* Por Rafael Gallo *
Como se fosse a casa (Ed. Relicário, 2017) é um livro de poemas peculiar, escrito a quatro mãos, por Ana Martins Marques e Eduardo Jorge. Mais do que isso, o projeto nasceu, como indicado pelo subtítulo de (uma correspondência), da troca real de mensagens entre os dois. Eduardo tinha uma viagem programada para a Europa e alugou, por um mês, o apartamento dele para Ana, no histórico Edifício JK, em Belo Horizonte. Conforme as entrevistas e matérias que li sobre o livro (bateu forte a curiosidade), os dois trocavam e-mails, de início, sobre questões práticas da residência, mas logo a poesia começou a se infiltrar pelo diálogo. Então, eles passaram a mandar poemas um ao outro, que refletiam, expandiam ou ressignificavam as conversas deles, as posições que cada um ocupava. O livro é uma pequena seleta dos poemas trocados.
Não se trata, portanto, de uma correspondência convencional, apenas transcrita na forma de versos (felizmente!); na maior parte de tempo, inclusive, a dinâmica do livro se afasta bastante de um jogo direto de pergunta-e-resposta. Não há narração de fatos, nada que se assemelhe a uma espécie de diário ou coisa assim. As inter-relações entre os dois lados da correspondência, e seus poemas, são sutis e se dão muito mais por ressonâncias e aproximações com uma certa “temática” de cada lado do que por outros fatores.
Os contrapontos e harmonias que surgem daí são bem interessantes. Afora os estilos e idiossincrasias de cada poeta, o fato de Ana estar “dentro da casa” e Eduardo em viagem – ou “fora de casa” – cria um dos principais eixos temáticos do livro. Claro, toda história tem dois lados e todo poema tem muitos mais, portanto, os poemas de Ana tendem a focar na ideia de habitar a casa, porém exploram tanto o que há de familiar quanto o que há de estranhamento nesse lugar; o que há de abrigo e de desamparo; de particular e vasto; resguardo ao interior e abertura ao exterior. A mesma prismatização se faz presente nos versos de Eduardo, que criam tensões entre o conhecido e o estrangeiro nos outros países, outras pessoas, outras formas de se lidar com palavras.
Um dos poemas de Ana retrata bem essa abordagem da casa, enquanto espaço “de dentro e de fora”. Diz o texto: “Quando alugamos um apartamento alugamos / uma paisagem alugamos vizinhos com os quais / cruzamos no elevador a temperatura das manhãs / determinados barulhos certas incidências / do sol poeira alugamos as palavras / que nos dirigem os porteiros as distâncias relativas / dos lugares que frequentamos alugamos os lugares / que passamos a frequentar o cheiro de tinta o toque / dos tacos alugamos o direito de dizer que aí moramos / o salvo-conduto para entrar e sair e mesmo a permissão / para morrer aí alugamos a memória futura / de um apartamento e o direito de metê-lo / num poema”.
Eu ainda não conhecia o trabalho de Eduardo Jorge – e depois desse livro quero muito ler outros – mas o de Ana Martins Marques venho acompanhando há um tempo; acho que ela é uma das maiores poetas do nosso tempo (sim, incluindo homens e mulheres). Esse volume, bastante breve e agradável de ler, é mais um prova da boa poesia sendo feita no Brasil atualmente. E merece destaque também a parte gráfica e editorial do livro, com um conceito que perpassa desde a ilustração da capa até a colorização das páginas (e tem relação com as ideias presentes no texto, não é mera perfumaria).
Esse é um daqueles livros que, como dizem, “dá para ler numa sentada”. Mas eu recomendo ler um pouco e guardar para mais tarde, sabe? Tipo aqueles doces que a gente não quer que acabe muito rápido, então come demorado.
Trecho:
Numa entrevista Anne Carson diz que
se a prosa é uma casa
a poesia é um homem em chamas
correndo rapidamente atrás dela
numa entrevista, quando lhe perguntaram
o que salvaria
se sua casa pegasse fogo
Jean Cocteau respondeu
que salvaria o fogo
no protocolo de incêndio
do condomínio do edifício JK
está escrito
não fique parado na janela sem nenhuma defesa
o fogo procura espaço para queimar
e irá buscá-lo se você não estiver protegido
e também: mantenha-se vestido e molhe suas roupas
e também: feche todas as portas atrás de você
e ainda: rasteje para a saída, pois o ar é mais puro
junto ao chão
e ainda: uma vez que tenha conseguido escapar,
não retorne
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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.
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Imagem ilustrativa: Pintura de Henri Matisse
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