* Por Ricardo Pecego *

O verão tardio (Companhia das Letras, 2019), de Luiz Ruffato, nos leva de volta ao mundo antes da pandemia, o mundo que costumamos agora a chamar de “normal”. O romance, no entanto, deixa sinais evidentes de que algo já estava em completo desarranjo naquela nossa antiga maneira de viver. O livro traz a saga da família de Oséias e demonstra claramente quão deturpada estava a forma em que enxergávamos a vida, a família, o trabalho e o próximo. O ser humano, mais precisamente o brasileiro, é exposto camada por camada trazendo ao leitor suas limitações principalmente no que diz respeito às possibilidades da vida.

Estamos mais que condicionados, tais como um rebanho, com um cotidiano massante em que a criatividade, a troca de conhecimentos e a integração com o ambiente são extremamente pobres. Isso se aplica de forma evidente quando limitamos nossas prioridades, nossos esforços, no afã do sucesso, da tranquilidade financeira. Não percebemos o quanto esses limitadores nos deterioram, nos consomem e nos diminui. A obra demonstra com bastante maestria e sutileza essa degradação interna e externa a que nos submetemos levados pela maré de uma normalidade perigosa, a qual só confrontamos em casos extremos ou exercitando e refletindo sobre nossa condição existencial profundamente.

As imagens criadas para ilustrar essa jornada em busca de prazeres que o protagonista se põe a realizar vão muito além das fronteiras de Cataguases, ou dos reencontros que ele vive com hiato de vinte anos com familiares e amigos. Podemos facilmente transcender da cidade mineira e inserir essa jornada em qualquer lugar do Brasil onde o ser humano ainda cativo é prisioneiro dele próprio.

Dentre tantos personagens que transitam pela odisseia de Oséas, fico pensando em quais estavam à frente de seu tempo, além do comum, buscando um algo a mais, desvendando outros sentidos para vida. Somos levados a analisar os personagens, suas possibilidades, pois nos tornamos testemunhas junto com Oséias, que nos exercita à percepção da degradação humana. Esse exercício é praticado de tal maneira, que passamos inclusive a rever e refletir sobre nossos próprios caminhos, nossas limitações, compreendendo onde o antigo normal nos engessava.

Certa vez, disse ao autor que gosto de seu estilo, que sua escrita que é para mim o que o cubano Léo Brower representa na música: uma simplicidade que transcende o simplismo e demonstra que a verdadeira arte pode estar bem na superfície, nos impactando profundamente. Talvez o caminho à vida seja assim também: simples, sem subterfúgios, arabescos ou adornos que serviriam apenas de enfeite, contudo estamos tão profundamente envolvidos com o supérfluo que passamos a existência sem percebê-lo nitidamente.

Talvez ainda nos reste tempo de reformular e refletir sobre nosso papel na existência. Esse novo normal que tantos dizem, essa nova forma de encarar a vida pode despertar em muitos uma melhor vivência, uma melhor integração com o óbvio, com aquilo que abstraímos dadas a gama de distrações que nos tiram o foco e nos impedem de refletir. O livro mostra que com ou sem pandemia, já estávamos doentes, prestes a um colapso, que não poderíamos mais sustentar um paradigma obsoleto. Tomara que no futuro se abram possibilidades de viver a plenitude das nossas potencialidades humanas sem as amarras e convenções que nos levaram ao momento atual. Logo é primavera, depois mais um verão. Tomara que não seja aquele que constatemos que já é tarde demais.

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O verão tardio, de Luiz Ruffato (Companhia das Letras, 2019)]

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