Resenha: Por escrito

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Por Pedro Taam *

Li Por escrito de Elvira Vigna, lançado em agosto. Conheço e vivi um pouco das histórias que alimentaram os personagens e os eventos motores do livro e ainda não me decidi em que posição isso me coloca.

Em linhas gerais, o livro é uma carta, escrita pela narradora, Valderez, a um homem, Paulo.

Me chamou a atenção, primeiro, o tratamento estrutural dado pela autora às histórias que compõem o livro. Essa preocupação com a forma é peça fundamental da literatura de Vigna. Cada um de seus romances explora a forma e a estrutura de um jeito e talvez o mais interessante deles, nesse aspecto, seja o experimental A um passo (2004, Lamparina).

Pois bem. Qual não foi o meu espanto ao reparar que Por escrito é um livro em forma-sonata.

A forma-sonata é um modelo de composição utilizado largamente na música erudita desde, pelo menos, o século XVIII e até hoje. A formação de um aluno de música não é completa antes que este seja capaz de executar, consciente da forma, uma meia dúzia de sonatas do período clássico. Repare que “forma-sonata” e “sonata” são coisas diferentes: uma sonata é uma obra, geralmente composta de três movimentos, em que o primeiro (e às vezes o terceiro) é escrito na forma-sonata. Concertos para solista e orquestra geralmente seguem o mesmo esquema.

Basicamente, a forma-sonata é composta de três partes: exposição, desenvolvimento e reexposição. A exposição é dividida em (pelo menos) duas partes, onde temas normalmente contrastantes são apresentados. A função do primeiro tema é dar a conhecer a tonalidade da obra. O segundo tema não é apresentado pela primeira vez no tom da sonata, mas em sua dominante. Na música, a dominante é usada para criar uma tensão. Empiricamente, quando seu ouvido está ambientado a uma tonalidade, a introdução do acorde da dominante gera uma tensão que conduz à tônica, ou seja, o tom fundamental, original. A exposição de uma sonata termina na dominante. A ela se segue o desenvolvimento, que é uma seção mais livre em termos de harmonia, propensa a experimentações em tonalidades distantes. Ao desenvolvimento se segue a reexposição, que não deveria ter esse nome. Porque não é uma nova exposição, é a conclusão do movimento narrativo. A reexposição, preparada harmonicamente pelo desenvolvimento, é o que dá ao ouvinte o sentido de conclusão, de repouso, de finalização. É quando o segundo tema, antes só ouvindo na dominante, é finalmente apresentado na tônica, encerrando a tensão.

Uma das razões fundamentais para que a forma-sonata tenha ganhado tanta importância e centralidade na história da música é o fato de ela ser, intrinsecamente, uma estrutura narrativa.  A narrativa – assim como a sonata – não existe sem tensão. Quando a tensão se encerra, com ela se encerra a narrativa.

Mas voltemos ao livro.

Os personagens do livro são os temas da sonata. Pedro é o primeiro tema, Molly o segundo. Em diversas obras (o Concerto Nº1 para piano de Piotr Tchaikovsky, por exemplo), o primeiro tema não é mais ouvido depois da exposição. O segundo, sim. O primeiro tema do concerto de Tchaikovsky – aquele que todo mundo sabe cantar – serve para atrair, ambientar. Sua beleza é uma isca. Depois, é reduzido a quatro notas e despido de seu esplendor: pontua uma ou outra frase, mais como elemento de coesão do que como personagem. Analogamente, em Por escrito, a história de Pedro é a primeira a ser contada. Inusitada, quase cômica. O pianista gay que vai se casar com a bailarina russa.(Lembra que eu disse que vivi e conheço uma parte das histórias narradas no livro? Essa é uma delas. Logicamente que, ao serem transformados em literatura, os fatos e as pessoas são modificados, mas a história é essencialmente a mesma. Agora, eu não sou o personagem Pedro do livro. De jeito nenhum. Só emprestei umas histórias pra ele.). Só que é uma história sem tensão. Aliás, talvez a única história resolvida e acabada do livro. Portanto, esse tema não volta mais. Não tem por quê. De novo: aparece aqui e ali para pontuar uma ou outra frase e como elemento de coesão.

O segundo tema – Molly – é outra história. É ele que, desenvolvido, transposto e modificado, conduzirá o fluxo do livro.

Finda a exposição de Por escrito, no fim da seção “O começo das viagens”, é justamente o segundo tema, ou melhor, as implicações dele, que assumem o motor da história. O título do capítulo seguinte, que funciona como desenvolvimento da sonata, explicita essa relação: “A viagem da morte de Molly”. A tensão é construída pela hesitação, pelo fingimento de que não há nada de errado, não há nada a fazer. Por escrito, que por pouco não se chamou Lugares nenhuns, é um livro cujo cenário é a recusa, o indefinido, indeterminado, limbos. Valderez passa a vida sentada no que ela chama de “pré-moldados”: bancos de salas de espera, rodoviárias, aeroportos, táxis. Sentada olhando o mundo de boca aberta, briga mentalmente com Paulo, revisita os acontecimentos dos outros personagens, constantemente procrastinando, empurrando com a barriga.

Se em Nada a dizer (2010, Companhia das Letras) a narradora enxerga até o que não está lá, em Por escrito, as vozes narradoras se recusam a enxergar o que quer que seja. (Ambas as narradoras compartilham o mesmo Paulo, aliás).

Ora, se o livro é escrito em forma de carta, provavelmente escrito com a narradora sentada num desses pré-moldados, então não há tensão de fato, já que a narradora, obviamente, escreve o relato depois que os eventos aconteceram. Não há a tensão da própria narradora de o que é que vai me acontecer agora?. A tensão é só do leitor.

E aqui eu vou fazer outra digressão musical. Um outro compositor russo, Sergey Rachmaninov, tem uma teoria interessante sobre o fluxo narrativo de uma obra musical. Para Rachmaninov, há um ponto culminante na obra, qualquer obra. Não necessariamente em fortíssimo, não necessariamente apoteótico. Tudo o que vem antes conduz a esse ponto e tudo o que vem depois flui a partir desse ponto.

Transcorridos exatos três quartos do desenvolvimento, dentro de um táxi saindo de Guarulhos, está marcado esse tal ponto de inflexão de Por escrito, que eu não vou incluir aqui porque não quero ser estraga-prazeres. O livro, então, se encaminha para a conclusão. Nessa conclusão, a hesitação dá lugar à inevitabilidade. Se até agora a narradora empurrava a história com a barriga, agora ela é puxada pela própria barriga.

Mais uma digressão: um dos marcadores temporais da língua russa é o aspecto verbal. Quase todos os verbos existem em pares. Um no aspecto perfectivo (cujo foco é no resultado da ação, um processo completo) e um no aspecto imperfectivo (cujo foco é no processo, não necessariamente completo).

Há cinco exceções a essa regra: os verbos ser/estar, viver, amar, trabalhar e saber, só existem no aspecto imperfectivo. A impossibilidade, portanto, de terminar o processo de saber é marcada explicitamente nessa língua.

A impossibilidade de deixar de saber é força motriz e cerne da inevitabilidade na narrativa de Por escrito. Não há relutância que seja capaz de reverter o processo, assim como não dá pra esquecer voluntariamente de alguma coisa.

Chegamos, então, à reexposição. Algumas sonatas (e concertos) reservam ao ouvinte um presentinho depois da reexposição, a coda. A tradição russa de codas de concertos e sinfonias, principalmente no romantismo, é resolver todos os temas deixados em aberto, de forma otimista, concluindo em tom maior. Os temas são apresentados em conjunto, harmonizando-se entre si e eliminando quaisquer tensões que tenham existido. Redenção.

Não há redenção em Por escrito, nem há redenção na prosa de Elvira Vigna.

Se Pedro é o primeiro tema e Molly o segundo, Zizi é a coda.

Com seu discurso realista, a prosa aqui se distancia do romantismo idealista de Tchaikovsky e Rachmaninov e se aproxima do realismo total de Dmitry Shostakovich. O único compromisso é com o fato consumado, sem cobertura de chocolate por cima para disfarçar o sabor. Não há nada fingido, nem mesmo otimismo.

Esse realismo é, portanto, extremamente comovente. Zizi relata para a narradora, da forma mais crua e sem ornamentos, um processo de enfermidade pelo qual passou. Sem falsas esperanças, sem alegriazinhas. O livro termina, junto com a carta de Valderez.

Nesse tom de não-fingimento, os acontecimentos do livro, embora cuidadosamente amarrados para serem coerentes entre si, têm suas pontas propositadamente desamarradas. As histórias se encaixam de diferentes formas e cabe ao leitor estabelecer essas relações. Não há dicas, caminhos certos, verdades. Tampouco há juízos de valor.

Ao contrário do se espera de um romance, durante a leitura de Por escrito, o leitor não é conduzido a um estado de suspensão da descrença. O leitor é conduzido a um estado de descrença, mesmo em relação à própria obra. Surge o questionamento não só sobre o que está acontecendo, mas sobre se está acontecendo algo de fato.

Aqui, a descrença cumpre dupla função. Primeiro, dar espaço ao leitor para, ele mesmo, ser co-autor da história. Segundo, não tomar como fato o que não se tem certeza.

Porque certeza é a última coisa que se encontra na literatura de Vigna. Pelo contrário. Explorando as possibilidades que o não-conhecimento dos fatos abre, a autora convida o leitor a trocar uma certeza absoluta por uma paleta de possibilidades, elucubrações e incertezas.

Me parece uma boa troca.

Por escrito, de Elvira Vigna (Companhia das Letras, 308 págs.)

Avaliação: bom

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Pedro Taam é pianista, crítico e tradutor