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Por Ricardo Bellissimo *

Graduado em ciências sociais com mestrado em sociologia, e exercendo por mais de dez anos a carreira como professor universitário na Faculdade Cásper Líbero antes de se dedicar à atividade jornalística, Marcelo Coelho iniciou suas atividades na Folha de S.Paulo, como editor, em 1984. A partir de 1990, passou a assinar uma coluna semanal no caderno Ilustrada.

É ainda autor de dois romances: Noturno (1992) e Jantando com Melvin (1998). Publicou, também, dois livros de literatura infantil pela Companhia das Letrinhas: A professora de desenho e outras histórias (1995) e Minhas férias (1999).

Uma seleção de seus textos publicados na Folha também se tornaram livros: Gosto se discute (1995) e Trivial variado (1998).

Criou, ainda, uma modalidade singular de crônica ao combinar ensaio acadêmico com o resenhismo dos cadernos culturais, diluídos, por sua vez, em comentários que discutem os aspectos sociológicos, antropológicos e estéticos do cotidiano e o seu respectivo impacto junto aos mais variados campos culturais que permeiam a vida contemporânea.

Em entrevista exclusiva à São Paulo Review, Coelho disserta sobre assuntos diversos, de sua ligação afetiva com a literatura, passando por devaneios educacionais que possam de alguma maneira fomentar a leitura nas escolas, suas percepções sobre a crítica e a tradução no Brasil, entre outros temas.

Quais foram os seus primeiros contatos e impressões mais afetivas com a leitura e os livros, de sua infância até hoje? Recorda-se de algum livro em particular, ou qualquer outro estímulo, que então o fez tomar gosto pela leitura? Acho que tudo começou com o Pato Donald, uma das poucas publicações de que me lembro ter sido lida para mim, antes que eu pudesse lê-la sozinho. Para os padrões de hoje, a linguagem dessas revistinhas era inacreditavelmente elaborada. Lembro-me de Minnie extasiada diante da paisagem, falando de “um céu diáfano de opala.” O sentido da coisa era humorístico, claro, mas os tradutores e redatores da Abril não se preocupavam em adaptar as coisas para o público pequeno; acho que se divertiam sozinhos, eles mesmos. O ódio de Donald com relação a seu vizinho, o Silva, a quem pretendia atingir com uma bola de neve “bem no meio daquela cabeçorra.” Em suma, as palavras têm de ter certa espessura, para que se grudem na memória. Uma linguagem totalmente transparente, totalmente básica e inteligível, nunca atrairá ninguém para a leitura. Todo mundo lia muito na família, e me lembro de, pequeno, rastejar pelo chão do corredor enquanto adivinhava as letras das lombadas dos livros. Uma capa de livro, em especial, me assustava muitíssimo: Tóia, de Vianna Moog. Nomes que ficavam: A volta do gato preto, de Érico Veríssimo. La rue du chat-qui-pêche, de Andor Foldes. Depois, vieram os gibis “para maiores de 13 anos”, que para minha surpresa vi que tinham comércio liberado para quem tivesse nove. Mandrake, Fantasma, Batman. Seguiu-se a fase policial – outra cena de medo. O meu irmão tinha a edição Aguilar das Obras Completas de Poe. Até os policiais eu chegava, mas se seguiam os Contos de terror, mistério e morte, de que só sobrevivi aos dois primeiros, ‘Berenice’ e ‘Ligeia’. Novamente, com dez anos, aí importa o desafio, a espessura da coisa. O que atrai as crianças para verem filmes acima de sua faixa de idade, por exemplo, “Tropa de Elite” aos onze anos, é o mesmo fator que me levava a “brigar” com esses livros que podia e não podia ler. Ah, antes disso houve Monteiro Lobato, é claro. Principalmente o O minotauro e Os 12 trabalhos de Hércules, que me lembro ter recebido de presente, pelo correio, nas férias de julho. Gostava, naturalmente, dos momentos em que nada acontecia no sítio: Pedrinho “arrepiando xizes” na almofada de veludo da sala – nada de explicações sobre petróleo ou física, pelo amor de Deus. Daí vieram então os policiais, primeiro Conan Doyle e depois Agatha Christie – o primeiro dela que li, O detetive Parker Pine, eu economizava, para não ler todos os contos de uma vez. Grande avanço apareceu quando as Edições de Ouro puseram um anúncio numa daquelas revistas de palavras cruzadas, “Coquetel”, oferecendo remessas mensais de livros adaptados para a juventude, por 13, 50 cruzeiros. Era a “Coleção Calouro”, trazendo por exemplo uma versão mais simplificada de Judas, o obscuro, de Hardy, ou Beleza Negra, ou Bambi, ou As minas do rei Salomão, adaptadas por Carlos Heitor Cony, Walmir Ayala, Raimundo Magalhães Júnior. Bem, todo mês eu ia ao correio pegar o meu pacote. Mas o pacote trazia brindes e surpresas incríveis. Eles simplesmente desovavam tudo o que tivessem pela frente: recebi, sem adaptação nenhuma, uma coleção de peças de Ibsen, A viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre (outro desses livros de que gosto, em que nada acontece). Mas acho que o primeiro livro adulto que li foi Demian, de Herman Hesse, um pouco antes; era também misterioso, evasivo, fascinante para mim.

Como pensaria em um programa pedagógico realmente efetivo para se incentivar a leitura nas escolas brasileiras, sobretudo para que ela não se torne uma obrigação tediosa? Não consigo ver como deixaria de ser vista como obrigação. Talvez o melhor fosse proibir a leitura em todos os níveis, para que assim as pessoas se sentissem tentadas a experimentar… Acredito que muita gente simplesmente não gosta de ler. Pensava que isso tinha a ver com dificuldades especiais na alfabetização, mas vejo que meus filhos aprenderam a ler muito rápido (eu os ensinei) e mesmo assim não se interessam por livros por enquanto.

Paralelamente à questão acima citada, como vê atualmente o estado das bibliotecas públicas em uma cidade como São Paulo? E a condição das mesmas, incluindo seus acervos, quando situadas na periferia?  Infelizmente não tenho conhecimento sobre o assunto.

Em sua opinião, como analisa a crítica literária no Brasil nos dias de hoje? Ela já foi melhor e mais abrangente? E quais os principais aspectos, em seu entendimento, que uma crítica sensata deve saber abordar? Não sei se era muito boa (lembro-me de textos muito fracos na Folha de 40 anos atrás), mas existia mais; o espaço para resenhas ficou absurdamente pequeno no jornalismo impresso. Não acho que existam recomendações ou modelos para o exercício da crítica. Quanto mais pessoal o crítico for, melhor. Mas pessoal não quer dizer subjetivo. Ou melhor, pode ser subjetivo, mas o que importa é que saiba descrever sua atividade subjetiva de leitura com o máximo de precisão. Crítica é 90% descrição, a meu ver; o problema está em saber o quê, exatamente, está sendo descrito: a sua expectativa à medida que lê o texto? O funcionamento da sintaxe? O vocabulário? O que importa é que a descrição seja tão precisa que, por si mesma, possa situar a obra numa escala de qualidade e de pertinência histórica.

O universo da crítica hoje estendido a blogs e sites literários independentes está tendo ampla repercussão nas redes sociais. Acha que esse universo autônomo, desvinculado muitas vezes da grande mídia, é onde boa parte do público leitor vem mantendo um contato mais assíduo  com o que está sendo produzido literariamente no Brasil e também no mundo? Não sei bem,  meu acesso ao mundo virtual é bem reduzido.

Na sua opinião, acha que grande parte do público leitor brasileiro deixa de ler pelo preço muitas vezes elevado de um livro ou é mesmo falta de hábito? E o que poderia ser feito, na sua concepção, para que o livro possa se tornar um artigo de amplo acesso a vários estratos sociais? Acho que há livros que poderiam sem dúvida ser mais baratos – a editora Cosac Naify parece que gosta de fazer livros caros e inutilmente com capa dura etc. Mas a questão do preço é pura desculpa, ainda mais quando se pode baixar muita coisa grátis. Sem contar os sebos.

Como vê toda essa polêmica em torno das biografias não autorizadas? Sou a favor de que se publiquem sem censura nenhuma. Se houver calúnia ou coisa parecida, o autor pode até pagar uma multa, mas o livro não pode ser proibido.

Quais são os principais aspectos que leva em conta ao escrever seus artigos na Folha de São Paulo? Ou eles são escritos no calor da hora, sem a elaboração de uma pauta específica, pré-determinada? Procuro alternar temas mais “populares” com outros que estão mais próximos da minha esfera de interesses (poesia, música clássica, por exemplo).

A arte contemporânea muitas vezes brinca, ou mesmo ironiza, sobre o próprio conceito de arte e que teve um de seus maiores símbolos o mictório de Marcel Duchamp exposto em um museu. Concorda com essa visão? Em sua opinião, essa reflexão crítica vale, de alguma maneira, para a literatura que é produzida nos dias de hoje? Acho o espírito dadaísta uma das coisas mais cansativas e sem graça da cultura contemporânea. O paralelo com a literatura não me parece ser bem esse. Eu diria que, no caso brasileiro, a literatura está se aproximando daquele espírito do cinema nacional dos anos 60/70: casos às vezes notáveis de precariedade técnica justificados pelo messianismo de quem está descobrindo/revelando/denunciando  a “realidade real”.

Como vê a tradução atualmente de obras estrangeiras em nosso país? Há exemplos excelentes, que se imagina serem trabalhos de uma vida inteira: Petrarca, Chaucer, Burton, para citar casos dos últimos dois ou três anos.

Já se habituou a leituras feitas em leitores digitais ou ainda é um adepto convicto do livro impresso? Agora tenho um smartphone, e o kindle no aparelhinho é bom para ler na cama sem precisar de luz de cabeceira. Em geral não uso esses meios, mas em caso de urgência jornalística ajuda bastante não precisar esperar o prazo da importação pelo correio.

Já se pegou em algum processo de fetichização por algum livro? Os livros da infância e especialmente os da pré-adolescência, como os policiais que citei (e outros de uma coleção portuguesa chamada Coleção Vampiro, e outros de Arsène Lupin pela editora Vecchi) eram muito difíceis de conseguir e ficaram, por isso, preciosos até hoje para mim. Quanto ao mais, gosto mesmo é do livro de bolso, barato, gasto.

Está escrevendo algum livro atualmente? Não, tenho duas ou três coisas entaladas, mas não chegam sequer ao estágio de projeto.

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 Ricardo Bellissimo é escritor, jornalista e historiador, autor dos romances Sangrantes, Negro Amor, Sufoco, entre outros