*Por Marcos Peres*

“Fragmentos de uma ausência”, de Luigi Ricciardi, adota uma estrutura
descontínua, combinando recortes de memória que transitam entre aforismos e confissões

Fragmento: pedaço, entrelugar, momento. Um homem de meia-idade, com questões não resolvidas, descobre-se perdido no meio do caminho. Sua coragem ao escrever (desnudando pessoas e vícios reais) é apenas um pretexto para mostrar seu percurso: sua descida ao inferno. A razão dessa jornada? Uma mulher – colocada em um andor e venerada como uma divindade. Uma mulher que, por conveniência, é chamada de Bê.

Sim, você conhece essa história. Mas seria correto julgarmos que o presente livro traz uma chave de leitura alegórica da Divina Comédia? Vá lá, podemos pescar, neste romance, alguns momentos dantescos.
Estão lá:

a. As menções ao empíreo – “Bê olhando o horizonte, nua, na sacada. Existe melhor descrição do paraíso?” e “Ela foi perdendo o contorno no céu até desaparecer entre as estrelas.”;

b. As passagens pelo Hades – às vezes, Bê não respondia às mensagens. Sua ausência era como os temores do inferno;

c. O indício de que o narrador, ao descer ao submundo, tenha sido condenado ao círculo da gula – “A devoção por Bê não passava de um ímpeto de glutão?” Mas as imagens mais latentes são as do limbo, esse espaço provisório entre o céu e o inferno: “Eu também não passava de uma entressafra.” ou “O purgatório não tardaria.” Limbo: entrelugar, lócus provisório… fragmento. Busquemos por outros lados: não pelo conteúdo – e seus possíveis arquétipos –, mas pela forma. Ausência: privação, carestia, desaparição. Luis, o narrador, apresenta-nos um texto enxuto. Não recorre a malabarismos metafóricos, tampouco a gramática rebuscada – e, à primeira vista, sua construção tem um quê de edifício brutalista: cinzento e austero. O texto, encravado de formidáveis elipses, pode talvez ser explicado por outra técnica
literária – mais ligada aos contos.

Ausência: não dito, hiato. Fragmento: parte desgarrada do todo, incompletude, retrato. Das formas breves (que Luis, o autor, domina), floresceu a técnica do texto como moldura – ou a ponta visível de um iceberg. Sob esse prisma, o labor ficcional consiste em lançar luz sobre um momento, sem ignorar que outros tempos o antecederam, e outros tantos o sucederão. O narrador, neste caso, não sente necessidade de cometer flashbacks, mas não duvida que somos o resultado de decisões pretéritas (“haja hoje para tanto ontem”, diria um bigodudo da capital do Paraná).

E assim, ao focar um quadrante limitado – o fragmento –, a narrativa acaba por fornecer duas histórias: uma visível; outra, invisível (a ausência).

Seria, então, esta a chave de leitura?
A resposta afirmativa ainda me parece insuficiente. Fragmento: espaço cingido, interstício. Ausência: hiato, vácuo, nihil. Luis faz de seu espaço delimitado e de sua narrativa lacunosa um meio de deixar Bê nesta “história não dita”? A resposta é negativa. Bê pode não estar mais no cotidiano do autor, mas ainda é terrivelmente presente – como um fantasma rondando a esplanada da Dinamarca. Não é o iceberg submerso, invisível a olho nu, mas sim o Polo Norte inteiro pesando na cabeça do narrador. A opção pelas frases curtas e rascantes segue, portanto, outros comandos – e, sobre isso, faremos algumas considerações:

Primeiro, a escolha pelo texto enxuto dá uma falsa sensação de aridez, de objetivismo. Na verdade, o texto é tecido por uma trama extremamente poética – quando não filosófica. A eliminação de adjetivismos e pirotecnias linguísticas desvela o nascimento de um grande aforista – e o presente livro é
um compilado de frases marcantes (daquelas que usamos nas redes sociais quando, com uma indireta, queremos espezinhar um antigo amor).

Segundo, é preciso compreender a dimensão da proposta minimalista deste livro: o autor não apenas degola orações, mas usa seu sabre para cortar conectivos, limar explicações, podar fios condutores e jornadas de heróis. Em outras palavras, Luis abdica de contar uma história – dessas que escritores
costumam escrever ou que comumente contamos à mesa de um bar.

Ao optar por retalhar dramaticamente seus momentos com Bê, o narrador abdica da construção de algo unitário. Que se conste em ata: trata-se de uma opção corajosa. Dez entre dez manuais de escrita criativa falarão das vantagens da narrativa como fluxo, como força motriz que transmite a impressão de uma ordem teleológica: um mundo com harmoniosas causas e consequências, que impelem o leitor a descobrir o que há no próximo capítulo – e no próximo, até o fim.

Por que o narrador (conhecedor de todos os manuais de escrita criativa) fez essa escolha? Bem, neste momento, já me sinto confortável para tentar lançar uma hipótese.

Os fragmentos que tratam da ausência de Bê têm a natureza de um diário – é essa a atmosfera que o narrador nos conduz, desde a primeira linha de seu texto. Note-se: não se trata de uma condução óbvia. Se assim o quisesse, o texto estaria marcado com sinais característicos de anotações pessoais: crivado de datas, feito com lembretes ou, quiçá, com marcações mais evidentes – como as narrativas que começam com um “querido diário…”.

Não está exposto que o romance talvez seja um solilóquio epistolar, a escrita de si para si – mas compreendemos isso logo. E é aqui que a mágica acontece. Aqui, todas as facetas do romance se expõem: como conciliar aforismos líricos, excertos que parecem ter sido sussurrados num confessionário, demonstrações de erudição e certo gosto por piadas de quinta série?

A resposta, diz-nos Luis, está na vastidão de possibilidades que se confia a um diário. É neste clima de narrativa íntima que coabitam os picos e vales do humor do protagonista: os momentos de raiva (“me amou durante trinta meses e seis mil e seiscentos reais, meu salário mensal na época”) alternados a uma
sensualidade que não se descola da ingenuidade (“quando acordava, dizia ‘bundinha’. Às vezes eu acordava Bê com beijos na bunda.”).

É nesse clima personalíssimo que podem coabitar estilos e vozes, memorabilia e metalinguagem, a leveza da crônica (“vejam bem onde transam, às vezes pode dar reação alérgica”) e o hermetismo aforista (“O desespero é uma arma aguardando um suicida”).

É no húmus do texto personalíssimo que floresce a possibilidade para que o narrador alce voo em imbricadas sinestesias (“Bê gostava de amarelo e eu de vermelho. A mistura daria laranja. Eu chupava Bê como se chupasse uma laranja.”) e se ajoelhe para confessar os próprios pecados (seja o peso na balança, seja o não entendimento de um livro de Barthes).

Por que cortar frases? Por que eliminar fios condutores? Porque assim são os diários – preenchidos por momentos de raiva, de alegria, de desalento: mas sempre momentos capitais.

Ao conduzir-nos por essas veredas, o narrador fecha a porta de sua intimidade, mas permite que a olhemos pela fechadura. Como voyeurs, Luis nos guia por seus infernos e pelos céus da ausente Bê. No meio, há um limbo: fragmentado, como um romance confessional – ou, quiçá, como um coração partido.

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