* Por Ricardo Pecego*

Matutando, com esse vento carregado de fumaça das queimadas a minha volta, irritando minha garganta e dando impressão que meus pulmões diminuíram, fui traçando uma comparação entre Brasis.

O primeiro, muito pouco conhecido de nós, o paralímpico. Formado por pessoas apagadas do mundo convencional, devido suas deficiências, que me encantou durante as competições acontecidas recentemente em Paris. Minhas filhas tiveram contato através de mim, se espantando, dia após dia, com o desempenho dos nossos atletas. O Brasil competia com extrema valentia, dedicação, respeito e conquistava mais de dez medalhas em um único dia de competição.

O outro Brasil, que entre um pigarro e outro, surgiu na minha timeline como um furacão, soprando com força, pois o evento está acontecendo, é o da Bienal do Livro. Uma enormidade que reúne editoras, editores, autores nacionais e internacionais. Tão imenso que se tornou exclusivo e instagramável: exclusivo por excluir boa parte da produção literária nacional, desfavorecendo editoras independentes. Instagramável por dar suporte às ilusões de quem se deixa levar por tornar-se influente, caçador de likes. Coisa que os pilotos, deste imenso mercado, deixam que aconteça, sem observar que estão navegando direto para o iceberg, feito o Titanic.

Pode ser que a falta de umidade esteja mexendo já com meus ressecados neurônios, tentando realizar sinapses forçadas para confrontar esses universos, mas ao mesmo tempo sinto que existe aí uma trilha estreita, que cabe esse meu esforço de alguma forma. Estou tentando aqui, mesmo com a vista ardendo, comparar um Brasil que caminha muito bem, que ninguém dá importância e isso parece torná-los mais fortes; com um Brasil que vai mal e caminha para o abismo e mesmo assim faz pose para selfie.

Sou um apaixonado pelas olímpiadas e isso não me deixa isento a críticas à sua organização. Na cobertura da televisão para o evento olímpico, a principal transmissora do país disponibilizou quatro canais, monitorando todas as modalidades possíveis. Me esbaldei! Ganhamos vinte medalhas, ótimo! Contudo nas paralímpiadas, tudo se reduziu. A cobertura do evento aconteceu em um único canal e pasmem: ganhamos 89 medalhas!

Terminamos entre as cinco potencias paralímpicas do mundo, mas isso não se divulga, parece vergonhoso, deve ser dito apenas a boca chiusa.

A deficiência é uma realidade humana e o esporte paralímpico uma grande porta para que estas pessoas encontrem possibilidades de vida. Não necessariamente uma profissão, pois para ser um atleta não basta ter uma deficiência. Também é necessário aptidão ao esporte, uma coordenação física e mental surreal, que compense as limitações que a deficiência impõe. Contudo nossa realidade  é de que somos todos convencionais e assim não se vê praças esportivas nas cidades adaptadas para a prática do paraesporte. Somos uma potência paralímpica! Temos que aceitar definitivamente essa uma realidade. O presidente Lula e a primeira-dama Janja, felicitaram a façanha de nosso atletas em seus perfis no Instagram. Achei pouco pelo tamanho do feito. Lembrando que as pessoas com deficiência são parte dos integrantes, que subiram a rampa na posse histórica do presidente. Isso precisa ser demarcado com mais alarde e congratulações dignas. Faz jus inclusive a um grande pacote de políticas públicas vigorosas neste segmento.

Do outro lado dessa moeda, em outro Brasil, desembarcamos na Bienal do Livro de São Paulo. Evento restrito, que cria competições por senhas para que você assista palestras. Cercado de holofotes para míseros 10% dos autores que publicam livros no país. Com foco no best seller (formato burro de mercado), as editoras brasileiras grandes vibram por vender bem três ou quatro, dos 300 livros que publicam por ano. As editoras médias se arranjam como podem, fazendo parcerias aqui e ali, se amontoando nos cantinhos menos valorizados dos grandes estandes. As independentes participam de maneira simbólica.

O evento todo não reflete sobre o livro e os leitores, parece uma Comic-Con. Em seus corredores circulam os milhares de blogueiros e pretensos influencers, que acham que ler 77 livros no ano lhes imputa uma autoridade crítica e estética. Perdão se fui muito bruto, deve ter sido a fungada quente, que subiu agora pelas minhas narinas, tirando minhas últimas valiosas lágrimas. A culpa dessa avalanche de conteúdo nenhum me incomoda profundamente. Distancia tudo da arte, das entrelinhas, dos saberes. As pessoas, que guiam o leme deste nosso meio literário, não perceberam que o fenômeno do isolamento criado junto aos autores amazon, está se repetindo com os críticos?

Lembro dos tempos em que respirar era um tanto mais cômodo. Eu conversava com várias pessoas do meio literário sobre essa minha preocupação. “Está se formando uma nova literatura fora do eixo das editoras. Uma literatura que é válida, mas que precisa de muita orientação e lapidação do meio.”, isso tomava corpo em plena pandemia. Não sou um cara nada influente e este universo paralelo se estabeleceu com força. Produz uma literatura muito aquém do que se imagina, num formato pobre e abandonado de qualquer crítica, orientação e ajuda. Em breve vai nortear nossa leitura, os números já indicam isso: A venda de livros cai e a oferta dos aplicativos de leitura aumenta exponencialmente. Já existe uma geração que repele o livro com uma linguagem mais elaborada e valoriza os clichês e plot twists sequenciais.

De volta aos corredores lotados de gente de conteúdo, armados com seus microfones de lapela e um celular com boa câmera, pode se ver a magia acontecendo. Kabum! Uma correria, um frenesi para conseguir fazer algo que engaje. Fico preocupado quando estas pessoas assistirem o que têm feito hoje, daqui trinta anos. Haja Rivotril (para eles ou para mim, ainda não sei)! Da mesma maneira que nosso meio fez com os autores amazon, se deixarmos tudo isso correr solto, sem amparo, sem bagagem, ou referência, logo só teremos isso.

O presidente esteve com a Ministra da Cultura na Bienal. Caminhou pelos corredores e recebeu uma carta de diversas entidades do nosso meio pela efetivação da Lei Cortez. Os mega editores estiveram com o presidente, reclamando que o governo está comprando pouco livro. Um mercado que vive majoritariamente dos recursos governo, não pretende mudar de eixo, para atingir o público. Coloca a literatura no patamar obrigatório da sala de aula, que fez ao longo dos últimos 40 anos a leitura equivaler a lição de casa. Esse pessoal quer encher de livros os acervos de bibliotecas escolares, que continuam inativas, apesar de, por lei, obrigadas a funcionar. Permanecer nesse formato é ficar à mercê da volatilidade eleitoral para manutenção do meio literário. Caso o outro lado vença as próximas disputas, todos entrarão em desespero, pois não trabalharam na consolidação da leitura e a literatura como direito humano. Vide o candidato à prefeitura de São Paulo, sede da Bienal, que foi até o evento para falar de banir livros. Sua profissão: coach, influencer.

A cegueira que nosso querido Saramago tão bem descreveu, nos afetou há muito e assim permanecemos não dando apoio a quem se aplica e traz resultados que podem modificar milhões de realidades. Melhorar vidas, que por fatores diversos precisam se adaptar à deficiência. Em contrapartida damos likes  para que num mundo paralelo, Machado seja chato e não hypado, (até o momento em que uma blogueira americana diz que na verdade ele é foda). Damos asas para que o livro não seja mais uma arte de construção coletiva e se torne algo improvisado, fruto de imaginações involuntariamente rasas, que caem de paraquedas e utilizam os fundos dos estandes para criar dancinhas literárias. Encerro por aqui. Minha tosse seca indica que preciso ir rapidamente respirar na toalha molhada se não quiser sufocar.

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Ricardo Pecego é escritor, livreiro e produtor cultural

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