* Por Nilma Lacerda *

Um livro é lido, vem a vontade de trocar ideias, expor um caminho de inferências pessoais, fazer um convite. Lemos em primeira pessoa, mas é no plural que conversamos sobre a leitura feita. No plural e sobre a mesa coberta com a intrigante e adorável toalha da intertextualidade. Porque tudo o que se escreve já foi um dia escrito, de forma mais ou menos parecida, mais ou menos diferente; diferenças e semelhanças traçam mapas literários, DNAs irrompem em cruzamentos intempestivos, vozes remotas ressoam próximas. O planger das “cordas vivas dos violões chorosos”, tão bem exposto por Cruz e Sousa, é ouvido, atualíssimo, nas vozes dessas personagens de Hugo Almeida.

Certos casais. O caminho da tradição mostra-se vivo no presente; ensinamento, as vias da arte são também descoberta, ruptura e expectativa. A obra do autor mantém-se em diálogo com tais perspectivas, pelas referências explícitas ou não a autores e obras, por escolhas narrativas que referendam ou rompem com modelos anteriores. Dividido em dois livros, o volume tem em “Amor radioativo”, componente solitário do Livro II, uma curta biografia de Madame Curie, a cientista polonesa Marya Sklodowska, que, com o marido Pierre Curie, descobre a ação invisível de uma substância poderosa, capaz de mudar a história do mundo. Da mesma forma que certos sentimentos humanos, os efeitos da nova substância podem ter efeitos inesperados.

O rádio é

“um pó branco, semelhante ao sal de cozinha, mas que potência: dois milhões de vezes mais radioativo que urânio. Seus raios venciam matéria dura e opaca. […] O melhor de tudo, quase um milagre: o rádio poderia ajudar na luta contra o câncer.”

O amor é urgência, como mostra o poeta, nos versos que o apaixonado tomou para falar à amada.

“Quero me casar/ na noite na rua/ no mar ou no céu/ quero me casar.(…) Depressa, que o amor / não pode esperar!”

E, no entanto, aptos ambos – amor e rádio – para minar a vida, por mesmas e diferentes vias, de forma pouco perceptível a princípio, mas arrasadora em seus resultados. Se Madame Curie morre de leucemia pela contínua exposição ao rádio, um casal pode morrer de desencanto pela contínua exposição à vida com o outro. Porque a vida com o outro pede que se ocupem lugares conflitantes: ser um em si-próprio, ser um em-outrem, imerso em razão alheia. Tal é a veia central deste quase romance, entremeio cerrado a fluir do flash para o panorama, em trama endógena, característica do próprio sentimento do amor. O amor é radioativo é a tese dada ao leitor, ao final do percurso. Fino fio encarnado, equilibrando afinidade e letalidade, o amor é polimento, ou corrosão.

“Vou me casar com o homem de quem falei a você em Varsóvia no ano passado. É muito doloroso ficar para sempre em Paris, mas o que fazer? O destino nos ligou tanto, que não podemos suportar a ideia de vidas separadas.”

Para o casal Pierre-Marie o amor instalou-se na felicidade de uma afeição intensa e dos objetivos de um projeto mútuo: “O laboratório. Ali morava a felicidade”. Por outro lado, para o casal Gilberto e Tâmara “A fruta murchou, a fresta acabou? Agora, dois adolescentes, engordou, é outra mulher, tudo em declive”.

A obra de Almeida oferta no título a matéria de que se faz: histórias amorosas desaguadas no casamento e nas famílias que daí se originam. Além de filhos e de outras relações de parentesco, casais geram (são gerados por?) o tempo-em-comum, o desgaste, as irradiações de afeto e desafeto. O plano narrativo da obra toma os dois casais nucleares e em torno deles põe os demais a se mover: filhas, sogros, babá, amigos, no primeiro caso; filha, filho, sogra, o outro casal de pais e sogros, um casal vizinho em off. Na pequena biografia de Marie Curie, essas personagens compõem a cena social, sem destaque para suas existências além disso. Nas narrativas do Livro I, as personagens, constituídas por suas vozes internas, são incapazes de manter uma relação dialógica com os pares. Embora interrompido com frequência, como no filme de Kleber Mendonça Filho, o solilóquio ocupa o centro da construção dessas vidas. Em O som ao redor, atravessado por sentimentos intensos, por angústia e ruído, o cotidiano têm desveladas condições pregressas, individuais e histórias, diretamente responsáveis pela insatisfação e falência do presente.

Uma mesma situação nunca é mesma, mas é desmentida, em conflito com a perspectiva do outro, apresentada anteriormente. As perspectivas são dissonantes, fruto de tempo e de lugar diverso.

[…] me puxou, ninguém perto. Pela escada. Porta corta-fogo. Ou porta-fogo? Aberta a todos os riscos. A chama crescendo, vermelha, crescendo. Estávamos nos primeiros degraus, senti (certeza ou engano?) que ela ia me morder ali – e o barulho, vento ou descuido? Logo, a moça do café apareceu e se desculpou: “Essa porta é fogo!” Corta.

A participação dupla – ou, em termos bem atuais, o consentimento mútuo – na cena de erotismo é anulada em outro ponto de vista: “Quando ele me visitou no trabalho, uma vez, na hora não percebi, só depois entendi que a Florinda me salvou quase de um estupro na escada”.

A primeira voz é de Gilberto, a segunda, de Tâmara. Marido e mulher, com tempo de casamento suficiente para apagar desejos, transtornar perspectivas. O vulcão adormece e o conto inicial, “O sono do vulcão”, apresenta hábeis recursos para fazer da ambiguidade a mola mestra nos devaneios eróticos do professor Gilberto, ocupados, naturalmente, por outras mulheres que não a esposa. A segunda voz, em “Fogo baixo, labareda”, expõe longa conversa imaginária da esposa insatisfeita com o pai adotivo, mesclando queixas amorosas aos lamentos filiais, em que o desejo incestuoso é claramente perceptível.

Impostos pelas variadas conveniências humanas, as faces se revelam nas falas íntimas, a trair os véus costumeiros. “Quem vê de repente, sem olhar direito, tenho (sic) a impressão de que as mãos da moça estão nas pernas do padre – ele, trinta e poucos, magro.” A impressão – não a que é fruto de mirada rápida, mas aquela tatuada por séculos na mente ocidental, de julgamento e recriminação constantes do comportamento alheio, em especial atenção ao que diz respeito ao sexo, ou sua insinuação – vislumbra uma aproximação suspeita, um diálogo erótico, em meia a uma festa da religiosidade católica em cidade do interior. “Outra vida para Olímpia” põe em cena a mãe de Gilberto, sogra de Tâmara, e o leque se expande na tomada familiar, trazendo a neta Beatriz, uma artista, cuja vida é admirada e invejada pela avó. Ao dar ouvido à voz dela no conto “Dánae, muito prazer”, o mito clássico é, de forma simultânea, desfeito e refeito.

Filho de Dánae com Zeus, Perseu acabará por matar o avô Acrísio, conforme previsto em profecia. Mas antes enfrenta a Medusa, o terrível monstro cuja visão petrificava quem a olhasse diretamente. A imagem especular é o recurso do herói para vencer o mal. O reconhecimento advindo do reflexo da própria imagem, no entanto, não é concedido às personagens de nossa leitura. Feitas da fibra elástica da ambivalência, costumam usar a hipocrisia como aprazível venda nos olhos: “Pensa que o paizinho ainda me dá mesada? Pintura? Ele pensa que meus quadros. Minha mãe também”, comenta Beatriz ao telefone com Theo, figura de amigo ou de amante.

O fruto de Beatriz, a filha artista, a neta que Olímpia tanto admira, poderia, como Perseu fez com o avô, ainda que acidentalmente, matar a família? Difícil dizer. Em um grupo onde as meias falas, o dito ao contrário, o imaginado, o não dito são a tônica, que ameaça representaria a voz dos interlocutores ao telefone, apenas subentendida para os leitores/ouvintes? A reação a qualquer ameaça vem como bumerangue: “Tenho o telefone da dona Laura. O que sugere que eu diga pra ela? Passar bem, meu senhor”.

Presas num ciclo de desconfiança e acusação, as personagens vivem a hipocrisia, forjando narrativas que não resistiriam a uma investigação mínima, ao mesmo tempo em que experimentam situações de retorno do conhecido. Referências entrecruzadas acirram a ambiguidade – Tâmara ouve Don Giovanni, história de sedução e punição, também mencionada pela voz feminina nos diálogos de Gilberto ao telefone. A proliferação de vozes femininas em torno do protagonista tem seu paralelo nas citações feitas por Tâmara de telas de Renoir e Monet, em múltiplas retomadas pelos artistas.

Autor de minucioso estudo sobre o conto brasileiro, Hugo tem a mão certa para elaborar as histórias curtas e densas deste volume. Dialógico por excelência – foi o idealizador da coletânea Feliz aniversário, Clarice, homenagem ao centenário da autora e aos 60 anos de publicação de Laços de família –, ele deixa como pano de fundo o eco das vozes liberadas pelo vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan, presentes sobretudo em “A brisa na varanda” e “Trovões”, primorosos flashes a espoucar na cara da leitora o sórdido cotidiano dos casais gastos.

Ópera cujo cenário mostra-se pouco a pouco, não falta nela lugar para o burlesco, presente em “Conto das cadeiras”, em que o filho Júnior narra uma travessura juvenil do pai e de um amigo. Ao nomear conto o que é mais dança ou jogo, a clássica “dança das cadeiras”, na qual são as pessoas que dançam e perdem suas cadeiras –o autor marca assim a linha de força da pequena babel deste conjunto narrativo. Universo pleno de delírios compensatórios à juventude perdida, à potência perdida. Contudo, os que ainda são jovens, o motoboy, a pintora, têm as mentiras no lugar da potência da ação. Menos que lamento, as veladas, veludosas, vivas, vãs, vulcanizadas vozes”, fazem-se irônico consolo à perplexidade humana.

“Deus fez o mundo à toa? Tudo tem motivo?” pergunta Gilberto. A voz ao telefone (no imaginário?) responde: “Ai, Gil, estou desativada. Deus fez o mundo à toa.” “A vida é imperfeição”, diz Beatriz Magalhães, na apresentação do livro. A imperfeição responde, “Deus fez o mundo à toa”? Ou o sentido está justo em imperfeitos, e gozosos? Se concordarmos que imperfeitos, gozosos e, por isso, a arte, afirmaríamos que não foi à toa que Deus (ou qualquer outra hipótese) fez o mundo.

A arte não salva. Consola, segundo Dante. Ou simplesmente é um fruto do humano, como quer Sartre. Talvez uma alternância de possibilidades: arte ou violência ou apatia. Você, que recebeu este convite de leitura, pode saber qual delas é sua via preferida. Hugo Almeida escolhe a arte.

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* Certos casais foi publicado pela Laranja Original; Feliz aniversário, Clarice pela Autêntica.

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Nilma Lacerda é autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Estrela de rabo e mais histórias. Com vários prêmios literários, colunista de São Paulo Review, publica em novembro próximo Iberê Camargo: Um homem valente, pela editora Mínimo Múltiplo.*

Imagem ilustrativa: Doisneau

 

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