
U m Livro está no assento do motorista. É terça-feira de manhã, as ruas estão vazias. De repente, depois de uma sequência de três longos saltos, um Esquilo cinzento fazendo sua patrulha, se aproxima do carro e bate na janela:
“Licença e registro”, diz o Esquilo.
“O que eu fiz, oficial?” pergunta o Livro.
“Por favor, sua licença e seu registro”, insiste o Esquilo.
“Não tenho carteira de motorista”, diz o Livro. “Mas, você pode me abrir, virar uma página, e perceberá que estou traduzido e que fui publicado originalmente em 1925 como Der Prozess. ”
O Livro mantém a compostura e se apoia lentamente no estofamento de couro preto, não quer fazer movimentos brutos pois sabe que os esquilos se assustam facilmente.
O Esquilo então enfia a cabeça pela janela aberta e começa a farejar – sua máscara não está cobrindo as narinas. Em seguida, o Esquilo anota “Franz Kafka” e “O Processo” em seu bloco de notas e diz ao Livro para ficar onde se encontra enquanto verifica as devidas informações.
O Esquilo salta para trás do carro, pega seu telefone celular, fecha o aplicativo do Instagram no qual estava postando fotos de galhos sem folhas e então confirma que não há nenhum motorista registrado por Franz Kafka na Cidade de Nova York.
O Esquilo liga para seu supervisor, explicando que encontrou um Livro não licenciado tentando dirigir um New Bettle laranja de duas portas não registrado.
Cinco minutos depois, um Pato gordinho chega e ginga para encontrar o Esquilo atrás do carro. O Pato ainda está encharcado por ter patrulhado o lago Harlem Meer o dia todo.
O Esquilo mostra ao Pato a página da Wikipédia, confirmando que Kafka está morto.
“Quando?” o Pato balbucia, sem máscara. “Eu odeio ler em smartfones. ”
“1924.”
“Onde?”
“Áustria.”
“Local de nascimento?”
“República Checa.”
“O que o livro está fazendo nas ruas de Washington?”
“Não sei.”
“Podemos estar no meio de algo importante”, diz o Pato. “Vem comigo.”
O Pato se aproxima da porta do motorista. “O que você fez com Franz Kafka?” diz o Pato, com as penas pingando no asfalto.
“Nada”, responde o livro. “Ele morreu antes de eu ser impresso.”
“Kafka parece mais com um rato”, zomba o Esquilo, puxando uma fotografia em preto e branco. “Ele era um rato?”
“Kafka não era um rato”, diz o Livro, “mas escreveu um artigo sobre uma pessoa que se transforma em inseto”.
“Que tipo de inseto?” o esquilo pergunta, lambendo os lábios.
“Algo como uma barata”, diz o Livro.
“Nem camundongos nem pessoas se transformam em insetos”, rebate o Pato. “Você matou Franz Kafka e roubou este carro?”
“Eu não sou um assassino”, diz o livro. “Nem ladrão.”
“De quem é esse carro?” o Pato pergunta.
“É o carro de Sam K.”
“Onde e quando Sam o comprou?”
“Sam comprou há alguns meses na internet”, diz o Livro. “Eles o enviaram diretamente para o nosso apartamento. Estávamos preocupados com o transporte público durante a pandemia ”.
“Você está dirigindo um carro não registrado”, diz o Pato.
“Por conta da Pandemia, o Serviço de Licenciamento está atrasando emissão de registros.”
“Isso não é uma desculpa.”
“Pato”, murmura o Esquilo. “Ele tem razão.”
O Pato gira sua cabeça, encara o Esquilo e faz um gesto para que o Esquilo o siga.
Eles andam até a parte de trás do carro e se agacham sob o para-choque traseiro.
O Pato sussurra para o Esquilo: “Acho que o Livro está escondendo alguma coisa. Eu tenho um pressentimento. Se descobrirmos uma conspiração, posso me tornar um detetive. Talvez você seja promovido também. ”
“Uma conspiração?” o Esquilo diz, inquieto.
“Internacional.” O Pato abre as asas para cobrir o bico, pisca e volta a cambalear até a porta. Batendo as asas, momentaneamente levanta voo e pousa no telhado, onde estufa o peito. “Livro, por favor, saia devagar do carro.”
“Se você não colocar a máscara”, diz o Livro. “não vou te responder. Isso me deixa desconfortável, sem mencionar que não tenho pernas. ”
“Você está zombando de mim?” diz o Pato.
“O vírus também pode se espalhar em livros”, diz o Livro. “E não quero que Sam fique doente. Você pode ter o vírus e ser assintomático. ”
Então o Pato estende o pescoço através da abertura na janela, puxa o Livro do assento do motorista, fecha a encadernação em seu bico amarelo e, em seguida, joga o Livro no capô.
Com muito medo de uma briga, o Esquilo fica imóvel.
O Livro se contorce, sua capa roça nos excrementos dos pássaros espalhados por todo o capô.
“O que há com essa capa?”, pergunta o Pato com seus pés de membranas laranjas prendendo o livro. “Temos que revistar seu carro.”
“Eu acho que é” — o Esquilo gagueja. “É apenas um design de capa.”
“Não me questione”, diz o Pato. “Reviste o carro.”
O Esquilo salta para dentro do carro, gira em torno da alavanca de câmbio, sobe no descanso de braço, rasteja atrás dos pedais e então encontra restos de amendoim sob o tapete.
O Esquilo mordisca as migalhas e enfia algumas sobras nas bochechas.
Do outro lado da rua, Pombos e Pardais observam, mas não fazem nada, e continuam mastigando um monte de arroz deixado na calçada em frente a uma bodega.
O Esquilo volta para o espelho do lado do motorista. “Não consegui encontrar nada”, murmura, com a boca cheia de nozes.
“Precisamos inspecionar suas páginas”, diz o Pato, ainda encharcado e prendendo o Livro.
“Você está pingando em mim”, diz o livro. “Minha tinta vai borrar.”
Perturbado, o Esquilo corre em direção ao fim do quarteirão, cava febrilmente um buraco na terra sob uma árvore e depois enterra o estoque de nozes.
“Você pode me ler”, diz o Livro. “Não tenho nada a esconder.”
O Pato vira o Livro, dobra para trás as páginas iniciais.
Quando o Esquilo está de volta, os dois leem atentamente a linha de abertura.
Alguém devia ter caluniado Josef K., pois uma manhã, sem ter feito nada de errado, ele foi preso.
O Pato se inquieta, rasgando inadvertidamente uma página molhada.
O Livro pede que o pato se enxugue antes de folhear as páginas.
“Conte-nos sobre a República Tcheca”, diz o pato. “Você é um espião comunista?”
“Você acabou de o rasgar”, diz o Esquilo.
“Não seja fraco”, diz o Pato. “O Livro está bom.”
O Pato vira as páginas e para no lugar onde Sam havia sublinhado uma linha: As mentiras são transformadas em um sistema universal.
O Pato aperta os olhos. “Livro, isso é um código? O que você realmente está tentando dizer? Não nos engane. ”
“Eu não posso ter me sublinhado”, diz o livro, “não fui eu”.
“Livros como você deveriam ficar em uma estante”, diz o Pato.
“Não quero ficar sufocado numa estante”, diz o livro. “Quero ser conhecido. Quero ser relevante. Quero existir!”
“Todos nós queremos ser reconhecidos”, diz o Esquilo. “Mas ninguém quer se esforçar.”
“Desculpas”, o Pato completa. “Tudo que ouço aqui são desculpas para evitar o trabalho duro”.
“Eu nunca disse nada a respeito do trabalho”, o Livro responde. “Não me importaria de ter um trabalho”.
“Você não se importaria?”, o diz Pato, “Você não só está dispensando a obrigação de todos de trabalhar, mas também disse que não vai voltar para a estante. A estante é sua única opção. Ou então você será considerado culpado. Se você ficar na estante de livros, não há como do lado de fora interferindo no mundo. A única opção que lhe resta é um julgamento. ”
“O processo pode levar meses ou anos”, o Esquilo interrompe, incomodado pelo Pato ter chegado tão longe. “Vou garantir que o devido processo legal seja conveniente para você.”
“O processo”, diz o Pato, “não o impedirá de trabalhar duro para melhorar sua situação”.
O Livro não sabe o que esse julgamento acarretaria. Também não sabe quem é o juiz, quem são os advogados, onde as audiências acontecerão, quais são as acusações. Seu destino estará atrelado a uma prisão imaginada por Kafka. Seria executado na escuridão, sem sequer ter conhecido um veredicto? Será que o Livro realmente existe como pensamento, como vontade, ou está simplesmente subordinado ao que significa ser um Livro largado nas estantes e comprimido entre outros livros?
Eles não trocam mais nenhuma palavra. O Pato vai embora. O Esquilo não tem escolha a não ser o seguir.
Quando Sam retorna para o carro, as marcas dos pés do pato estão na capa do Livro. As páginas foram rasgadas, a tinta borrada. O Livro além de manchado está molenga e preso entre o para-brisa e a lâmina do limpador.
Sam lança o Livro como se fosse apenas um livro. Ela o esfrega com lenços desinfetantes, senta-se no banco do motorista e fecha a janela. Enquanto ela espera que a rua seja limpa, abre o livro alterado e, em seguida, traz a ponta de uma caneta esferográfica azul para uma página que não está molhada.
Ela reconhece uma palavra ou frase que pertenceu a Kafka que não foi manchada e então faz uma marcação.
O Livro, no entanto, não sabe o que está escrito em suas páginas. Ele não pode ver a si mesmo. Não sabe se merece o mundo que o enfrenta. Tudo o que sabe é o que os outros falam e atribuem ele. O Livro sabe pelos outros que seus ossos e órgãos se tornaram variáveis de um sistema impenetrável.
*
Andrew Felsher é escritor norte-americano.
Tradução de Jacques Fux.