanta discussão quanto ao fim da democracia. O que acontece agora, de fato, merece atenção especial, pelo que têm de “diferente”. Aliás, em grande parte, a ascensão de figuras como Trump se deve justamente ao discurso, que os próprios vendem, de serem “antissistêmicos”.

Há muitas questões em jogo nesse contexto, que ambos os livros exploram bem, mas de formas muito distintas. Novos mecanismos e formas de se lidar com o jogo político têm se desenvolvido nos últimos anos; tensões sociais vêm se agravando, especialmente com o maior contato entre grupos étnicos diferentes e emancipações identitárias dos antes marginalizados; recessões econômicas e outras perdas têm provocado climas de ódio e ressentimento; e as tecnologias, em especial os meios de comunicação, alteraram quase por completo a forma como as pessoas se relacionam com o mundo e que percepção (passível de ser manipulada) têm dele.

Diante desse cenário, ainda difícil de ser diagnosticado por completo – afinal, está apenas começando – Como as democracias morrem e Como a democracia chega ao fim tentam elaborar respostas ou indagações que possam servir de orientação, em algum sentido, para esse momento tão ambíguo. O livro de Runciman, por exemplo, traz uma analogia ótima: diz que temos comparado o momento atual com outros do passado, como se fosse um retrocesso pleno, mas a História nunca anda para trás realmente. Assemelha-se a um homem em crise de meia-idade, que traz de volta alguns dos comportamentos inadequados do passado, mas não volta a ser o jovem inconsequente que foi. Há uma mistura de anacronismos com a experiência acumulada, que impede os resultados de serem os mesmos. Resta saber se o “regime democrático em crise de meia-idade” vai causar um acidente fatal a si mesmo, antes de perceber os perigos das más ideias que lhe seduzem agora.

Enquanto Runciman tem uma abordagem mais “filosófica” do tema, e olha mais para o futuro, abrindo para elucubrações como as possibilidades de desastres ambientais ou de sermos vítimas da tecnologia que a própria humanidade cria (os apocalipses poderiam vir antes do fim da democracia), Como as democracias morrem tem um viés mais histórico, analisando e fazendo comparações entre vários momentos diferentes da história – passada ou corrente – em que um líder autocrata conseguiu tomar o poder, para avaliar o presente. O mais interessante, nesse caso, é perceber as estratégias utilizadas e repetidas, com pequenas variações em diferentes lugares do mundo. Ver o quanto a tomada do poder por essas figuras – Hitler, Mussolini, Fujimori, Chávez e outros – dependeu, em grande parte, do apoio massivo da população descontente com a corrupção de governos anteriores e as decorrentes crises econômicas; do controle que esses novos governantes conseguiram articular em relação ao judiciário; da conivência que órgãos e políticos poderosos lhe ofereceram, por acharem que o autocrata, a princípio, correspondia a seus interesses; pelas quebras de regras que não foram devidamente coibidas e pelas promessas populistas de soluções simples para a maior parte dos problemas.

Sim, ler Como as democracias morrem, em especial, que se trata de uma análise mais política e histórica, mais próxima da nossa realidade atual, é esclarecedor e aflitivo. A cada exemplo citado de algo que um autocrata do passado ou do presente fez para conseguir alcançar e centralizar o poder, é difícil não fazer a correspondência com nosso atual presidente eleito. Creio que futuras edições deste livro farão muitas menções a Bolsonaro, porque é impressionante o quanto ele se encaixa em cada procedimento exemplificado. O Brasil atual tem seguido um roteiro tão claro, que parece até um clichê. Mas, claro, a maioria das pessoas acha que estamos vivendo uma grande novidade, algo muito “diferente”.

A diferença entre os ditadores do passado e figuras como o nosso futuro presidente (que já age como empossado) ou Trump é que esses últimos não precisam de tanques de guerra ou exércitos nas ruas, suásticas ou censuras diretas. A conclusão que ambos os livros apontam é que, independente do que virá depois, o fim da democracia hoje não tende a ser de forma explícita ou repentina. A tática mais moderna é esvaziar a democracia, não rompê-la; fazer parecer que nada de anormal se passa, em vez de deixar claros os golpes políticos. Manter as aparências, como se pudesse ser dito pelas autoridades, sem escândalo, que “as instituições estão funcionando normalmente”. Soa familiar?

Trechos:

A publicidade do século XXI se alimenta das nossas predisposições cognitivas, adaptando-se a elas para nos manter concentrados no momento presente. O ser humano apresenta uma tendência congênita a preferir uma gratificação imediata a benefícios futuros; a querer se aferrar ao que já possui; a procurar reforços para suas crenças; a superestimar a atenção alheia; a subestimar o quanto, no futuro, pode se tornar uma pessoa diferente. As redes sociais foram criadas para satisfazer a esses impulsos, assim como as máquinas que usamos para acessá-las. São todas planejadas para estimular nossa adição. Estamos sempre conferindo os celulares para descobrir o que há de novo, desde que essas novidades se harmonizem com a nossa ideia da verdade.”

(Como a democracia chega ao fim, David Runciman)

O processo muitas vezes começa com palavras. Demagogos atacam seus críticos com termos ásperos e provocativos – como inimigos, subversivos e até terroristas. Quando concorreu pela primeira vez à Presidência, Hugo Chávez descreveu seus oponentes como ´porcos rançosos´ e ´oligarcas esquálidos´. Como presidente, chamou seus críticos de ´inimigos´ e ´traidores´; Fujimori ligava seus oponentes ao terrorismo e ao tráfico de drogas; e o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi atacou juízes que decidiam contra ele chamando-os de ‘ comunistas’. Jornalistas também se tornam alvos. […] Esses ataques podem ter consequências importantes. Se o público passar a compartilhar a opinião de que oponentes são ligados ao terrorismo e de que a mídia está espalhando mentiras, torna-se mais fácil justificar ações empreendidas contra eles.”

(Como as democracias morrem, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt)

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto “Réveillon” para o espanhol

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