
A Hora Mágica, de Carlos Messias, mergulha nas cosmovisões indígenas sem fetichizá-las
*Por Alexandre Ribeiro*
Qual é a tarefa de um escritor? Escrever um livro de 200 ou 300 páginas, com história e personagens instigantes, descrições primorosas de cenários e emoções, salpicadas de sabedoria e conhecimento? E, além disso, o que torna um livro uma obra de arte? Seria o mero bordado de frases e imagens que desfilam diante dos olhos de um leitor deslumbrado?
É mais do que isso. A verdadeira tarefa de um escritor é conduzir um signo ao seu lugar de destino. A obra de arte, então, torna-se a materialização desse percurso.
Carlos Messias cumpre com precisão essa tarefa — e ainda oferece ao leitor a beleza e a profundidade da sua arte. Ele toma o signo do nosso eu exausto, que caminha cabisbaixo pelas ruas da cidade, sufocado por uma vida artificial, atarefada e sem sentido, e o conduz à mata, para cumprir a mais essencial exigência da existência: confrontar-se, de forma autêntica, com o próprio ser e com tudo o que o cerca.
A ida do psiquiatra Caio, protagonista do romance A hora mágica (Editora Patuá), à Amazônia acreana, onde passa um ano entre os ika yubë, não se resume a um trabalho de cura pelas mãos de um povo tradicional. É uma imagem potente do percurso que cada um de nós, mais cedo ou mais tarde, é chamado a fazer na vida — um caminho que vai além do autoconhecimento, chegando ao comprometimento com a vida em sua forma mais íntegra e radical.
O estilo literário de A hora mágica é marcado por um hibridismo expressivo entre o relato autoficcional, o ensaio antropológico e uma prosa sensível, por vezes poética, que se aproxima da literatura de testemunho. A fusão entre autor e protagonista — ambígua, por vezes deliberadamente indistinta — confere à narrativa uma densidade subjetiva rara, na qual a experiência vivida e a invenção literária se alimentam mutuamente. O texto transita com naturalidade entre o universo científico e o simbólico, costurando espiritualidade, crítica social e reflexão existencial. Trata-se de uma escrita que não se furta à complexidade dos temas — ao contrário, mergulha neles com coragem —, respeitando as cosmologias indígenas sem fetichizá-las, e revelando-se profundamente ética em sua escuta. A floresta, nesse contexto, não é cenário: é força ativa, presença interrogante, alteridade viva que devolve ao narrador (e ao leitor) a pergunta essencial sobre o que significa, afinal, viver de forma plena.
Ao final, é como se a verdadeira hora mágica fosse esse entrelaçamento de mundos: o da escrita com o da escuta, o do homem da ciência com o da entrega, o do leitor com o do iniciado — e, sobretudo, aquele instante de rendição amorosa, em que se está tão inteiramente presente, vulnerável e tocado, que não resta mais nada senão entregar-se ao feitiço da vida.
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Alexandre Ribeiro, jornalista, doutor em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP – @alexalva