* Por Rafael Gallo *

Eu torço muito para que esse livro ganhe algum prêmio literário importante esse ano. Sei que as escolhas das premiações estão sujeitas a muito mais do que às qualidades literárias de certa obra (como deveriam se ater) e que, no final das contas, os louros não significam a definição do destino de um livro ou seu autor, mas sempre funcionam – ao menos para quem escreveu – como uma espécie de reconhecimento, além de outros ganhos. E “Pai, pai” faz por merecer.

É um relato autobiográfico bastante corajoso e pungente. Uma espécie de “Carta ao pai”, do Kafka, mas enquanto esta foi elaborada realmente como epístola pessoal, “Pai, pai” é claramente projetado sob a forma de composição romanesca. Ainda que não tratasse da “realidade”, poderia ser apreciado pela bela construção e pela potência narrativa. Dividido em capítulos curtos, o livro faz uma espécie de cronologia afetiva da história de João Silvério Trevisan, especialmente no que tange aos conflitos com o pai, que tem problemas com o alcoolismo e repudia a sexualidade do filho.

Se parte do interesse das histórias vem de como elas relacionam a história de um indivíduo à da sociedade, “Pai, pai” funciona muito bem ao abordar, através da biografia do autor, temas como a homossexualidade e a homofobia, a crise do masculino, as militâncias e lutas sociais, as estruturas familiares, o patriarcado. Tudo isso de forma mais complexa do que tais termos – utilizados à exaustão hoje em dia – parecem conter a princípio.

No longo embate entre dois homens, trava-se como questão subterrânea: “o que significa ser homem?” E Trevisan coloca em xeque muitas vezes – felizmente –  os valores machistas que tentam responder a essa pergunta com posturas agressivas, egoístas, misóginas, homofóbicas e de outros traços arcaicos e prejudiciais. O que se expõe é o quanto a figura do macho (que, aliás, cobra “macheza” dos outros machos, em geral, através de humilhações) se filia e realimenta um sistema de sofrimentos, tanto para os que compactuam desses traços quanto os que não os partilham. O “filho maricas”, que seria o pária rejeitado dessa casta, demonstra a hombridade de olhar para os outros com respeito e atenção, enquanto a macheza do pai se mostra um frágil e espinhoso casco de proteção, nefasto e inútil. Não à toa, a derrocada impressionante desse homem – para o alcoolismo, a falência do corpo, a perda das pessoas queridas e de todo prestígio social – funciona como alegoria da crise desse modelo de masculinidade, com tudo que possui de disfuncional.

Mas se engana quem pensar que tais conflitos se dão de forma unilateral ou absolutista em suas razões. A relação de Trevisan com o pai passa por ambivalências e oscilações, indo do ódio mortal ao perdão e tudo que há entre uma margem e outra. Em tempos como os nossos, nos quais muitos parecem esperar respostas totalizantes para a vida ou para as mazelas sociais, com menos de 140 caracteres, é um alento ler um texto como “Pai, pai”, que amplia e desdobra discussões importantes, demonstrando como podem ser ambíguas, repletas de nuances e complexidades.

Ainda nesse diapasão, é bastante revelador ver como certas militâncias se posicionavam há poucas décadas, para perceber o quanto, às vezes, há deslizes, sim, nesses movimentos e que – por que não? – podemos e devemos questioná-los. Não nas intenções de se ampliar os direitos de todos, que são ótimas, mas, em certos aspectos, nas metodologias que assumem. Trevisan – que se assume ter sido “maoísta de boteco”, em momentos do livro e da história – frequentou bastante das militâncias de esquerda e dos direitos dos homossexuais ao longo da vida, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e México, onde morou. É curioso ver os câmbios de posturas, como, por exemplo, a de que em certas épocas o pensamento dominante foi de que a homossexualidade não deveria ser exposta, porque isso seria uma espécie de diferenciação – ideia da qual o autor sempre discordou. Outras passagens mostram um líder estudantil responder, agressivo, a uma dúvida com a frase: “Marx não pode ser questionado!”, ou o próprio autor a revelar não ter assistido a um filme de Tarkovsky no cinema (filme que se tornaria um de seus preferidos mais tarde), por se tratar de um cineasta “a serviço do estalinismo” (quando era, na verdade, um dissidente do sistema na União Soviética). Tais posicionamentos servem como alerta de que, muitas vezes, o autoritarismo e os pontos cegos ideológicos podem estar em todos os lados, inclusive em nós mesmos.

Um grande livro. E na minha lista de leituras favoritas do ano, já está no pódio.

Trecho:

Nessa época, meu irmão caçula testemunhou um fato que dá a medida de como nosso pai se encontrava no fim da linha. Já muito debilitado, adentrando seus sessenta e dois anos, José manifestou desejo de conhecer a tradicional festa de Corpus Christi em Matão, no interior de São Paulo. Meu irmão aceitou levá-lo mediante a promessa de que não beberia nada alcoólico. Feito o acordo, saíram de viagem muito cedo, para voltar a São Paulo no mesmo dia. […] Em meio a tanta emoção, ele cumpriu a promessa de abstenção. Na volta, o grupo parou num restaurante à beira da estrada. Nosso pai pediu um pastel, uma de suas iguarias prediletas. Tentou comer, sem sucesso. Suas mãos tremiam tanto que não conseguia levar o pastel à boca. Meu irmão pediu um conhaque e ajudou-o a beber. Finalmente, com as mãos livres da tremedeira, José pôde matar a fome por si mesmo.”

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Rafael Gallo nasceu em São Paulo. É autor de Rebentar (Ed. Record, 2015), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Réveillon e outros dias (ED. Record, 2012), coletânea de contos ganhadora do Prêmio Sesc de Literatura. Ambos os livros foram finalistas do Prêmio Jabuti. Tem ainda contos publicados em diversas revistas e antologias, como a Desassossego (Ed. Mombak, 2014) e a Machado de Assis Magazine (Ed. Biblioteca Nacional, 2012), que publicou tradução do conto Réveillon para o espanhol.

 

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