* Por Kátia Bandeira de Mello Gerlach *

                                      “quando lemos e ouvimos poemas verdadeiros, 

                                        sentimos o movimento da razão interna da natureza” 

                                                                      (Novalis) 

 

Uma sonoridade ao redor e todas as vozes querem dizer algo. Grimes, a cantora canadense, define o amor como “um mecanismo evolucionário que dá início ao design inteligente”, para depois falar sobre anarquia e tecnocratas. Logo penso em poetas-tecnocratas ocupando espaços, penetrando nas fendas da racionalidade hiperbólica. Haveria algo superior a técnica dos sentimentos, em como esculpem caminhos indeterminados? A humanidade sempre pronta para esquecer a vastidão da tecnologia da natureza que funciona em seu ordenamento próprio e independente. A grama cresce no meu jardim desde que um Tesla não estacione sobre os ramos nascentes e efusivos. O pequeno rouxinol veio morrer na sombra deste jardim, com a sua asa quebrada, saltando para fora do corpo. Diferente de nós, os pássaros não demonstram dor em suas feições de dinossauros num elo nada perdido. Os pássaros classificam-se como répteis, assombra-me o meu filho. O descompasso entre as ilusões e os acidentes de percurso, as categorias em constantes variáveis. Não há troca entre nossos olhares e, entretanto, pretendo estabelecer diálogos e intercâmbios com os corvos através dos amendoins que tenciono lhes ofertar. Está documentado que os corvos interagem com seres humanos, são criaturas geniais, colecionadoras de objetos e criadores de designs inteligentes, ou seja, os corvos são seres amorosos tanto quanto existem poetas de corações de aço sob a fina camada de uma geada.  

 “… uma corda tirada da sinfonia do universo… 

ele olhou para as estrelas e copiou os seus percursos e posições na areia. Incessantemente ele observou os céus… Juntou rochas, flores, insetos de todas as formas, e arranjou-os em fileiras de muitos tipos diferentes… Ele se alegrava em juntar estranhos. Às vezes, as estrelas eram homens para ele e às vezes homens eram estrelas, ás vezes pedras eram bestas, nuvens, plantas; ele jogava com força e fenômenos, sabia onde e como podia encontrar isso ou aquilo, ou fazer isso ou aquilo e que se manifestasse; ele próprio arrancava as cordas à procura de acordes e melodias” (Novalis) 

 

Alternar estações de rádio e valorizar pensamentos desconexos. Ser anarquista na intimidade, prezar o caos e os fragmentos – e daí que a tecnologia estilhace os pensamentos? Estamos aqui para colecioná-los, juntá-los à guisa dos corvos com os seus objetos colhidos e que usam para uma curadoria artística improvisada. Decifrar o criptograma da natureza, a chave para a caligrafia mágica dos bicos dos pássaros, desenhos pelos países onde atravessam. 

Grimes menciona a extinção do homo sapiens. Imagens magnéticas registram a ascensão do homo technos e cyborgs. Sinto que me enquadro na nova classificação. É certo que eu seja um(a) cyborg quando enfermeiros me espetam com agulhas pontiagudas e não localizam as minhas veias, confrontam-me descrentes como se eu fosse o primeiro ser que presenciam na condição de pele e nada mais. Um dia talvez nos congelem (os laboratórios já são ambientes gélidos) para estudos e através desse processo, as veias virão à superfície verdes ou azuis, esvaziadas do sangue a fluir pela circulação. Outros fatores nos transformam em cyborgs, anestesiados que vamos dentro de um uber. Por que ser conduzido por motoristas de aplicativo nos dá essa sensação mirabolante de teletransporte? Quando é que a destinação final da viagem será na estação espacial abandonada pela Rússia nos últimos dias? 

Desde a criação das máquinas e da tecnologia, uma relação de amor e ódio entre engenhos e a humanidade. Odiar a tecnologia com um telefone celular grudado ao corpo: a foto drástica de um cyborg. O inusitado hábito de fazer sexo através da tela, o sentido do toque perde a marca digital. Despistados cyborgs sexuais. A complexa hibridez pela qual passam os indivíduos nos corredores da solidão.  

Cortázar e Cristina, grandes apreciadores de dinossauros numa época em que pássaros não se classificavam como tal. As categorias criam-se e recriam-se. Planetas reduzidos a planetas anões, e vice-versa. Estrelas cadentes transfiguradas em ascendentes. O cosmos em movimento, as explosões de fulgor nas redes interplanetárias. Novas questões, o feminismo e as mulheres cyborg. E, mais além, o uso de ligações neurais artificiais. O efeito, dentre outros, sobre a Memória. Empregar ligações neurais para torturar a vítima. Repare: bastará injetar uma mínima memória má para levar alguém ao ponto extremo da angústia. Esta memória atômica assumirá dimensões de um desastre nuclear, com ou sem remorsos. Uma Chernobyl no cérebro-usina, a eliminação da felicidade de uma população inteira. Mas com idêntico poder, fomentar territórios de felicidade.  

Cortázar, ao dizer “sou dotado de felicidade” e “sou imortal”. Eis a fórmula para imortalizar-se: dotar-se de felicidade. E se isso não se viabilizar? A receita médica, a solução tecnológica. Injeções de ligações neurais com memórias felizes. Uma diminuta reminiscência, a alegria de um balanço no parque indo ao alto, o arrepio no corpo, medo mesclado com euforia. Avisar ao cérebro que é possível perpetuar o fulgor ínfimo e ler Maria Gabriela Llansol conectando os seus textos como quem pula a rayuela, o jogo da amarelinha. 

 “Provavelmente é o país onde tudo está bem – considerava Cândido – porque é mesmo necessário que haja um país assim. E, apesar do que dizia mestre Pangloss, muitas vezes me apercebi de que tudo estava mal na Vestefália.” (Voltaire) 

Mais uma acrobacia e a ousadia de implantar ligações neurais com livros completos na cabeça. Carregar Candide, Guerra e paz, os contos de Poe, Leon Bloy e Marcel Schwob. Dispensa-se ler, o conteúdo cerebral, uma forma de consumir a Bíblia, reprocessar a religião. Quantos e quais fascículos para cada cérebro? A quem caberá escolher a programação? Quais os seus efeitos no diapasão da sabedoria? Seres humanos acentuando a hibridez com o universo literário, uma expansão arbitrária da capacidade intelectual, relevando a questão do que fará a imaginação como a atemporalidade dos dados? 

Cristina ganhou um pedaço de osso de dinossauro de um museólogo de Chicago. Uma vértebra que se assemelhava a uma pedra, a pedra como símbolo inimigo. A pedra inimiga diz: todos os caminhos levam a mim. Antes as novas estradas levavam a novos países, como conciliar essa ideia num planeta já descoberto, a humanidade e a Terra experimentam a melancolia de antigas amantes. 

Anaxágoras testemunhou a queda de um meteorito aos seus pés sob o sol ardente de ferro vermelho. Entretanto, nem sempre convém deixar-se ir por pedras onde as energias se estagnaram, paradas no tempo, passíveis de lustre mas desprovidas da essencial pulsão; em algum lugar, o esboço de um manifesto poético contra as pedras, em prol da poesia dos elementos vivos. Fazer exceção para as pedras preciosas, beijá-las e deixar as lágrimas rolarem porque chorar pode fazer tão bem quanto as chuvas que precedem a primavera. Há vasto conhecimento nos bosques alegres. É preciso revelar aos enfermeiros de plantão que cyborgs não robotizados sangram. Uma hemorragia essencial para que o futuro avance e o amor prevaleça como desenho inteligente para a evolução humana.

*
Kátia Bandeira de Mello Gerlach é escritora. Mora nos Estados Unidos. www.katiabandeirademello.com
*

A revista literária e de artes São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

São Paulo Review Produções/ Banco do Brasil

Agência: 712-9

Conta corrente: 80832-6

CNPJ:  07.740.031/0001-28

ou chave PIX: (11) 99773-6574

Ao contribuir, mande-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: