“As andorinhas são os animais mais felizes do mundo. Muito triste ver o animal mais feliz do mundo em pedaços. O mais feliz. As andorinhas explodem todo começo de dia, e também no fim da tarde, aquela coreografia absurda e exata demais num ser com um espaço tão ridículo para os miolos. Fazem a farra”. A primeira frase inicia o livro e o espetáculo, que pareia o modus operandi das andorinhas ao dos homens gays, em uma livre adaptação do romance de Flavio Cafiero, realizada pela dupla Ester Laccava e Vinicius Aguiar, diretora e ator do espetáculo, respectivamente.  

A obra explora a dinâmica das relações de amor, sexo e amizade na intensa cidade de São Paulo nos anos 2020, com um foco particular nos desafios enfrentados por pessoas LGBTQIA+ acima dos 40 anos, perfil do personagem central. Essa geração, que viveu em uma época na qual assumir sua identidade ou falar abertamente sobre o amor era visto como tabu. Agora, com o fenômeno dos aplicativos e da liberdade nas relações tão extrapoladas, quanto rarefeitas, se depara com um estranhamento sobre como ser e amar. 

Em um mundo de relações superficiais, hiperconexão e liberdade contraditória, o espetáculo retrata a solidão e as migalhas emocionais que sobram, na busca por reconstruir a vida em uma metrópole que oferece tudo e, ao mesmo tempo nada, vivida por Tato, o protagonista, deixado pelo namorado um grande amor, que precisa redesenhar sua história na cidade, cercado de novos personagens que adentram em sua vida. 

A narrativa se desenrola em um edifício emblemático no centro de São Paulo, onde o personagem central, interpretado por Aguiar, tenta refazer sua vida. O solo, dirigido por Ester Laccava, é repleto de reviravoltas e envolve o público em uma conversa íntima sobre as complexidades das relações modernas, sobre afetos queer.

Sobre a relevância da obra literária, que será discutida e encenada no teatro, e a adaptação realizada pela dupla, Flavio Cafiero reflete: “Ter meu livro adaptado é a radicalização da morte do autor: a obra não é mais minha e atingirá as pessoas de outras maneiras. Gosto da ideia de acrescentar camadas sobre minha história, a do adaptador, a do ator, a do diretor e, por fim, a do espectador. Não colaborei diretamente com a adaptação, mas sempre mantive contato com a equipe. Minhas contribuições se dão na medida das necessidades, que têm sido poucas. Ver essas duas formas de arte irmanadas no palco é algo que me encanta. Sempre encantou. A transposição de linguagens me interessa”, revela ele. 

E continua: “Vivemos tempos de fragmentação da atenção e da fruição artística. Nesse sentido a arte em geral, mas o teatro e a literatura especificamente, são lugares de resistência. Sair de casa e assistir a um espetáculo de uma hora, sem interrupções, é um ato heroico em meio a vidas regadas a internet e smartphones. Mergulhar por horas, dias ou semanas em um livro é a verdadeira realidade paralela nos dias que correm”, completa Cafiero.

Nos tempos de relações rasas, ghosthing, pouco envolvimento, facilidades para o sexo, hiperconexão, autoprivação, de liberdade explícita velada, da explosão dos multigêneros, um homem com pouco mais de 40 anos releva em cena um retrato íntimo e comovente da solidão de uma grande cidade, onde ter tudo à mão, poder ser o mesmo do que não ter nada. 

As migalhas reunidas pelo personagem central em busca de refazer a própria vida, em um prédio emblemático do Centro da capital paulistana – com seus personagens curiosos e tipos interessantes que costuram e compõem a narrativa – propõem uma conversa íntima, com muitas reviravoltas, altos e baixos, emoção, cumplicidade com o público, em um solo que traz à tona as questões a cerca das relações destes tempos.

A ação da peça tem início com Tato, o protagonista narrador, dando um soco no ex-namorado durante uma festa em plena quarta-feira em um bar no centro da cidade. A partir desse ato, que ninguém sabe se levado à cabo por impulso, revolta, reflexo ou saudade, Tato busca recuperar o fio dos acontecimentos que o levaram até ali, e e para onde se pode ir depois de ter o coração partido.

A dramaturgia do espetáculo parte de temas recorrentes como o amor e o abandono, mas conta com a delicadeza e acidez da linguagem de Cafiero para atravessar temas urgentes e contemporâneos como a onipresença dos remédios e antidepressivos, a influência da tecnologia na manutenção das relações – não somente as amorosas – e sua consequente interferência na formulação de narrativas. O que resulta em uma encenação ágil, carregada de sons e imagens, que convida a plateia à embarcar nesse vórtice humano destes tempos.

A obra alia memória e ação num narrativo não linear, em flashes e quadros, que constroem a linguagem da cena na sensação de vagar e confusão e cortes que permeiam a mente e corpo de Tato nessa busca por respostas sobre si e sobre os outros. Não se trata da história de um herói em sua jornada, mas de uma história em parafusos e paranoias, que se perde e se encontra buscando um rumo para seguir. Um retrato e reflexo de 2024, tão sagaz e sensível, quanto cruel e contundente.

Sobre a adaptação da obra literária para o teatro, a atriz, diretora e dramaturga Ester Laccava nos conta: “A experiência de adaptar o livro foi de muita dedicação e muito respeito pelo Flavio Cafiero, que eu acho deslumbrante enquanto autor. Então, respeitei a cronologia e dali, com experiência de atriz e diretora, busquei dar uma dinâmica para o palco, a essência daquela circunstância, deixar claro a dor de quando a gente perde. A ressaca de uma perda foi fio condutor inicial. E o respeito pelo Vinicius, o ator, que me desejou há um tempo para poder dirigi-lo e daí depois a proposta para adaptar. É sempre complexo você transpor para o teatro uma obra literária. O desafio é imprimir a linguagem do teatro para a literatura do Flavio. Me sinto feliz de ter concluído essa missão”, revela Laccava.

Questionada sobre a importância de contar a história no teatro e o que espera da encenação, Ester nos conta: “Olha, eu espero com a obra emocionar a plateia, causar uma diminuição de julgamento, preconceito e etc., que surpreendentemente ainda é muito feroz. Ainda se espera que o outro te explique por que é que ele ama alguém. A gente não tem que explicar quem amamos, essa liberdade é direito de cada ser humano, quem eu amo, quem eu escolho amar. Estarmos discutindo isso ainda em 2024, justifica, como diz o Cafiero, o ‘ato heroico de ir ao teatro não dias de hoje’. O tema LGBTQIAPN+ é de uma relevância enorme, me emociona e me move para que eu continue também lutando por esses direitos. Se conseguirmos libertar, que seja uma pessoa da plateia na temporada, um casal de pais que tem filhos gays, já terá valido a pena. No mais, eu acho surpreendente ter sido acolhida por dois homens gays para ser diretora, mesmo eu não tendo essa representatividade, confiarem em mim tão completamente”, finaliza. 

A ideia de levar para o teatro e contar a história de Tato no teatro foi de Vinicius Aguiar, ator e produtor do espetáculo: “Há cerca de dois anos atrás ganhei de presente o livro ‘Diga Que Não Me Conhece’, do Flavio Cafiero e já nas primeiras páginas fui acometido por uma vontade enorme de contar nos palcos a história de Tato e dos seus. Mais do que a história de um homem gay entrando na meia idade, a perda de um grande amor, suas impressões de recém-chegado na São Paulo do 2020’s, uma história tão próxima da minha, o que me motivou em adaptar para o teatro, foi a inquietude que se instalou em mim, como alguém que se olha no espelho e reflete a solidão, desesperança, a superficialidade das relações destes tempos”.

‘Diga Que Não Me Conhece’ se cercou de um time de profissionais de peso para desenhar e assinar sua concepção. A desenho de luz ficou a cargo de Sarah Salgado, que neste ano assinou a luz dos espetáculos solos de Andrea Beltrão (Lady Tempestade), Zezé Polessa (Nara) e Silvero Pereira (Pequeno Monstro). A direção de movimento é assinada por Fabrício Licursi (Bárbara, Shakespeare Apaixonado e Nossa História com Chico Buarque). Os figurinos carregam o traço e assinatura do estilista mineiro Lucas Magalhães e a direção musical, que traz canções de LCD Soundsystem é assinada pelo produtor musical Otávio Ferraz. 

Em cartaz no Teatro Itália, em São Paulo, a peça realizará sessões aos domingos às 19h e Às terças e quartas, às 20hs. Os ingressos variam entre R$ 30 e R$ 60, com vendas na bilheteria do teatro e através do Sympla. A classificação indicativa é de 16 anos.

Sobre Vinicius Aguiar

Vinicius Aguiar é ator e dramaturgo. Cearense de 43 anos, há cerca de 20 vive em São Paulo, onde alicerçou sua formação artística e acadêmica. Formado em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia Helena. Em dezembro de 2020 estreou nos palcos sob direção do premiado encenador e dramaturgo paulistano Nelson Baskerville, no espetáculo “Terminal Só”, no qual apresentava o solo de autoficção “ELA”, de autoria própria. Em julho e agosto de 2021 encenou como ator no espetáculo “Cemitério Vertical”, com texto de autoria própria, sob direção de Eric Lenate. 

Em dezembro do mesmo ano e março de 2022 esteve no elenco do espetáculo “O Macho da Tijuca”, uma realização da Cia dos Atores, a partir da obra de Nelson Rodrigues, com direção de César Augusto, com duas temporadas na Sede da Cia dos Atores, no Rio de Janeiro. Em 2023 integrou o elenco dos espetáculos “O Sismo – Medeia” com direção de Eric Lenate e “Não Precisa Ser Assim”, dirigido por Lucas Mayor e Marcos Gomes. 

Em 2024 iniciou uma pesquisa e produção de uma série de trabalhos para o teatro a cerca da obra de autores LGBT+, que está levando ao teatro, iniciando pelo romance de Flavio Cafiero e previstos para 2025 textos inéditos de Jô Bilac e Newton Moreno. 

Serviço:

Elenco: Vinicius Aguiar 

Direção: Ester Laccava 

Adaptação: Ester Laccava e Vinicius Aguiar 

Teatro Itália: Av. Ipiranga, 344, Térreo. Edifico Itália. República, São Paulo, Tel: + 11 3214 4579

Domingos às 19h. Terças e Quartas às 20h.

Temporada: 1 a 27 de Outubro 

Ingressos: bilheteria do teatro e via Sympla.

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