*Por Bruno Inácio*
Violência, conceitos psicanalíticos, ironia, referências ao teatro e uma linguagem bastante criativa dão o tom a Pague a vista, novo livro de Camila Ferrazzano, publicado pela Diadorim na coleção Neblina.
A obra é dividida em três partes – ou melhor, três atos: a castrada, a venda e o real – e reúne poesias que exploram tanto a linguagem quanto uma variedade de temas, sempre com técnica e sensibilidade.
O primeiro assunto a ser evidenciado nos versos da autora é a violência sofrida pela mulher. A temática aparece de forma mais direta nas poesias que abrem o livro, com destaque para Front (são antigas essas cicatrizes/sangram todo mês/há pelo menos/dois mil e quinhentos anos/mas agora não é momento/agora é preciso/estender roupinhas no varal) e Modos de bater numa fêmea (é muito fácil bater numa fêmea/basta espalmar num formato de tiro/a mão sobre seu rosto/pode ser que ela tombe na calçada/& um pouco de vermelho/escorra do nariz/mas não há com o que se preocupar:/as fêmeas são acostumadas/a vazar por aí/principalmente sangue principalmente no frio).
No segundo ato, a venda, Camila Ferrazzano está ainda mais confortável para transitar pelas possibilidades oferecidas pela linguagem: brinca com palavras, explora os espaços da página e flerta com experimentalismos.
Aqui, prever a próxima palavra da autora se torna uma tarefa impossível. Não por acaso, surgem versos como “por isso nunca uso sapatos fechados ou palavras [ambíguas” ou “atrás dos joelhos: cócegas/na nuca: também/pelas orelhas: febre/no pescoço é fome”.
Em um dos momentos mais inspirados do livro (ou, arrisco dizer, da poesia brasileira dos últimos anos), Curriculum vitae apresenta questionamentos provocadores e versos que utilizam muito bem a sonoridade das palavras para conferir à poesia um ritmo urgente e musical.
É assim do começo ao fim (confira na íntegra abaixo), afinal, não é todo dia que o leitor ou a leitora pensa sobre “o que te torce as tripas/o que te pinça o nervo/o que te arde a boca/o que te rasga a roupa” ou “o que te sobe os ombros/o que te dá o berro/o que te borbulha o verbo/o que te cozinha a carne/o que te programa o crime”.
O terceiro ato do livro, o real, provavelmente é o mais convencional da obra. No entanto, nem de longe isso quer dizer que é menos interessante. Afinal, contempla não só descobertas do eu lírico (é no meio do corpo/que o insuportável/fala) como também algumas de suas confissões mais íntimas (não acredito em dias melhores/mas passo um bom café pelas manhãs).
Pague a vista é um livro provocador, intimista e irresistível. Camila Ferrazzano demonstra cuidado com cada palavra, espaço e figura de linguagem. Afasta-se do óbvio e presenteia leitores e leitoras com um intenso mergulho em grandes questões humanas, sem propor respostas fáceis ou abordagens convencionais.
CURRICULUM VITAE
I
o que te torce as tripas
o que te pinça o nervo
o que te arde a boca
o que te rasga a roupa
o que te arranca o rasgo
o que te estica o riso
o que te come vivo
o que te zuni a noite
o que te põe em febre
o que te lambe o beiço
o que te mata lento
o que te sobe os ombros
o que te dá o berro
o que te borbulha o verbo
o que te cozinha a carne
o que te programa o crime
o que te água a sede
o que te seca o sexo
o que te subtrai da soma
o que te espia feio
o que te afia a faca
o que te estala o olho
o que te olha torto
o que te endireita o voto
o que te volta sempre
II
e qual é a sua
pretensão
salarial
Bruno Inácio é jornalista, mestre em comunicação e pós-graduado em literatura contemporânea. É autor de Desprazeres existenciais em colapso (Patuá) e Desemprego e outras heresias (Sabiá Livros) e colaborador da São Paulo Review e do Jornal Rascunho.