* Por Angelo Mendes Corrêa e Itamar Santos *

Escritor, editor, diretor de cinema e teatro, ator e professor da Universidade Estadual de Alagoas (Uneal), Nilton Resende é autor de Diabolô (2011), A construção crítica de Lygia Fagundes Telles (2016), O orvalho dos dias (2019) e Fantasma (2021). Na companhia de teatro Ganymedes, foi o responsável pela adaptação de Mário e o Mágico, de Thomas Mann. Roteirizou e dirigiu o curta-metragem A barca (2019), baseado no conto de Lygia Fagundes Telles. Desde 2015, leciona no Laboratório Sesc de Criação e Expressão Literária. É também um dos criadores do selo Trajes Lunares, que tem publicado autores alagoanos ou radicados em Alagoas.

Além de professor de literatura da Universidade Estadual de Alagoas, você também é escritor e cineasta. Qual é a relação entre a sua experiência extra-profissional e o exercício da docência? Eu sempre penso que professor é aquela pessoa que gosta tanto de uma coisa que não consegue guardar apenas para si. Durante a adolescência, quando fazia o Curso Técnico em Química, na antiga Escola Técnica Federal de Alagoas (atualmente, IFAL), eu tinha vontade de ensinar Físico-Química, que era a disciplina de que eu mais gostava. Gostava porque tinha uma professora maravilhosa, a professora Selma, carinhosa e exigente, e porque eu amava quando os cálculos entravam no mundo da Química, como na Estequiometria, por exemplo. Eu era muito bom em cálculos. Pena que hoje eu não consiga usá-los para me orientar financeiramente ou para evitar que me atrase nos compromissos. Pois bem,  eu amava quando a Química se misturava aos cálculos e queria dar aula disso. Depois, minha grande paixão tornou-se a literatura, que deu origem às paixões pelo cinema e o teatro.  Essas artes me alimentaram a vida toda. E só consigo ser professor porque elas me alimentam. Se eu for privado delas, o professor se tornará um mero repetidor de coisas, não haverá paixão. E eu não me movo sem paixão.

 Qual o papel social e político da arte e do educador? O primeiro papel é ser livre. Apenas na liberdade, poderá fazer o que quer ou precisa fazer. Ser livre, desafiar o medo, dizer não a quem porventura tente lhe oprimir. Sei que isso é mais possível no artista do que no educador, porque este está ligado a uma instituição que pode ser castradora. Então, se estiver numa situação assim, o papel primeiro é o de trabalhar para ajudar o máximo possível na formação de seus alunos, para que eles possam ser livres, para que eles possam desafiar o medo, para que eles não sejam oprimidos.

 O desmanche na educação, tendo como justificativa a economia do país, tem sido uma das principais metas do atual (des)governo. Como isso chega à universidade pública e no que afeta a formação das novas gerações? O desmanche é uma grande herança. Veja-se um exemplo: há muitos anos, houve uma mudança na grade curricular, acabando com as aulas de Redação, Língua Portuguesa, Literatura. Em vez de termos uma pessoa para cada uma dessas disciplinas, falou-se que seria lindo-maravilhoso que uma única pessoa desse a aula de Língua Portuguesa, dando conta das três disciplinas anteriores, pois assim, em sonho, apenas, haveria aulas com os conteúdos interligados, sem conhecimentos estanques. Pois bem, na escola pública, agora, os alunos têm, por semana, três ou quatro aulas que deverão dar conta de Língua Portuguesa, Redação e  Literatura, ministradas por uma única pessoa que deverá ser fera em tudo isso, desconsiderando suas tendências particulares, suas paixões. Resultado: no final do ano, os alunos geralmente têm um déficit em um desses componentes. No mais das vezes, em Literatura. O professor passa um trabalho sobre a literatura brasileira, impresso e encadernado, para compor a última nota. E fez-se a mágica, fez-se a ilusão. Em contraponto, numa escola particular, os alunos têm semanalmente três ou quatro aulas de Língua Portuguesa, duas aulas de Redação, uma ou duas aulas de Literatura. Como podemos considerar que alunos da rede pública e da rede privada estão em pé de igualdade, quando disputam uma vaga nas universidades? É esse aluno, com uma  formação muito frágil, que nós recebemos na universidade. E aí, como professores universitários, temos de tratar dos conteúdos pertinentes à universidade, mas sem nos esquecermos das origens de nossos alunos. É uma tarefa que sempre incorre numa perda e não podemos querer salvar o mundo, porque iremos nos desgastar demais, iremos adoecer, poderemos desistir. Por isso, sempre deixo tudo às claras. Eu converso com meus alunos, digo a eles que terão dificuldades, digo que não poderei passar a mão em suas cabeças, digo que eles terão de lutar bastante para tentar compensar o que lhes foi negado anteriormente, digo que estarei com eles e farei o possível para ajudá-los. Não há como dar aula numa universidade pública, num município do interior de um dos mais pobres estados do Nordeste e não ser solidário, não assumir que há uma luta a se travar e também há muita esperança, porque nossos alunos, em sua maioria, ainda estão aprendendo o que é estudar, mas têm histórias muito bonitas e fortes e  uma grande força de vontade. Não há como a gente sair incólume, após dar aula a um aluno que é filho de um cortador de cana e que é a primeira pessoa da família a ingressar em uma universidade. O plano do desmanche é o de aumentar e perpetuar a miséria, mas estamos lutando para que isso não aconteça.

Como analisa o mercado editorial no país? Ele tem cumprido sua missão em relação a nossos autores? O mercado editorial tem se ampliado muito. Felizmente, muitas editoras pequenas, as tais independentes, estão possibilitando a publicação de muita gente de fora do eixo. E mesmo que seus livros não sejam encontrados em livrarias, pois há a questão da distribuição, podemos comprar seus livros através de seus sites. Mas, teremos um grande problema se houver a taxação dos livros e se os Correios forem privatizados. Acontecendo isso, haverá um enorme desmonte. E sabemos que isso é o desejado pelo nosso atual desgoverno.

Alguém afirmou que escrita para um escritor é uma necessidade de catarse. Algo a dizer sobre tal afirmação? Não sei dizer. Talvez haja uma catarse em algum momento da escrita, talvez imaginemos a catarse de algum leitor, mas não sei se ela é uma necessidade disso. Cada texto tem sua motivação e, muitas vezes, nem sabemos qual é. Então, acho que o motor é algo particular, embora alguém possa tentar dar um nome generalizador. Sinceramente, não sei lhe responder.

O curta-metragem A barca, dirigido por você, foi baseado num conto de Lygia Fagundes Telles. Qual a razão de tê-lo escolhido para o filme? Desde a adolescência, eu sonho em adaptar textos literários para o teatro ou para o cinema. Eu tenho a intenção de me especializar em adaptações. Então, sempre tive uma lista de textos adaptáveis. Há mais de 15 anos, criei um grupo de cinema numa escola particular em que eu dava aulas de Redação e de Arte para o ensino médio. Com esse grupo, assistíamos a filmes, fizemos um curta-metragem. Houve o projeto de filmarmos o conto “Natal na barca”, da Lygia. Fiz um roteiro, visitamos locações. Chegamos a fazer uma travessia da Lagoa Mundaú, indo de Maceió a Coqueiro Seco, eu e os alunos. Mas, era final de ano e no ano seguinte, veio a vida com novas demandas e exigências, entre as quais não estava a realização desse filme.Em 2016, escrevi o novo roteiro, para inscrevê-lo num edital da Secretaria de Cultura de Alagoas. Coincidentemente, esse conto da Lygia foi o primeiro conto que li na minha vida, em 1987, e deu origem a meu primeiro filme. Então, acho que não escolhi o conto, a vida me deu ele.

Em A barca, o enquadramento da mãe segurando o filho nos braços nos remete à icônica cena de Maria de Nazaré carregando seu pequeno Jesus. A ideia de nos remeter a um sentido religioso deveu-se a algum motivo especial? O curta, assim como o conto, tange isso do religioso, mas principalmente leva-nos ao âmbito da fé, que pode ou não estar relacionado a uma religiosidade. Toda criança, todo recém-nascido, é uma vida extremamente frágil, mais frágil do que costuma ser frágil a vida. E  a imagem de uma mulher com um bebê nos braços pode remeter-nos a isso. Essa é uma história que pode ser vista/lida como uma história que nos mostra que há momentos em que vemos a morte onde há vida. E  que também podemos ver a vida quando tudo em torno remete à morte. Mas, voltando à imagem que você trouxe, de Maria de Nazaré carregando Jesus criança, lembro-me, na verdade, de algo muito importante para o cristianismo, que é a Kenosis, o apequenamento de Cristo, que, divino, torna-se não apenas humano, mas extremamente frágil como um recém-nascido. Frágil como é nossa vida, nossa fé, qualquer uma de nossas crenças, que a qualquer instante pode extinguir-se, se não cuidarmos com extremos cuidados.

O que destaca como imprescindível na tradução da linguagem literária para a cinematográfica? É preciso não esquecermos de que, em uma adaptação, algo não pode continuar o mesmo, senão, não se adaptou. Adaptar-se tem a ver com adequar-se e se isso não é feito, se não consideramos a nova linguagem, estaremos fazendo uma transposição, o que possivelmente incorrerá em uma obra com muitos problemas. No caso específico do conto da Lygia Fagundes Telles, foi preciso que algumas imagens fossem criadas para dizer o que havia no conto, dito de forma explícita, através de alguma fala da narradora ou através de algum elemento simbólico que se carrega de sentido no texto, por dialogar com o restante da obra da autora, mas que seria algo vazio no filme. Então, nessa ideia de adaptação é preciso que estejamos atentos às imagens que funcionam no texto, mas que poderão ser estéreis,  se forem repetidas na obra cinematográfica.

Sua poesia, contida em O orvalho dos dias, entremostra certa influência de Hilda Hilst. Como foi sua amizade com a escritora? A Hilda era uma mulher fascinante. Eu paquerava a obra dela desde 1987, quando passei a receber a revista da editora Brasiliense, que trazia os livros do catálogo (eu recebia também as revistas ou os folhetos do Círculo do Livro, da Record, da Nova Fronteira) Era uma alegria ficar folheando, lendo sobre tantos livros. Numa das revistas, li sobre Com meus olhos de cão e fiquei impressionado. Mas só vim a ter um livro dela no começo de 1989, quando encontrei, num sebo de Maceió, A obscena senhora D… No ano seguinte, eu já morando em São Paulo, trabalhei na Bienal do Livro ,no stand da editora Nova Fronteira. Um dia, levei o livro, pois eu sabia que a Hilda estaria lá. A Lygia Fagundes Telles foi ao stand e eu pedi a ela que o levasse  li para a Hilda autografar, pois eu não poderia ir, já que estava trabalhando.  A Lygia me disse que eu fosse ao ­­stand da editora Massao Ohno e que elas não iriam embora logo. Eu fui, contente, nervoso, e estavam lá as duas. Lygia apresentou-me à Hilda, que autografou o livro e escreveu nele seu endereço, seu telefone e o telefone do Mora Fuentes. Meses depois, acho que em outubro, fui visitá-la com uma amiga. A partir disso, nunca parei de ir à Casa do Sol. Passava lá o Natal e o réveillon. Foi lá que, pela primeira vez, comi lentilha. Também lá, comi funghi, naquela cozinha grande, com a grande mesa de madeira. Sempre que eu a visitava, ela me pedia para ler trechos de seus livros. Amava, sorria quando eu lia “Fluxo”. Fazia planos para peças, nas quais eu iria trabalhar como ator. Imaginávamos poemas de Bufólicas encenados no teatro. Um dia, eu apareci com um exemplar dos “Sonetos”,  de Shakespeare, traduzidos pelo Péricles Eugênio da Silva Ramos, com que a Lygia me havia presenteado, e comecei a ler em voz alta (a Hilda havia pedido que eu lesse). Ela foi taxativa: “você não sabe ler poemas”. Pegou o livro e leu. Confesso que eu não percebi muita diferença entre nossas leituras, mas isso certamente devia-se ao fato de que àquela época eu ainda não costumava ler poemas. Decerto, ela leu de um modo muito belo, tenho certeza, porque hoje, quando eu a escuto em algum vídeo, lendo algo, há uma força, há um saber do que está falando. E eu sabia de coisa alguma. Ela sempre me dizia que eu deveria ler autores cujas obras tivessem um profundo trato com a linguagem e me falava de três livros: O pássaro da escuridão, da Eugênia Sereno, A madona dos páramos, do Ricardo Guilherme Dick, e Grande sertão: veredas, do João Guimarães Rosa.  Uma vez, disse que eu pegasse na estante o Cartas a um jovem poeta, do Rilke, para eu saber se queria mesmo ser escritor. Mas, quando leu minha adaptação de A obscena senhora D. e eu lhe disse que queria me especializar em adaptações de obras literárias,  queria ser ator, queria ir estudar em Nova York, disse-me : “arrume um amante velho e rico”. Não segui o conselho. Eu e Jurandy Valença, amigo de adolescência, frequentávamos sempre a Casa do Sol. Depois, o Ju foi morar lá. Eu recusei o convite, pois tive minhas razões para isso. Morávamos, eu e o Ju, numa pensão, na esquina da avenida Brigadeiro Luís Antônio com a rua José Maria Lisboa, em São Paulo. Em nosso quarto, moravam mais uns caras, um deles, um paraquedista. Era um grupo muito heterogêneo. Eu e Ju falamos à Hilda sobre a pensão, sobre os caras. Ela se divertiu e acabou colocando nós dois e a pensão em Cartas de um sedutor. Em “De outros ocos”, após o narrador descrever uma pensão, a mesma em que nós morávamos, há este trecho: “Digo: um colar de anêmonas te circunda a cara e aos meus olhos ganhas definitivamente uma moldura. Olha-me lânguido… É, isso é bonito. E Valença e Resende que chegaram há pouco repetem juntos, pausados: um colar de anêmonas te circunda a cara e aos meus olhos ganhas definitivamente uma moldura…”. Na primeira versão, estavam nossos nomes, Jurandy e Nilton, em vez dos sobrenomes Valença e Resende. E também chegávamos dizendo “é massa”, porque eu falava e ainda falo muito essa palavra, mas um dia ela se emputeceu e disse que não aguentava mais me ouvir repetir aquilo o tempo todo. E riscou do livro a palavra. Passei a vigiar-me para não a dizer quando estivesse à sua frente. Eu tinha a terrível mania de coçar “as partes baixas” e um dia a Hilda falou, entre zombeteira e raivosa: “você faz isso também na frente da Lygia ou apenas na minha frente, hein, porque se fizer na frente da Lygia, ela vai achar horrível!”. Passei a vigiar-me também quanto a isso. Ela amava perfume, eu amo perfumes. Ela nos dava perfumes de presente. Às vezes, no escritório, molhava as mãos num boião que havia sobre sua mesa, perfumava-as e passava-as em mim. Eu amava aquele cheiro.  Estive com ela num réveillon, na Casa do Sol. Fiquei agoniado, porque parte de mim queria estar lá e parte queria estar na festa da Paulista. No ano seguinte, eu me disse que iria visitá-la apenas após o réveillon, pois iria curtir a festa em S.Paulo. Curti a festa e nessa mesma noite a Hilda levou o tombo que a fez ficar hospitalizada. Eu  nunca mais conversei com ela. Visitei-a, dias depois, em Campinas, no hospital, já inconsciente. Em nossa última conversa, ela me disse algo muito importante, porque eu me cobrava por não ser artista full time.Eu me cobrava por ser um ator que dava aulas.Eu me cobrava, porque o meu diretor de teatro criticava-me por eu não me dedicar inteiramente ao nosso grupo. Ela me disse: “Nilton, eu fui uma herdeira, eu fui uma exceção; não se cobre por não poder se dedicar integralmente à arte, eu fui uma exceção. E venha sempre aqui, quando quiser, porque você sempre será bem-vindo”.Tê-la escutado dizendo aquilo foi um enorme alívio para mim, pois me fez enxergar com nitidez de onde eu vinha, de onde ela vinha. E como cada artista tem sua trajetória particular. Sinto saudades dela. Eu a amava e amo.

Os contos de diabolô, de rara densidade psicológica, na mesma linhagem de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, são, no mais das vezes, carregados de nossas fragilidades. Serão as fragilidades a marca mais dolorosa da existência humana? Sim, acredito mesmo que sim — e tanto que há uma frase que eu sempre falo: se de perto todo mundo é louco, de muito perto todo mundo é frágil.

Projetos novos em andamento? Agora, trabalhar na divulgação de meu primeiro romance, Fantasma, que lancei pelo selo Trajes Lunares, que eu e dois amigos criamos para publicar obras de autores alagoanos ou radicados em Alagoas. Há também o trabalho no roteiro de um longa-metragem, baseado na obra de Lygia Fagundes Telles, cujo nome, pelo menos por enquanto,  é Edifício Lygia. Ele se passa num pequeno prédio de três andares, que é um pouco uma representação microcósmica da obra da Lygia, mas também uma representação microcósmica deste drama tão cotidiano que é o amor doméstico oprimindo-nos e nós precisando dizer “não” a essa opressão, valendo-nos, para nos libertarmos, daquilo que está à mão. Na busca pela sobrevivência, usamos a arma mais próxima e ela pode ser a crueldade, o egoísmo, a mentira. Os contos base para o filme são “A medalha”, “Antes do baile verde” e  “Emanuel”. Espero que o projeto seja aprovado em algum edital e possamos trazê-lo à luz. Perdão pela verborragia — tenho Sol em Gêmeos, ascendente em Gêmeos e Mercúrio em Gêmeos.

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Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP, professor, ator e jornalista.

 

 

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