O futebol e as palavras

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Por redação *

As coisas incríveis do futebol: as melhores crônicas de Mário Filho (1908–1966) – lançado pela editora ex machina – reúne alguns dos textos mais saborosos escritos pelo autor no Globo Sportivo, nas décadas de 40 e 50.

Elaboradas no estilo despojado e humorístico que o consagraria e faria escola no jornalismo brasileiro, trazem temas centrais da era de ouro do futebol brasileiro: os grandes jogadores e partidas, a historiados clubes, a consolidação do futebol como esporte no Brasil, os “sururus”, as confusões e brigas dos torcedores, o abrasileiramento do futebol, além das histórias mais pitorescas do mundo futebolístico.

Fruto de um trabalho de três anos, as crônicas selecionadas são inéditas em livro e ilustradas por fotos do Acervo de Mario Neto. O volume traz ainda textos de dois craques do jornalismo esportivo atual: JoséTrajano e Alberto Helena Jr.

Leia abaixo a crônica ‘O poeta e o passado’, presente no livro

“Aᴜgᴜsᴛᴏ Frᴇᴅᴇriᴄᴏ Sᴄhᴍiᴅᴛ ᴄrᴜᴢᴏᴜ as mãos sobre a barriga, um Buda de paletó na tribuna de honra. E se ele ganhasse a aposta? A bola andava de um lado para o outro, um passarinho veio, não se sabe de onde, pousou no campo, bem de fronte da gente. Era um passarinho preto, talvez uma graúna. Augusto Frederico Schmidt viu o passarinho, o passarinho catava comida na grama, indiferente a tudo. O Flamengo e o Vasco se matando em campo e o passarinho nada. Augusto Frederico Schmidt imaginou logo uma história. O passarinho fugira de uma gaiola, estava acostumado à prisão. Porque ele não voava, não fugia dali? Era verdade que aquele verde devia lembrar-lhe as campinas sem fim. Se não fossem os jogadores, 22 homens de calções curtos, de chuteiras, correndo feito loucos atrás de uma bola, o passarinho dificilmente encontraria um lugar que lhe desse tamanha sensação de paz, de liberdade. A grama muito verde, o sol manso, uma brisa que mal agitava as bandeiras do Botafogo. “O passarinho está tonto”—Augusto Frederico Schmidt, como poeta do Pássaro cego, sentia-se moralmente obrigado a olhar para o passarinho, a esquecer-se até que era dia de jogo, que tinha cem cruzeiros apostados no Flamengo— “veja como ele voa”.

O passarinho voava baixo, não subia quase nada, em um debater de asas assustadas. Era um jogador do Flamengo ou do Vasco que vinha correndo atrás da bola. Para ele, o passarinho não existia. Para Augusto Frederico Schmidt, porém, o passarinho existia. E eu, sentado junto de Augusto Frederico Schmidt, também tinha de me esquecer, por alguns momentos, do placar em General Severiano. O passarinho não estava tonto? Estava. Talvez, e eu apontei para as grades que cercavam o campo do Botafogo, o passarinho pensasse que a cerca do Botafogo era a grade de um viveiro. Parecia uma cerca de arame separando o campo das arquibancadas, da tribuna de honra. Augusto Frederico Schmidt olhava o passarinho semicerrando os olhos. E depois diziam que não havia poesia num campo de futebol.

Havia poesia em tudo. Bastava olhar para as coisas com olhos de poeta. E Augusto Frederico Schmidt olhava. Tinha de olhar, mesmo que não quisesse. Quem não sabia que Augusto Frederico Schmidt escrevera “O Pássaro Cego”? Luís Aranha estava longe. Logo que viu o passarinho, lembrou-se de Schmidt, largou o match, veio para a tribuna de honra. “Schmidt, olha o passarinho.” Schmidt não fazia outra coisa: olhava o passarinho. Dona Madalena também não se conteve. Avalie se o Schmidt não tivesse visto o passarinho. E eis Augusto Frederico Schmidt sem poder fazer mais nada. Os leitores de Augusto Frederico Schmidt, os admiradores dele, o Lulu, a Madalena, todos exigiam que ele olhasse o passarinho. Aquilo não daria um poema? Augusto Frederico Schmidt chamou Zé Lins para ver também o passarinho. “Seu Schmidt” — Zé Lins do Rego olhou rapidamente para o passarinho, depois voltou para o jogo —,“eu não sou poeta, sou romancista”.

E ali nem isso: torcedor apenas. Quando começava o jogo, Zé Lins esquecia-se de que era romancista. Ou, por outra, não precisava esquecer-se. Havia lugar para o romancista num campo de futebol. O romancista aproximava-se da multidão, via-a entregue ao delírio das paixões humanas. Se havia lugar para o romancista, havia também para o poeta. Era isso o que Augusto Frederico Schmidt queria dizer. Zé Lins, porém, não escutaria Augusto Frederico Schmidt. O Schmidt que esperasse um pouco. Acabado o primeiro tempo, poderiam aproximar-se um do outro. E não faltava muito. Augusto Frederico Schmidt tomou um susto. A bola quase pegara o passarinho. O passarinho sacudiu as asas, voou baixo, rente ao chão. Augusto Frederico Schmidt soltou um suspiro. Graças a Deus.

Acabara o primeiro tempo. O apito do juiz como uma varinha de condão, transformou todo mundo em poeta. “Olhe o passarinho!” “Que amorzinho!”—era uma voz feminina. “Ah! Se eu fosse pintor!” — eu me virei para ver quem lamentava não ser pintor. Não vi ninguém suspeito por perto. Agora, Zé Lins do Rego podia olhar para o passarinho à vontade. O passarinho ia fazê-lo esquecer, por alguns momentos, que o jogo não acabara ainda. O passarinho passeava pelo campo vazio. Durante dez minutos, aquela grama toda seria dele. Era a paz que descia sobre o mundo do passarinho. “Eu acho”— disse Zé Lins—“que é uma graúna”. Havia muita gente que confundia graúna com melro. Augusto Frederico Schmidt não respondia. Melro ou graúna, pouco importava. O que importava era o passarinho, a grama muito verde, o céu muito azul.

“Seu Schmidt”— Arnaldo Costa debruçara sobre a cadeira do Schmidt—“você já ganhou50 cruzeiros”. Via-se logo que Arnaldo Costa não era poeta. Não tinha nenhum senso poético. Com aquela simples frase, “seu Schmidt, você já ganhou 50 cruzeiros”, Arnaldo Costa puxara o cartão de visita, a carteira do ministério do trabalho. Um bancário, um correntista, com uma máquina registradora na cabeça. O silêncio glacial de Augusto Frederico Schmidt cavou um abismo entre ele e Arnaldo Costa, entre o poeta e o homem de banco. Se Arnaldo Costa quisesse falar em negócios, que o procurasse no escritório, não interrompesse agora. Arnaldo Costa sentou-se, um pouco sem jeito, como alguém que, numa igreja, interrompe o sermão do padre com um espirro. Uma hora ele escolhera para falar em dinheiro. Também ele nem vira o passarinho.

Não vira o passarinho, esquecera que Augusto Frederico Schmidt era poeta. Ali em volta ninguém ignorava isso. Zé Lins achava natural que o Schmidt ficasse olhando o passarinho, esquecido de tudo, escravo da poesia. Sem poder ver mais nada. Todo mundo rindo, o Schmidt sério. Se olhasse ia estragar tudo, tinha de largar o passarinho, rir também. Era um cachorro — aliás, uma cachorra, depois a gente se certificou —uma cachorra que não tinha vergonha de 15 mil pessoas. O passarinho parecia saído de um cromo, de um livro de poesia. A cachorra parecia saída de Ulisses, de James Joyce. “James Joyce” —eu me lembrei—“escreveu dez páginas sobre uma coisa assim”. Era poesia e a realidade. A realidade chegava, com a cachorra, com Juca, com os jogadores do Vasco e do Flamengo. “Fique com o seu passarinho Schmidt” — avisou Zé Lins — “eu vou ficar com o meu futebol”. Os times estavam formados, Juca apitou baixinho, quase ninguém escutou, a bola começou a ser chutada a torto e a direito. “O Flamengo não pode fazer nada” — Zé Lins falava sozinho. Quer dizer: o Flamengo já fizera muito, dera um susto no Vasco. Eu reparava na torcida do Vasco. Ela não dava um pio. Torcida desconfiada. Vendo o placar Flamengo um, Vasco zero, ela se encolhia, não queria saber de tirar a carteira, de gritar Vasco. Enquanto o Flamengo estivesse vencendo, não haveria vascaínos em General Severiano.

Augusto Frederico Schmidt nem viu quando Biguá se machucou. Zé Lins, porém, gritou: “Agora não adiantava mais nada”. E Augusto Frederico Schmidt foi obrigado a largar o passarinho, interessar-se um momento por Biguá, que saía de campo carregado. “Com Biguá, a coisa seria outra”—Zé Lins descobrira um consolo na saída de Biguá. “Mas o Biguá vai voltar, Zé Lins.” Voltaria, talvez voltasse, mas como? Machucado. Augusto Frederico Schmidt quis ver se o passarinho estava no mesmo lugar. Estava. A bola andava longe, lá no gol do Flamengo. Palmas. Biguá voltara. Augusto Frederico Schmidt não se preocupou mais com Zé Lins. Era bom que a bola estivesse longe, do outro lado. Assim, ele e o passarinho podiam ficar sozinhos. Foi aí que Zé Lins soltou um “eu não falei?”. O Vasco tinha marcado um gol.

Biguá quisera pular, se estivesse bom Biguá pularia mais alto que qualquer outro, Biguá era uma bola de borracha. Mas com o tornozelo inchado Biguá não podia firmar o pé. Por isso o Vasco marcara o gol. Agora tudo se acabara. A amargura de Zé Lins afastou Schmidt do passarinho. “Você não deve desanimar, Zé Lins. Ainda falta muito.” “Pois eu estou desanimado porque falta muito. Na guerra o tempo é aliado.” Ali, no campo, era vascaíno. Quanto mais tempo faltasse, melhor para o Vasco. “Vamos ver se o Flamengo marcar outro gol, Zé Lins.” Vevé estava com a bola, passara por Zago, quis chutar logo, pensou melhor, não chutou, hesitou ainda, acabou metendo o pé na bola, de leve. Yustrich tocou na bola, não a segurou, a bola foi para o fundo das redes. Zé Lins levantou-se, soltou uma gargalhada, outra gargalhada, mais outra.

Agora o Flamengo podia até perder, não fazia mal. E talvez o Flamengo não perdesse. Ah, se o Flamengo não perdesse! Zé Lins afastou-se ainda mais de Augusto Frederico Schmidt: ficou com o jogo. Agora mesmo, como Flamengo dando no Vasco, é que Zé Lins não ia olhar o passarinho. Augusto Frederico Schmidt era mais feliz, encontrar a um refúgio. Zé Lins não tinha refúgio nenhum. Biguá foi embora, o Flamengo ficou sem Biguá. Zé Lins sabia o que isso significava e continuou grudado na cadeira de vime. Biguá levou a tranquilidade de Zé Lins. Foi Biguá sair, e o Vasco tomou conta do campo. Dois a dois, três a dois, quatro a dois. Com os quatro a dois no placar, a torcida do Vasco deu sinal de vida, soltou foguetes. Zé Lins ouvia os gritos de “Vasco, Vasco!”, a explosão de bombas. Augusto Frederico Schmidt parecia ouvir música, os anjos tocando harpa.

Não havia mais lugar em General Severiano para Zé Lins. “Eu vou-me embora, Mário Filho, não fico mais aqui.” “Está acabando, Zé Lins.” É que ele tinha de pegar um lotação. Para pegar um lotação, só saindo cedo, na frente. E para Zé Lins, o que estava acabado não era o match, era o Flamengo, o mundo. “Até amanhã.” O corpo de Zé Lins tapou a visão de Augusto Frederico Schmidt. “O que é isso? Você já vai, Zé Lins?” “Já, Schmidt.” “Pois eu ainda fico, Zé Lins.” Augusto Frederico Schmidt podia ficar, tinha de ficar, como se ele estivesse assistindo ao nascimento de um novo mundo, um mundo puro, sem guerra, sem futebol. Com o céu, a terra, ele, o passarinho e nada mais.

 O Globo Sportivo, 23 de julho de 1948