* Por Marcos Peres *

 Para a Professora Luzia Aparecida Berloffa

Antes de adentrar ao tema, peço atenção ao leitor em três excertos:

1.

Ele não avisou que vinha; ela fica surpresa demais para resistir ao intruso que impõe sua presença. Quando ele a pega nos braços, ela fica mole como uma marionete. Palavras duras como bastões batem o delicado labirinto de seu ouvido. “Não, agora não!”, ela diz, se debatendo. “Minha prima vai voltar logo!”

Mas nada o detém. Ele a leva para o quarto, arranca aqueles chinelos absurdos, beija-lhe os pés, perplexo com o sentimento que ela evoca. (…)

Ela não resiste. Tudo o que faz é desviar: desvia os lábios, desvia os olhos. Deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris. Pequenos arrepios de frio a percorrem; assim que está nua, enfia-se debaixo do cobertor xadrez como uma toupeira que se enterra, e vira as costas para ele.

 (…)

2.

Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:

– “Lúcifer! Satanás!…”

Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.

– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”

Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – o que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; e fechou o arrocho do assunto. Ao que eu recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades – de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas. Arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta, eu querer saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!

 (…)

3.

 

                           Onde?

***

Há, acima, uma cena de sexo não consentido, o misterioso momento em que Riobaldo tenta se unir com as forças malignas e uma pergunta cabal, sem resposta. E o que poderia unir três fragmentos tão diferentes?

No primeiro, vemos o professor Lurie investindo contra uma aluna. Quando a voz é dada a personagem, sabemos claramente que ela nega. “Não, minha prima pode chegar”, diz a jovem. Ato seguinte, o narrador se distancia brutalmente da aluna, minimizando seus sentimentos e suas negativas. Trechos como “Ele a leva para o quarto” ou ”deixa que ele a leve para a cama e tire sua roupa: até o ajuda, levantando os braços e depois os quadris” induzem o leitor a esquecer a negativa inicial – e até mesmo a cogitar a possibilidade de um consentimento. Sabemos do desconforto da jovem, que se enterra e vira as costas durante o ato sexual, mas somos inteiramente privados de seus pensamentos neste momento. Ao contrário, por exemplo, da protagonista de Cat Person, não sabemos quais as ojerizas, quais os motivos de arrepios que a percorreram, durante o ato.

O estratagema é pensado. O silêncio – a elipse na narrativa – induz o leitor a pensar na possibilidade (ínfima que seja) do não-estupro, que será importante como hipótese no decorrer da narrativa. O silêncio, aqui, não serve para minimizar o ato, mas tão somente para colocá-lo como discussão central que atravessará todo o enredo de Desonra, do prêmio Nobel sul-africano Coetzee.

No segundo caso, há, diferentemente, um narrador em primeira pessoa: Riobaldo, com sua poética terrível de sertanejo – e com algumas elipses -, canta seu encontro com o demônio.

Então, ele não queria existir? Existisse! Viesse!, diz, para em seguida sentenciar, peremptório, que não existe, ora, não apareceu nem respondeu. “Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”, fala, com sua experiência de jagunço.

O silêncio existe aqui não apenas como recurso estilístico, mas também ocorreu ao personagem. De fato, quando Riobaldo chamou por Satanás, não obteve resposta.

Mas não obteve o seu pacto?

Coisas assim não são faláveis, sentencia o jagunço. São vividas ou sentidas, independente da fala, das línguas, dos conectores, da gramática padrão. Coisas assim “cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas”.

E com essas metáforas poderosas, Riobaldo e Rosa camuflam em véus de silêncios e não-ditos um dos episódios mais bonitos de Grande Sertão: Veredas.

No terceiro excerto, vemos o fim do capítulo 17 (Ítaca) de Ulisses.  No capítulo, escrito com a técnica ‘catecismo impessoal’, vemos uma série de perguntas (329), respondidas de maneira objetiva, emulando um tom científico. Após Bloom pensar em Molly adúltera e no lençol trocado como prova do adultério, aos poucos, vemos as respostas se embaralharem, influenciadas pelo torpor de sono que invade Bloom. Um recurso estilístico, mas não apenas um capricho. Ao pensar (talvez falar) a palavra ventre, a pergunta seguinte questiona o porquê desta palavra? Caetano Galindo sugere que Molly, ao ter escutado um semidormente Bloom sussurrar, resolve confrontá-lo. O catecismo impessoal, nesta interpretação (e graças a uma elipse no estilo) se torna uma inquisição de Moly contra seu marido. As falas embaralhadas mostram que Bloom está cada vez mais próximo ao reino de Hipnos. A última pergunta fica sem resposta. O sinal gráfico * nos indica o silêncio. Bloom, após sua jornada, dorme. Seu silêncio é importante porque é também o silêncio do narrador. O que veremos a seguir serão apenas os pensamentos desencontrados de Molly, sem quaisquer freios.

Aqui, há um silêncio do personagem. Um silêncio tão grande que reverberará na própria estrutura narrativa do livro – e que, como em outros tantos casos de elipses e não-ditos, nos deixará com perguntas sem respostas.

Peço desculpa pelo tamanho das considerações e pelas digressões. Não pensei em melhor maneira para apresentar o silêncio, se não pela sua diversidade, pela sua capacidade de entronizar em corpos, mentes, anjos, demônios. Somos apresentados aos textos literários pela capacidade de sedução de seus diálogos; pela destreza com que autores compõem a complexidade de personagens, tecem enredos, desarranjam e destroem, como malvados demiurgos, destinos, países, ideias. Reconhecemos de pronto o discurso caudaloso de um Saramago, a elegância de um Borges, a voz inflamada de um Bukowski. Mas reconhecemos seus silêncios? Compreendemos o quanto há de potente quando as vozes de nossos autores preferidos se calam?

Todo texto contém silêncio. Algumas vezes no calar das palavras dos personagens, outras na própria edificação da narração. Outras, até mesmo quando as pessoas estão falando, e os vetores indicam para sentidos diferentes. Em alguns casos, como em Arthur Gordom Pym, de Poe e Dom Casmurro, o silêncio é o início do enorme debate que se faz sobre o livro.

É impossível prever um texto sem estas lacunas. Um autor nunca abarcará todas as veredas do bosque que pretendeu criar. Um narrador, ainda que onisciente, não conseguirá prever todas as hipóteses de escolha que o protagonista pensou antes de se decidir por um certo caminho. Umberto Eco pensa no texto como uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça parte de seu trabalho. E assim diz sobre o papel integrativo do que assumimos, na leitura: “Qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas”.

Feitas essas considerações, não nos referimos aqui a estes não-ditos obrigatórios, próprios desta máquina preguiçosa do texto; dizemos, sim, das lacunas propositais, pensadas para que o texto resulte em uma multiplicidade de interpretações e escolhas – tal qual a vida[1].

Nas palavras e em seus interstícios, as possibilidades de interpretação vão se acumulando, como no famoso jardim das veredas que se bifurcam. E, neste contexto, conseguimos compreender melhor a possibilidade de uma obra aberta, conceito também do italiano Umberto Eco. Por estes espaços em branco no texto, abre-se a possibilidade de várias leituras, de várias perspectivas, de execuções pessoais, distintas e definitivas, muito embora conflitantes – afinal, a leitura de uma Capitu adúltera tem a mesma validade da interpretação de um Bentinho possessivo.

Esse silêncio não é exclusividade da literatura. Na pintura, só para dar um exemplo, O Gritode Munchfica ainda mais estridente se colocado ao lado de um quadro como Melancolia e mistério de uma rua, de De Chirico. Nesta tela, a ausência de cores, de elementos, as imagens alongadas, a ideia (a possibilidade) de que alguém fugiu da carreta com portas abertas, e espreita a menina, produzem um silêncio aterrador, nítido até para quem não é um especialista em análises pictóricas. No cinema, impossível não pensar em Bergman e em sua “trilogia do silêncio”. Já em uma das cenas mais impactantes de Mulholland drive, de Lynch, as personagens vão a um local chamado Club silêncio, um teatro que indica que tudo é uma gravação. “No hay banda”. Vocifera o apresentador. A voz que corta o silêncio é gravada – no streaming da memória dos personagens. A ideia de que tudo é gravado indica o conteúdo onírico do que estamos presenciando. Ou de que, além das nossas vozes e dos nossos próprios ecos, só existe o silêncio.

Acabo o texto com aquele que talvez seja o maior expoente da ausência da fala: Franz Kafka. No autor de Praga, sempre falta uma resposta: na narrativa que acaba no meio de uma frase, no agrimensor que não consegue fazer sua função, no infeliz que acorda e não consegue transmitir a terrível metamorfose que passou, no sujeito que não sabe porque está sendo processado (este ato que deveria ser sinônimo de comunicação). Há falta de comunicação também de outro lado, quando Kafka exasperadamente tece diálogos e apólogos; quando um cão fala ou quando um gato e um rato, em perseguição, discutem a iminente derrocada – derrocada ampla, geral, irrestrita de ratos, gatos, cães, baratas e humanos. O que está em jogo é a ausência da comunicação; o que temos são armadilhas de que os personagens dialogam, ou que deuses e demônios presenciam a cena, farfalhando alegremente sobre o que discutimos. Nesse sentido, importante é a fala de Harold Bloom, em seu Cânone Ocidental:

A crítica é derrotada por Kafka sempre que cai na armadilha que ele invariavelmente arma para a interpretação direta, a armadilha de sua fuga idiossincrática da interpretabilidade. Neste tipo de ironia, cada figura que nos apresenta é e não é o que poderia parecer. (…) É seguro dizer que não há sugestões, quando mais representações de divindade nas histórias e romances de Kafka. Há muitos demônios se fazendo passar por anjos e deuses, e animais enigmáticos (e invenções semelhantes a animais), mas Deus está sempre em outra parte, muito longe no abismo, ou então dormindo, ou talvez morto.

O silêncio, as fórmulas abertas, o chamado para que o leitor participe do texto são recorrentes nos aforismas, nas alegorias, Kafka sabe muito bem. No seu caso, no entanto, as ausências de respostas não nos dão uma moral objetiva, com corvo e queijo; pelo contrário, seu terrível silêncio nos guia apenas em labirintos em que sempre ficaremos perdidos. Reconhecemo-nos na barata ou no sujeito que é processado, sem saber muito bem o porquê. Vemo-nos envoltos da burocracia, do grotesco e da falta de esperança presentes em seus textos. O silêncio (e os inúteis diálogos) aqui servem não como otimistas lições, mas como o prenúncio de que algo terrível está por acontecer.

Kafka, judeu, neocabalista, discípulo transviado do patriarca Abraão, sabe da importância da paciência e do silêncio (para a sua obra, para si, para o destino do seu povo).  E, em um dos momentos mais bonitos de sua literatura, ao narrar um embate entre Ulisses e as sereias, assim conclui (a sorte de Ulisses, a sorte de seu povo, a bandeira que insistimos em carregar):

Mas as sereias têm uma arma mais terrível que seu canto: seu silêncio.

 

[1]O silêncio colocado no presente texto é sinônimo apenas de “lacuna indutora de possibilidades de interpretação”. Obviamente, o silêncio pode se dar de outras maneiras, como, por exemplo, no Caderno de um ausente, de João Anzanello Carrascoza, em que o realce da ausência é feito com espaços em branco dentro do próprio texto. Para uma acepção mais ampla do silêncio na literatura, recomenda-se a leitura de Orlandi (as formas de silêncio; no movimento dos sentidos), Merleau-Ponty (a linguagem indireta e as formas de silêncio) e o estudo da Professora Luzia Aparecida Berloffa sobre o silêncio na obra Jerusalém, de Gonçalo Tavares).

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Marcos Peres é servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Autor de O evangelho segundo Hitler (prêmios SESC 2012/2013, São Paulo de Literatura 2014 e finalista do Prêmio Jabuti 2014) e do romance policial Que fim levou Juliana Klein?

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Imagem ilustrativa: montagem de telas de De Chirico

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