
*Por Juliana Nacarato Delgado*
Introdução
Este é um texto controverso, por alguns motivos. Primeiro, por se tratar de Itamar Assumpção, artista brasileiro, negro, autor de uma obra musical múltipla, irreverente e inovadora. Depois, por se tratar de um escrito com enfoque psicológico, que busca encontrar as bases mitológicas, as raízes arquetípicas presentes na obra do artista, o que faz com que essa análise se amplie e bifurque.
Uma análise bifurcada compreenderia melhor o imaginário da obra. Um olhar que possa contemplar sua diversidade, a partir de perspectivas que se cruzam. De um lado, temos na história, no percurso e nas composições de Itamar, a presença forte de sua ancestralidade; ancestralidade africana, o que pede um olhar para esta mitologia em busca dos orixás/deuses que influenciaram arquetipicamente na composição da obra. Por outro, a obra também traz aspectos que podem ser abordados arquetipicamente a partir da perspectiva da mitologia grega. Diante disso, trago uma compreensão mais ampla que contemple ambas as mitologias, africana e grega, assim como me parece que a obra invoca, ressaltando que esse não é um texto religioso, mas sim psicológico.
A psicologia arquetípica tem como base a perspectiva mitológica no trabalho com a psique. Dentro do campo mitológico encontramos as imagens que tanto nos interessam para o estudo e ampliação das questões psicológicas. Segundo Barcellos, “aquilo que é chamado de pensamento mítico, chamamos de realidade psíquica na abordagem da psicologia.” (Barcellos, 2022: 31)
Os mitos nos oferecem imagens, imagens arquetípicas, nosso primeiro dado psicológico, ao entendermos que “imagem é psique” (Jung, OC 13, §75). Ao encararmos as imagens, encaramos os deuses e a trama de relações que se estabelecem como uma encenação mítica, o que nos permite reconhecer nossa existência concreta como metáfora.
A pergunta psicológica utilizada como método de investigação seria: Quem? Perguntar por quem na obra musical de Itamar Assumpção seria uma forma de abrir seu campo mítico, anímico, identificando seus deuses, escutando suas vozes. Trabalho instigante pensar nos deuses envolvidos na criação de uma obra de tão pouca repercussão popular e tanta repercussão anímica.
Os deuses se dão ao imaginarmos outras formas de respondermos ao que, em nós é necessidade, seja de amar, de criar, ou de sofrer. Outras formas, outros posicionamentos: no plural. Essa ideia de psique concebe que qualquer evento psicológico pode ser visto através de vários pontos de vista, de diferentes perspectivas e que esses pontos de vista tem uma base arquetípica: uma psique politeísta que, como coloca James Hillman, estaria “menos em função de uma confissão religiosa e mais em função de uma necessidade psicológica” (Hillman, 2010: 35).
Pois bem, é desse imaginário politeísta a perspectiva escolhida para falar sobre Itamar Assumpção e sua obra musical: imaginar a obra como um cenário mítico, indagando pelos deuses, identificando as forças arquetípicas que se deram e estão na obra; uma tentativa de aproximação.
Encarar a obra como uma trama, onde as coisas foram tecidas, arranjadas em estilos específicos, ao modo dos deuses e seus entrelaçamentos, lembrando Vernant quando diz: “os deuses, em suas relações mútuas limitam-se necessariamente uns aos outros, ao mesmo tempo que se completam.” (Vernant, 2006: 4). Ao buscar pela psicologia na mitologia, adentramos mais profundamente em direção a uma abordagem arquetípica da psicologia, prisma que utilizarei nessa reflexão.
Como para muitos, a mim também Itamar tocou profundamente. Com sua presença, sua poesia e seu modo livre e inovador de fazer música. A partir desse impacto, uma ruptura. Não fui mais a mesma. Há muitos anos escuto e não canso de escutar seus discos, leio relatos, procuro informações. Agora esse texto surge à procura dos deuses na obra, aos que responderam ao meu olhar. Um recorte, uma tentativa de busca e compreensão mais profunda da trama arquetípica que tece e atravessa essa obra tão diversa, complexa e genial.
Vanguarda paulista: a situação
Começo trazendo a localização histórica do início da obra musical de Itamar Assumpção. O contexto histórico no qual as coisas acontecem nos fornece também pistas psicológicas sobre essas coisas, nos revela significados psicológicos essenciais. Dessa forma, localizar o momento histórico para além dos fatos, nos coloca diretamente na realidade psicológica daquele momento, na alma daquele tempo, o que seria bastante profícuo no sentido de pinçar sua essência de dentro de um padrão arquetípico.
Portanto, parece ser importante partir do contexto histórico. A situação nos conta de um momento de transição na produção de música popular brasileira na cidade de São Paulo. Uma interferência na cena musical da cidade.
Era início da década de 80, jovens compositores envolvidos no meio universitário chegam com propostas musicais inovadoras e bastante diferentes, o que despertou a atenção da imprensa que chamou de movimento o que, a princípio, eram atividades isoladas de compositores: a chamada Vanguarda Paulista. Com esse rótulo, a mídia procurava aglutinar artistas de estéticas e trabalhos diferentes.
A Vanguarda Paulista caracterizou-se por uma movimentação cultural, longe de ser um movimento único, coerente, homogêneo. As propostas estéticas apontavam para a diversidade da produção artística interrompida pelos anos de repressão política que o país estava deixando bem lentamente para trás.
Historicamente era um momento político pós-ditadura e os anos de 1970 e 1980 foram marcados pelo processo de abertura política e redemocratização. A questão envolvia a indústria fonográfica que, bem consolidada durante a ditadura militar, em 1980 entrava em um período de retração e estagnação. Se a política das gravadoras brasileiras já era conservadora, com essa mudança, torna-se mais refratária à absorção de novos nomes e propostas musicais entendidas como financeiramente “arriscadas”. Assim, o mercado se fechava para novos músicos que não figurassem entre os grandes da MPB, ou que rejeitassem o roteiro imposto pelas gravadoras ou estações de rádio e TV.
Diante da situação com a indústria fonográfica, o “momento independente” passa a ser a tônica na qual preponderava o compromisso com a novidade no cenário musical da cidade de São Paulo. Ghezzi relata:
O que os condensou foram as dificuldades comuns referentes ao campo da produção fonográfica. Assim, ser um independente nos anos 80 era fazer parte de um grupo de artistas que mantinha relações diferenciadas do que então era norma com produtores, selos e gravadoras. Ser um independente, à época, significava não fazer parte (voluntária e involuntariamente) do cast de uma grande gravadora – geralmente transnacional – e, com seus próprios meios e recursos, viabilizar a produção de um compacto ou até mesmo de um Long Play (Ghezzi, 2003: 100)
Mas algo a mais estava em jogo. O caminho independente não se tratava apenas de uma saída para a questão do fechamento da indústria ao componente novo, existia uma questão ideológica. Como coloca Laerte Fernandes deOliveira:
No ideário do período, expressões em voga como alternativo, independente, experimental, marginal, vanguarda, dessacralização dos espaços culturais, ser contra o sistema, resistência cultural, etc., davam uma espécie de sustentação ideológica para a existência e para o êxito de tais produções e da ambientação criada. (Oliveira, 2002:61).
Ser independente era uma estética, e diante do cenário que se apresentava, a produção independente também era um caminho desejado por parte daqueles que queriam a subversão do estatuto da produção cultural no país, uma questão de postura diante da cultura. Segundo Holanda:
Esses grupos passam a atuar diretamente no modo de produção, ou melhor, na subversão de relações estabelecidas para a produção cultural. Numa situação em que todas as opções estão estreitamente ligadas às relações de produção definidas pelo sistema, as manifestações marginais aparecem como uma alternativa, ainda que um tanto restrita, à cultura oficial e à produção engajada vendida pelas grandes empresas. (Holanda, 1992:96)
A atitude contracultural se aliava à questão do fechamento da indústria fonográfica, sendo a produção de música desse período uma resposta crítica e criativa às questões enfrentadas pelos novos artistas naquele momento. Como coloca Fenerick, “As propostas estéticas apresentadas pela Vanguarda Paulista resolveram criativamente (e criticamente) os impasses musicais colocados em seu tempo” (Fenerick, 2007: 22).
O teatro Lira Paulistana foi o centro aglutinador desses artistas, um espaço para apresentações de peças teatrais, shows de cantores e bandas da cultura alternativa. Tornou-se um espaço de reunião e encontro de pessoas que consumiam diversas formas de manifestação artística, além de um ambiente que oferecia uma gama de espetáculos, shows, exibição de filmes que não entravam em circuito comercial nos cinemas e atividades gráficas, como impressões de livros e histórias em quadrinhos.
Entre os artistas independentes envolvidos no movimento da Vanguarda estavam Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Na Ozzetti, Luiz e Paulo Tatit, Suzana Salles, Cida Moreira, Nelson Ayres, Jorge Mautner, Paulo Caruso, Língua de Trapo, Premê, Rumo, Paulo Barnabé, Lanny Gordin, entre outros. Um grupo que levantava muitas críticas em relação à cultura, tinham a independência e a liberdade como base ideológica e traziam em suas composições a experimentação e a performance, o que constituía uma estética muito particular. Itamar Assumpção aparece como um representante importante desse momento.
Antes de chegar em São Paulo. Itamar já participava de festivais universitários de teatro e música em Londrina. Foi Na Boca do Bode, festival londrinense de música digno de experimentos poéticos, que, em 1973, Itamar Assumpção apresentou uma de suas primeiras músicas. Em outubro de 1979, já em São Paulo, os proprietários do teatro Lira Paulistana, Wilson Souto e Chico Pardal, ouviram Itamar cantar em um festival de música da Vila Madalena e se interessaram em produzir um disco do artista. Em 1981 foi gravado o primeiro disco de Itamar, Beleléu, Leléu, Eu, sem suporte financeiro e com a participação ativa do músico, um caminho sem volta na história da música popular cantada. O disco foi lançado pelo selo Lira Paulistana. Era o início da sua produção musical gravada, o que estou considerando nesse texto como o início da obra.
Ele aparece como pilar da nova música produzida em São Paulo, nesse contexto de contracultura e inovação do cenário musical da cidade. Ele trazia a novidade, como relata Patrícia Palumbo:
Eu tenho novidade! A novidade vem da informação, sem informação é impossível. Eu não seria Itamar Assumpção se não tivesse conhecido o Arrigo, é nesse sentido que eu estou falando. Mas não é só conhecer o Arrigo como compositor, é compreender a música dele. Antes de terem entendido o Arrigo, já falavam: “Olha, isso aí não dá”. Porque realmente dá trabalho, o novo dá muito trabalho, o novo está ligado a tudo. O Arrigo está ligado a tudo, à vanguarda que conhece Proust e Orlando Silva. (Assumpção apud Palumbo, 2002: 33)
A linguagem das composições trazia o contraste entre o experimental e o popular. Segundo Arnaldo Antunes:
Itamar Assumpção expandiu os limites da canção, com novos procedimentos (compassos irregulares, frases atonais, incorporação das inflexões da fala no canto, dissonâncias, mistura de gêneros, formações instrumentais inusitadas) que, conjugados ao apelo de melodias certeiras, com algo de reggae, toada ou moda de viola, e de um swing arrebatador, fizeram-no encarnar o contraste entre o popular e o experimental. (Caixa Preta, 2010)
Itamar trazia a novidade conectado ao passado e a seus antepassados, buscando através da liberdade, a autenticidade de sua música. Descendente de africanos, cresceu ouvindo samba, participando de rodas de batuque de umbigada (dança tradicional brasileira com raízes na cultura afro-brasileira) e batuques de terreiro. Bisneto de escravos angolanos, seu pai era pai de santo de terreiro de candomblé. O pai tocava os pontos do terreiro e ele tocava atabaque nos rituais. Itamar trazia o ritmo plasmado no sangue.
Sobre essa primeira formação musical de Itamar, Garcia aponta:
Segundo Maria Betânia Amoroso, as referências musicais mais antigas de Itamar estavam associadas às lembranças do seu pai, Januário de Assumpção, que era pai-de-santo, peça chave no comando de um terreiro de candomblé na cidade de Tietê (…) no qual Itamar tocava atabaque. Ou seja, as referências mais antigas estavam associadas às lembranças do pai e ao primeiro palco que Itamar pisou, o terreiro. Para Amoroso, em síntese, a música encantatória, como ritmo forte marcado pelas batidas e capaz de fazer o corpo despertar para o transe, era a sua base musical, e sobre essa base ele iria construir uma obra inteira (Garcia, 2015:17)
Itamar era autodidata, ouvinte de rádio e além dessa primeira escuta, dos batuques do terreiro e da umbigada, trazia referências musicais do samba, do blues e do reggae, de artistas como Jimi Hendrix, Bob Marley, Hermeto Pascoal, Elis Regina e Paulinho da Viola.
Logo se entende a importância de Itamar no contexto da Vanguarda: ele chega para inovar o som e a palavra. Agudizar os sentidos. Exaltar os ânimos. Despertar almas cansadas. Afirmar posições. Revelar beleza na atonalidade. Inventar vinhetas e tudo mais que vier na veneta. E acima de tudo, inaugurar um estado de liberdade às composições. Excêntrico, sintético, teatral, poético, Itamar persegue a liberdade, colocando sua linguagem à serviço de construir uma obra completamente singular, às próprias custas. Sob a soma das penas.
A Vanguarda, sem dúvida alguma, marca um tempo de inovação, preenchido de valores como liberdade, experimentalismo, independência e contracultura. Traz o componente novo na fronteira com o experimentalismo dentro de um movimento marginal, nada convencional, rompendo com os moldes estabelecidos. É nessa fronteira entre o popular e o experimental, entre o conservador e o transgressor, entre a repressão e a liberdade em compor que a Vanguarda se localiza. Nela observa-se um atravessamento bem característico, alterando o modo de se fazer arte na cidade de São Paulo, um atravessamento arquetípico. Essa passagem tão bem caracterizada, esse modo de transitar, de atravessar, me parece bem ilustrativo da condução de Hermes. Mas poderia ser de Exu. Vejamos.
Exu e Hermes: mitologias do atravessamento
Hermes é conhecido como o mensageiro dos deuses. É um deus fronteiriço, está sempre nas fronteiras, portanto é um deus marginal. Veloz, astuto, ardiloso. Atua na comunicação entre os deuses e os mortais, assim como guia as almas dos mortos para o submundo. Mediador pela linguagem, traz um tipo de comunicação que é paradoxal, não linear e com muitos níveis de sentido. É uma figura crucial na compreensão das transições e dos limites.
Sobre essas qualidades de Hermes, Vernant descreve:
Não há nele nada fixo, permanente, estável, circunscrito nem fechado. Ele representa no espaço e no mundo humano, o movimento, a passagem, a mudança de estado, as transições, o contato entre elementos estranhos. Na casa, o seu lugar é junto a porta, protegendo a soleira, afastando os ladrões porque ele é o próprio ladrão. […] Aquele para quem não existe fechadura, nem cerca, nem fronteiras: o Passa-Muros, que o Hino a Hermes nos mostra “resvalando obliquamente através da fechadura, semelhante a brisa do outono como nevoeiro”. (Vernant,1990:192)
Exu é o orixá-entidade cultuado nas religiões africanas e afro-brasileiras, no candomblé e na umbanda. Uma figura múltipla, multifacetada, controversa, mediadora, guia e guardião dos caminhos, o senhor dos caminhos. Segundo Da Silva:
Exu pertence à categoria dos tricksters, que designa pessoas, divindades ou seres míticos que geralmente questionam, invertem ou quebram regras de comportamentos. Por isso Exu é visto também como trapaceiro, brincalhão, esperto ou malandro. É tido como o senhor dos processos de fertilidade e cultuado sob a forma de um falo ereto em lugares públicos localizados na frente das casas, nos mercados e nas encruzilhadas (Da Silva, 2019 :24).
São senhores das passagens, muito requisitados para abrir caminhos, “ajudar na ascensão material ou espiritual, “abrir porteira”, “arrebentar portão de ferro”, decidir que caminho seguir quando se está numa “encruzilhada da vida” (Da Silva, 2019: 69).
Tanto Exu quanto Hermes compartilham a capacidade de operar nos limiares, entre o conhecido e o desconhecido, o familiar e o estrangeiro, a ordem e a desordem. A Vanguarda foi um marco de transição na música feita em São Paulo, marcada por um espírito de travessia, transgressão e complexidade muito particulares, trazendo à cena uma nova abordagem de experimentação e ruptura. Além das composições das canções que combinavam elementos eruditos com populares, traziam a junção da tradição com inovação, com um toque de ironia e sagacidade. É possível imaginar a Vanguarda sob a influência arquetípica tanto de Exu, como de Hermes.
Itamar Assumpção inicia sua obra musical gravada em São Paulo nesse momento fronteiriço, e é ali que a obra transita e começa, o que faz com que se possa localizar na fronteira, uma primeira imagem da obra. A imagem da fronteira coloca a obra como divisória, como se a mesma fosse um marco e paradoxalmente, uma divisa a ser atravessada.
Foram inúmeros desafios para que conseguisse desenvolver sua obra nesse contexto histórico, um caminho de encruzilhadas. A encruzilhada é uma imagem marcante nesse percurso e foram muitas delas: o fato de ser um artista negro produzindo música no Brasil, de ser músico de Vanguarda, o posicionamento da indústria fonográfica frente ao seu jeito de compor.
Arrigo Barnabé, em entrevista para o documentário Daquele Instante em Diante (2011), nos conta: “Eu lembro de Itamar ir em gravadora, (…) e os caras falavam: ‘você não tem ponto de umbanda?’ Queria que ele gravasse disco de ponto, queria que ele gravasse disco de samba”. Esse depoimento retrata a dinâmica do mercado brasileiro, seu processo de estereotipagem, a limitação de espaços. Na encruzilhada, surge uma ideia de caminho e era preciso (en)caminhar.
Fronteiras e encruzilhadas: dentro de uma perspectiva mítica, essa localização é muito interessante. Esse lugar interessa aos deuses, a alguns deles.
Ao tratar da obra de um artista como Itamar Assumpção, que trazia a ancestralidade como referência em suas composições, dentro de um caminho de muitas encruzilhadas, fica quase impossível não pensar na presença de Exu: é o que guarda e abre os caminhos, resolve demandas, é caminho; através dele a vida se movimenta. Na mitologia africana, a encruzilhada representa o local onde podemos encontrar Exu, ali também os ebós (oferendas) são oferecidos. No mito, a encruzilhada foi dada a Exu por Oxalá. De acordo com Prandi:
Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, nem artes, nem missão. Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro. Então um dia passou a ir à casa de Oxalá […] na casa de Oxalá, Exu se distraia, vendo o velho fabricar os seres humanos. […]Exu ficou na casa de Oxalá por dezesseis anos prestando muita atenção na modelagem e aprendeu como Oxalá fabricava os seres humanos […] Exu não perguntava. Exu observava. Exu prestava atenção. Exu aprendeu tudo […] Um dia Oxalá disse a Exu para postar-se na encruzilhada por onde passavam os que vinham à sua casa. Para ficar ali e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda a Oxalá. […] Exu tinha aprendido tudo e agora poderia ajudar Oxalá. Exu fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo. Assim quem viesse à casa de Oxalá, teria que pagar alguma coisa a Exu. Quem estivesse voltando, teria que pagar alguma coisa a Exu. […]. Exu trabalhava demais e fez ali sua casa, ali na encruzilhada. Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa. Exu ficou rico e poderoso. Ninguém pode mais passar pela encruzilhada, sem pagar alguma coisa a Exu. (Prandi, 2001:40)
É na ideia de encruzilhada que também diversos imaginários se encontram, espaço relacionado à metáfora do movimento e do atravessamento de imagens. E é nesse lugar que Exu e Hermes, deuses de culturas diferentes, se encontram, se atravessam, se embaraçam e se confundem, principalmente na função de mensageiros, guias, mediadores e na qualidade de paradoxais, controversos e ligeiros, o que muitas vezes pode gerar dúvida se quem passou foi um ou outro.
Exu e Hermes são ágeis e não tem um domínio fixo, estão sempre nos caminhos. A encruzilhada foi dada a Exu. Nos limites, limiares, nas fronteiras transita Hermes. Claro que há diferenças entre uma fronteira e uma encruzilhada, mas ambas indicam algum limite, são limiares. Ambos atravessam e guiam: Exu é orixá que abre caminho e guia, Hermes é o condutor de almas. Diante de uma questão aparentemente metodológica, propriamente uma encruzilhada, escolhi por contemplar os dois respeitando os lugares embaraçados, misturados, onde falar de um pode remeter ao outro. Uma tentativa de transitar entre paradoxos.
Dessa forma, abro espaço para as mitologias que tratam do que chega por atravessamento, e de como se dá esse movimento, sua linguagem e comunicação, abordando o tema a partir do par Exu-Hermes, como se o par remetesse a um tipo específico de figuração arquetípica referente ao movimento que se dá entre fronteiras e através delas. Como se as duas forças ilustrassem um estilo único e específico na forma de atravessar. É nessa dimensão do movimento, do atravessamento e da comunicação que os dois se encontrarão ao longo desse texto. Vamos à obra.
Nego Dito e a marginalidade
Na fronteira com o compositor, surge o personagem. Nego Dito, mais precisamente Benedito João dos Santos Silva Beleléu, é a emblemática figura, o primeiro personagem, a primeira imagem do percurso de Itamar como compositor. Aparece em seu primeiro disco, Beleléu, Leléu, eu, lançado em 1980 pelo selo da Lira Paulistana. Ao criar Nego Dito, era o artista quem surgia. O personagem põe Itamar no palco, de forma que poderíamos indagar: quem criou quem?
Nego Dito tem voz grave, um black navalha casca grossa cheio de ironia, briguento, um marginal perseguido pela polícia. O personagem está nos dois primeiros discos de Itamar, Beleléu Leléu, Eu (1980) e Às próprias custas (1981). Itamar o apresenta no primeiro disco, está bem descrito na música Nego Dito1: “Tenho o sangue quente/Não uso pente, meu cabelo é ruim/Fui nascido em Tietê/Pra provar pra quem quiser ver e comprovar/Me chamo Benedito.”. Um ser indignado, encrencado e um tanto colérico.
Itamar sofreu todo tipo de preconceito e discriminação ainda quando morava em Arapongas, no Paraná, e não foi diferente quando chegou em São Paulo. Foram muitos problemas com a polícia por apresentar “aparência suspeita”, o que lhe indignava cada vez mais. Muito provavelmente, as primeiras composições do artista refletiam sua experiência na cidade. Como relata Anelis Assumpção, filha caçula de Itamar, “acho que no começo, quando ele começou a compor, ele colocava mais as informações de um ser indignado, que é como ele se sentiu quando chegou aqui”. (Velloso, 2011). Itamar, através de Nego Dito, dá voz a uma figura indignada, de humor ácido e um tanto irônica, para falar da experiência de um homem negro no Brasil. Apesar do artista nunca ter se colocado como militante das questões raciais, elas estavam presentes em suas composições.
O disco Beleléu, Leléu, Eu,apresenta essa simbiose entre o artista e o personagem, onde Beleléu parece ser mesmo Itamar Assumpção. Luiz Tatit explica:
O eu-beleléu contribuiu, sem dúvida, para uma associação direta entre a sonoridade do disco com seu protagonista. A negritude, a marginalidade musical, a loucura descrita em muitas passagens das letras, tudo isso convoca a figura magra e enigmática do autor, o qual, por sua vez, nada fazia para dissociar o personagem do ser em carne e osso. A complexa rítmica dos arranjos denunciava as origens africanas; a singularidade das soluções musicais, embora fosse imediatamente reconhecida pelo público fiel, constituía uma barreira a mais para o seu ingresso na produção em série do mainstream. Por fim, os desatinos explícitos de Beleléu misturavam-se às idiossincrasias do compositor, pouco ou nada feito a concessões. (Tatit, 2006:21-34)
Através de Beleléu, Itamar nos apresenta a trama de um personagem marginal em torno de suas façanhas. Uma marginalidade experimental que desordena para criar ritmo, cheia de ticticás, blá-bláblás, lero-leros, que dissolve palavras, tudo bem marcado pela sonoridade grave do contrabaixo, é assim que o artista inventivamente vai marcando seu primeiro disco. É nesse disco que a ideia de marginalidade se acentua, e além do personagem, vai margeando o caminho independente, norteador da obra.
Em 15 de novembro de 1982, foi gravado ao vivo o segundo disco do artista, Às Próprias Custas, título sui generis e talvez um tanto irônico, na sala Guiomar Novaes, em São Paulo. Nele o artista com a banda Isca de Polícia, interpretam músicas de Wally Salomão e Jards Macalé, Geraldo Pereira e Jorge de Castro e Adoniran Barbosa, assim como músicas autorais. Ali Beleléu ainda está presente e destaca-se na Denúncia dos Santos Silva Beleleú2, como réu, uma delícia de gravação performática com as mulheres da banda.
Atravessar de forma marginal está arquetipicamente dado. Diz respeito aos deuses que transitam nos limites, divisas, nas fronteiras entre mundos. Nego Dito atravessa Itamar como quem desordenadamente dá caminho e sentido para a obra, destranca a porta a ponta pé, imprimindo estilo e assim, inaugurando o caminho independente da obra.
Através do personagem, Itamar Assumpção nos apresenta uma trama desordenada dentro de uma ideia de obra musical muito bem ordenada. Essa ambiguidade do caos dentro da ordem, da ordem no caos, da des(ordem) dentro do movimento, assemelha-se muito a uma dinâmica que podemos encontrar em Exu. Nego Dito é uma figura um tanto trickster e transgressora e parece gostar de uma confusão. Jorge Amado considera Exu um “amigo do bafafá”, ele diz assim:
Exu come tudo que a boca come, bebe cachaça, é um cavaleiro andante e um menino reinador. Gosta de balbúrdia, senhor dos caminhos, mensageiro dos deuses, correio dos orixás, um capeta. Por tudo isso, sincretizaram-no com o diabo; em verdade ele é apenas o orixá em movimento, amigo de um bafafá, de uma confusão, mas, no fundo, excelente pessoa. (Fundação, 2014)
Apesar de aparecer somente nos dois primeiros discos, Nego Dito parece transmutar-se em outras poéticas ao longo da obra, até o aparecimento de outro personagem, Pretobrás, em seus últimos discos.
Chavão abre porta grande
Itamar Assumpção teve inúmeras dificuldades para realizar o que queria com sua música. Ele trazia a novidade e “o novo dá trabalho”, como ele mesmo dizia. O caminho convencional não era uma possibilidade, a não ser que Itamar cedesse às exigências das gravadoras. E ele não cedeu, fez poucas concessões para ser aceito e reconhecido. A maioria de seus discos foi feito de forma independente, a não ser um, seu quarto disco Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava (1988), que saiu pela Gravadora Continental.
Queria o sucesso popular, mas não a qualquer custo. Em seu terceiro disco, Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim (1985), que traz composições inspiradas na experiência de viver na cidade de São Paulo, ele canta Prezadíssimos Ouvintes 3 onde fala sobre o desejo e as dificuldades em “cantar na televisão”:
Prezadíssimos ouvintes/pra chegar até aqui/ Eu tive que ficar na fila/Aguentar tranco na esquina/E por cima lotação […] já cantei no galinheiro/Cantei numa procissão/ Cantei ponto de terreiro/Agora eu quero cantar na televisão/Meu irmão/o negócio é a seguinte/É pura briga de foice/Um jogo de empurra-empurra/Facão, tiro, chute, murro/ Chamam mãe de palavrão.
Com uma personalidade um tanto complexa e, talvez por isso genial, Itamar fez as coisas a seu modo, o que dificultou a chegada ao sucesso popular. Segundo informações de parceiros musicais, o sucesso bateu na porta dele muitas vezes e ele não atendia. Serena Assumpção, filha mais velha do compositor, comenta sobre isso: “minha mãe ficava puta porque ele deixava de fazer um show pra ganhar uma grana, pra ficar lá batalhando os discos e pensando naquelas músicas e no conceito das coisas.” (Velloso, 2011).
O caminho escolhido por Itamar foi o da liberdade, construiu e lançou uma obra completamente autêntica. Um caminho penoso, como ele mesmo coloca: “Nunca vi uma gravadora, assim, interessada em me gravar […] é um caminho que tá estabelecido, que paga o ônus da independência mesmo, mas que ônus?” (Velloso, 2011)
A escolha pelo caminho livre, independente e, dessa forma, marginal, nos conta sobre um tipo de ideia de caminho, sobre como caminhar. Podemos encontrar a localização dessa ideia nas imagens tanto de Exu, como de Hermes. Ambos transitam nas margens, nas fronteiras e, enquanto Exu apresenta-se como “sujeito da revolta e da insubordinação” (Da Silva, 2019:55), Hermes personifica a ideia de liberdade, como diz Barcellos, “é da sua natureza escapar”, não se deixar prender. Ele é o “livre”, “liberto”, não se prende a nada, ele é a própria personificação da liberdade”. (Barcellos, 2019: 88)
A imagem da fronteira, dos limites é curiosamente retratada em algumas músicas de Itamar, através da imagem da porta. Nego Dito destranca a porta a ponta pé. Em Chavão abre porta grande 4, do disco Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim (1985), ele canta: “Não adianta vir /Arreganhando os dentes pra mim / Porque sei que isso não é um sorriso / É, canto logo existo / Canto enquanto isso / Canto enquanto posso, o quanto posso / Entre o sim e o não existe um vão / Lembre-se /Chavão abre porta grande.”
É na porta que são colocados os assentamentos para Exu, como forma de proteger o espaço e as pessoas que ali vivem, além de abrir caminhos e facilitar a comunicação entre o mundo espiritual e material. Alguns nomes de Exu que se relacionam a essas funções são: “Exu Abre Caminhos”, “Exu Tranca-Ruas”, “Exu-Porteira”, “Exu Sete Cadeados”. (Da Silva, 2019:55)
A porta também é fronteira, um limite. Gustavo Barcellos em seu livro Mitologias Arquetípicas (2019), fala sobre Hermes como o deus da porta, o “Ronda Portas”, justamente por ser a porta esse limite entre a entrada e a saída. Da porta para fora, o caminho é de Hermes. Vejam:
Desde que ele é o deus das portas, ele é o deus dos limites, dos limiares, das bordas […] ele rege esses limites, rege as cercas, os muros e as fronteiras. Mas, ao mesmo tempo que ele os rege, como aquilo que faz com que os limites possam existir, ele é também o que anula esses mesmos limites, porque ele atravessa as fronteiras. Ele é a energia que nos permite burlar as fronteiras; ele nos apresenta a possibilidade ou mesmo a necessidade de furarmos as barreiras, atravessarmos as portas, os muros, os limites. (Barcellos, 2019: 97).
O jeito hermético de atravessar fronteiras é anulando, burlando limites. Ao mesmo tempo que rege e evidencia limites, ele os atravessa. Hermes é o que transita entre mundos e traz a mensagem, tem afinidade com o submundo, se relaciona com o reino da morte. Gosta de paradoxos, move-se livremente pelos contrários e desta forma, dissolve oposições. Hermes não é um deus heroico, não é arrebatado nem atraído pela morte. Segundo Kerényi: “No mundo de Hermes, a própria morte tem outra face […] Hermes atuando em seu próprio mundo refere-se a alternativas para a vida, à dissolução de oposições mortais, à secreta transgressão de limites e leis” (Kerényi, 2015: 118).
Itamar deu de cara na porta algumas vezes. A porta que queria abrir estava fechada. Com quantos “não” se faz um sim? Dentro de seu próprio universo, cria o próprio caminho. Da aparente ausência de caminho, ele evoca o novo nascimento. Entre o sim e o não, existe um vão.
A noite e a linguagem poética
Através das imagens de Exu e Hermes, podemos imaginar o tipo de caminho que atravessa e costura a obra.Presentes como ideia, ambos também apresentam alguns de seus atributos na obra. É o caso aqui dos temas da noite e da linguagem, este último aparecendo ao longo de toda obra.
Sampa Midnight – Isso não vai ficar assim (1983) é o terceiro disco do artista, nitidamente um disco noturno, inspirado na cidade de São Paulo. O disco tem algumas canções onde o compositor passeia pela escuridão, ouve vozes na noite, se relaciona com assombrações, como é o caso de Sampa Midnight5 e E o Quico? 6”: Em Sampa Midnight, música que leva o mesmo nome do disco, Itamar e dois chegados saem pela noite de São Paulo e são “assombrados por três seres transparentes, berrando: não somos gente”:
Sampa Midnight/Eu assessorado de mais dois chegados/Bartolomeu, Ptolomeu/Partimos para comemorar/Não lembro o que/Numa boate/Escabrosa noite/Deu Blackout na Paulista, breu no Trianon/Cadê o vão do museu/Meu Deus do céu/Que escuridão!/Três seres transparentes/Baixaram não sei de onde/Traziam cortantes tridentes/Incandescentes/Nas frontes, três chifres/Falavam rapidamente com/Gestos intermitentes/Simultaneamente sons/Estridentes incríveis […] Um trio instigante desceu do céu num instante/chegou intimando a gente /e berrando: “Não somos gente.”
Em E o Quico?:
Eu andava, certa noite, dia 13, sexta, triste/Sozinho desnorteado, perdido, cabreiro, besta/Resolvi sair por aí chutando pedras/Contando estrelas/Cometas/Por dentro, mil pensamentos/Perguntas do tipo: Que vida é esta? / Uma voz dentro da noite/Respondeu-me como assombração: /isso é tudo que te resta.
Já no segundo disco Às próprias custas S/A (1982), haviam composições onde Itamar é assombrado pelos espíritos da noite: Noite de Terror 7 e Oh! Maldição8.
Walter Otto diz coisas interessantes sobre a relação de Hermes com a noite:
Hermes é realmente um espírito da noite […] O ato de guiar por caminhos tenebrosos, já nos faculta uma plena compreensão do vínculo de Hermes com os espíritos dos mortos, o reino dos mortos e seus deuses. De noite os mortos vagueiam pelos caminhos, de noite se ajuntam nas encruzilhadas (Otto, 2005: 105).
Hermes vestindo o capuz de Hades, o deus do submundo, torna-se invisível. Ganha invisibilidade, o que evidencia sua natureza noturna. Hermes é o próprio espírito invisível da noite, o “vigia da noite”, como consta no Hino Homérico. A noite como esse campo misterioso e silencioso, animado e inanimado, desperto e adormecido ao mesmo tempo. Onde as coisas sussurram, surgem de súbito. Perigo e proteção, susto e alívio: a noite tem esse caráter ambíguo, hermético. Itamar foi rondado por esse imaginário, principalmente em suas primeiras composições, habitado por vozes de dentro da noite que se comunicaram, se apresentaram e responderam a ele.
A noite também aparece como um atributo de Exu, aquele que transita entre os mundos visível e invisível. Alguns nomes de Exu fazem referência a pontos de passagem ou limítrofes (encruzilhada, porteira, rua), a espaços ou estados de intercessão entre o mundo dos vivos e os mortos (cemitério, catacumba, caverna), assim como a estados intermediários de incidência de luz (sombra, madrugada). O horário da meia-noite está muito associado à figura de Exu como “um horário de transição dos períodos, que marca o fim de um dia e o começo do outro” (Da Silva, 2019: 67). Á meia-noite, também “Seu Tranca-Ruas, abre gira e corre mundo”, segundo a cantiga: “O sino da igrejinha/Faz belém, blém blóm/Deu meia noite, o galo já cantou/Seu Tranca-Ruas /que é o dono da gira/Oi corre gira/que Ogum mandou”.
Sampa Midnight – isso não vai ficar assim, é um disco que também traz composições de Itamar em parceria com poetas. É o caso de Navalha na Liga9, com letra de Itamar e Alice Ruiz e Vamos Nessa 10, com Paulo Leminski. Em Tetê tentei 11, aparece a inquietude do poeta à procura de palavras, temas, estilos e notas, metaforicamente terminando por “fazer mímicas”. Na música “Z da Questão, Meu Amor 12”, uma sincera declaração de amor à sua esposa Zena, Itamar declara “sou poeta, não”. Ele não se considerava poeta e foi apelidado pelos seus parceiros de composição de “grande poeta não”. Como coloca Leide Moreira Jacob, “Sampa Midnight é assim, um cd de outra dimensão, para ser ouvido e entendido” (2010, Caixa Preta). A noite é também o lugar da poesia e parece ser a partir desse disco que Itamar partiria, de fato, para outra dimensão, uma dimensão mais sensível, profunda, mais poética.
Seu quarto disco, Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava! (1988), foi o primeiro a sair por uma gravadora, a Continental. A música que abre o disco, Sutil 13, já dava indícios de alguma mudança no estilo das composições. “Algo me diz pra ser sutil, não faço ideia mas me resta um caminho”. Um disco que apresenta uma mudança no uso da linguagem nas composições, algo mais sutil, de natureza poética, começava a se apresentar.
Uma oferenda poética, um ebó de uma leveza quase intocável. Um disco marcado pelas andanças de um espírito, do Espírito que canta14, do espírito que se reconhece, como em Filho de Santa Maria 15 : “hoje eu saí lá fora, como se tudo já tivesse havido. Já tivesse havido a guerra. A festa já tivesse havido. E eu fosse puro espírito”. Em outras canções, um terremoto intergaláctico e um maremoto, chacoalhando as estruturas das canções de amor. É também nesse disco que Itamar canta Zé Pelintra 16: “é ele quem abre uma brecha, acende uma mecha no breu. Desaparafusa a rosca, e seu cavalo sou eu”, música que fez em parceria com Waly Salomão.
O disco tem participações de Tetê Espíndola, Alzira E., Na Ozetti e Neusa Pinheiro, com letras em parcerias com Wally Salomão, Alice Ruiz, Regis Bonvincino, Ademir Assunção, Paulo Tovar, pertencentes ao movimento literário da poesia marginal.
Sobre a qualidade marginal, Leminski explica: “Marginal é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem. Marginal, escrever na entrelinha, sem nunca saber direito quem veio primeiro, o ovo ou a galinha”(Leminski, 2002 a:70).
A poesia marginal foi um movimento que surgiu no Brasil na década de 70, contestando os valores tradicionais da literatura e das artes. Os poetas marginais recusavam qualquer modelo literário, de forma que não se encaixavam a nenhuma escola ou tradição literária. Poesia que abusava das aliterações e das rimas, extremamente sonora e talvez mais próxima das canções.
A linguagem poética na obra de Itamar foi invadida por esse imaginário exu-hermético, ambíguo, múltiplo, paradoxal. Assim como Hermes é conhecido por sua esperteza e habilidade em criar significados múltiplos e ambíguos, Exu é dono da palavra, indecidível, fala pelos contrários até que as palavras cansem e não alcancem, traz o dito pelo não dito. É desse imaginário a fluidez linguística e a criatividade radical, gerando a palavra que inova.
A partir do quarto disco em diante, a palavra poética toma a cena. A trilogia dos discos Bicho de Sete Cabeças (1993) apresenta esse momento de renovação de Itamar nos anos 90, através da experimentação de sonoridade e poética na companhia de oito mulheres – as Orquídeas – e outros convidados. Os poemas curtos – as vinhetas – ganham status de letra em arranjos elaborados. Versos repetidos até caírem fundo e então, tudo está dito. Poemas que figuram ao lado de outros, de longas letras, complexas, contundentes. Entre elas, destaco algumas delas: Milagrimas 17, Se a obra é a soma das penas 18, Tua boca 19. Sob a influência de quem escreve à margem, na entrelinha, Itamar nos oferece essa comunicação fronteiriça que revela e aprofunda os sentidos.
A performance a as mulheres
A palavra sintética, complexa, profunda, ganhava corpo através da atuação de Itamar no palco. Nesse ponto faz-se necessário voltar à fronteira e saudar Dioniso. Itamar foi um artista múltiplo: escrevia, cantava e performava. Fez teatro desde muito cedo e trazia consigo uma vasta experiência cênica. Sua forma de compor estava impregnada pelo exercício teatral de encenação e da representação. Tinha uma sensibilidade para cenas e sua obra surge impregnada desse imaginário dionisíaco, onde muitas vezes fica difícil distinguir o autor do personagem, como quando se cria aquela ilusão dissociativa de se estar fora e dentro ao mesmo tempo, ambas as almas lá de uma só vez.
A performance é característica marcante na obra. O artista tinha uma presença dionisíaca forte, causando a quem assistia aos shows uma espécie de estremecimento, um susto, provocados por seu temperamento mutável e visceral. Segundo Marta Amoroso, “Ele virava uma persona, então era um lance de ocupar o espaço que tinha a ver com a experiência de teatro, com a coisa da dança, com o saber que era negão gostoso…O tempo todo era isso, levado às últimas consequências. Chegava no palco, baixava alguma coisa nele.” (Velloso, 2011).
A experiência dionisíaca nos enlouquece. Dioniso é a própria loucura, não como estado patológico, mas a que chega através do êxtase, do entusiasmo (ter o deus dentro de si). A loucura inerente a sair de si, de estar emocionalmente fora, tomado por algo desmedido, algo que desfaz limites.
Assim como Exu e Hermes, Dioniso também é um deus que está nas fronteiras, mas diferente dos dois outros deuses, opera nos limites desfazendo-os. Como Barcellos comenta: “Dioniso rege os limites no sentido de apagá-los, de brincar com eles, de fazê-los desaparecer”. (Barcellos, 2019 :220)
Jung falava sobre Dioniso como “o abismo da diluição passional” (CW12, 2009:118), algo que diz respeito a uma experiência forte, ardente, apaixonada, abismal, que ao ser vivida, dissolveria a singularidade humana na alma primordial. A interioridade psíquica dessa força vital é personificada por Dioniso. Uma força poderosíssima animicamente, que sempre nos propõe um outro caminho de consciência.
Dioniso está interessado em nos mostrar o que não reconhecemos como o “outro” em nós, em anular isso que nos divide, o que causa mesmo um estranhamento pelo caráter ambivalente da experiência. Quando o deus passa com seu cortejo selvagem, nada mais importa saber se é isso ou aquilo. É um deus que não desconhece a morte, e sua transbordante aparição gera um tipo de estranhamento vindo desse mistério, da infinita profundeza da vida que enlaça a morte. Nesse ponto, podemos ver a proximidade de Dioniso com Hades, o deus que personifica a morte, o submundo, ambos responsáveis e relacionados com as transformações profundas da alma. Hades, de certa forma, também é um deus que participa da trama mítica de Itamar.
A música de Itamar Assumpção pode provocar a quem ouve um tipo de estranhamento: uma música atonal, composições que seguem a linha do contrabaixo, com compassos quebrados, paradas bruscas, silêncios e performance junto a poesia, mais um coro afinadíssimo composto por mulheres. A aparição de uma figura falante, da linguagem clara, articulada, brincalhonamente ágil e encantadora encarnada num corpo humano-divino. Reconhecer-se nesse estranho, nesse tipo de loucura, transforma de uma forma bastante radical. Arrisco dizer que a música de Itamar Assumpção é dionisíaca também nesse sentido: no arrebatamento de quem ouve, nessa ruptura que transforma.
Assim como no campo dionisíaco, na composição da obra é fundamental falar da participação das mulheres. Elas ganham destaque no momento em que Itamar se interessa pelo uso da linguagem poética em suas composições. Elas entram quando a poesia se espalha na obra. São as Orquídeas: o criativo backing vocal composto por oito mulheres.
Em seu culto, Dioniso era seguido pelas delirantes dançarinas: as mênades. Walter Otto coloca que o mundo do feminino primordial relacionado a Dioniso se revela “na mulher que nutre e cuida, fascinada pelo milagre da vida universal, onde não vige fronteira entre o humano e o bestial” (Otto, 2006: 163).
Na obra, as Orquídeas são o corpo fértil da composição. Um coro afinado, impregnado de néctar poético, imerso no transe que é cantar o feminino. O néctar das Orquídeas para Itamar era poesia. A escolha por elas refletia a busca pela qualidade poética. Itamar dizia “os homens não iriam dar conta do que queria fazer, era muita poesia”. (Velloso, 2011)
A junção Itamar-Orquídeas gerou uma trilogia de discos: Bicho de Sete Cabeças I, II e III (1993). Neles Itamar canta a beleza aguda do amor espalhado em confusões, confissões, incoerências, devaneios. Misturado a um eco que só as Orquídeas poderiam tonalizar. Um coração absurdo, multifacetado, absorto no universo feminino. Itamar deixou essas sementes todas polinizadas, uma conexão de sutilezas.
Um último ponto: é pertinente ainda, falando de Dioniso na obra, apontar sua proximidade com Exu. Zé Celso Martinez Corrêa, criador do Teatro Oficina, refere em uma entrevista para a revista O Grito!: “Dioniso é um exu, e eu sou um exu das artes cênicas” (2010, Revista O Grito!). Zé Celso explorou bem a fusão dos dois deuses em suas peças, especialmente em As Bacantes (1996). Ele os utilizava como metáforas e presenças reais de forças criadoras que desafiavam normas sociais e propunham uma vivência radical da liberdade e do desejo.
Falar de Exu e Dioniso é também falar de corpo, de corpo em transe. Exu também é o senhor do corpo, Exu Bara (Da Silva, 2019:62). Exu e Dioniso são expressões de uma mesma força: a energia criadora que liberta, provoca e transforma. É nesse ponto, dessa perspectiva, que Exu e Dioniso também se encontram na obra de Itamar.
Ataulfo Alves e Naná Vasconcelos
Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Para Sempre e Agora (1996). Um disco lindíssimo onde Itamar reafirma suas raízes ancestrais, através de um estudo intenso da obra do sambista mineiro negro que logrou bastante sucesso por meio de canções que ficaram marcadas na memória social como Amélia e Laranja Madura. Itamar, ao se dedicar ao estudo sobre as canções de Ataulfo, se aproxima do que compreende ser canção popular e a faz a seu modo. Interfere. Destrincha. Se apropria das canções por admiração.
O disco com Naná Vasconcelos, “Naná Vasconcelos e Itamar Assumpção – Isso vai dar repercussão” (2004), foi lançado um ano depois da sua morte. Produzido por Paulo Lepetit, o disco marca o encontro na ancestralidade, dois homens negros brincando ritmicamente, percussivamente. Serena Assumpção, a filha de Itamar, anuncia no texto do encarte do disco: “Melancolia da vida partida pelo Mar. Partilhada pela Música”.
A junção da percussão do som e da palavra. De um lado as canções urbanas e poéticas de Itamar, do outro a percussão inovadora de Naná Vasconcelos. Um mexendo no som do outro e como diz Naná: “O som dos dois foi modificado pelo som dos dois”.
Um disco com “estrofes coloridas”, como diz Itamar, fato tão perceptível ao se ouvir o disco, a ouvir canções como Cabelo duro 20, Aculturado 21 e Na Próxima Encarnação 22:
Na próxima encarnação/Não quero saber de barra/Replay de formiga não/Eu quero é nascer cigarra/Nascer Tom Zé, Jamelão/Cantar Violeta Parra/Zé Kéti, Duke Ellington/Com banda, orquestra e fanfarra
Itamar assina todas as composições do disco. Um encontro potente de dois homens negros buscando suas liberdades.
Pretobrás
Pretobrás – por que que eu não pensei nisso antes? (1998) foi o último disco lançado por Itamar Assumpção, pelo selo independente Atração Fonográfica, de Wilson Souto, com o qual o músico havia gravado seu primeiro disco Beleléu, Leléu, Eu (1980). São 21 faixas, onde Itamar é bem enxuto nos arranjos, com uma exuberância poética, um disco complexo em originalidade.
O disco atualiza as concepções musicais do artista trazendo novas tecnologias sonoras e de gravação, mostrando o processo de amadurecimento de sua linguagem musical. Nele há composições conjuntas com Alzira Espíndola, Alice Ruiz, Vange Milliet, Paulo Leminski, Sérgio Guardado, Luiz Chagas e Arrigo Barnabé, parceiros antigos de Itamar.
Pretobrás é o último personagem criado por Itamar. Ele explica: “o Pretobrás é um Nego Dito do próximo milênio. O Nego Dito é o começo dos anos 1980, né? E o Pretobrás é isso…ele vem, de vez em quando ele surge, esse personagem”. (Fala proferida no Programa Ensaio, 1999, op. cit.). Uma das canções do disco, leva o nome do personagem, Pretobrás. A letra diz assim:
Quando acordei tava aqui/Entre São Paulo e o mangue/Brasil via M.T.V/Num clipe de bang bang/Nem bem cheguei, me feri/Foi bala na cidade grande/Compondo sobrevivi/Cantar estancou meu sangue/Nasci moleque saci/Daí que eu nunca me entregue/Mando um recado pra ti/Certeza que a noite chegue/Assim que te conheci/Ardi no fogo da febre/Deus sabe o quanto sofri/O resto o cão que carregue/Um belo dia parti/Cumbica Deutschland/Na volta, num duty free/Comprei um bom bumerangue/Sou Pretobrás e daí/Eu rezo cantando reggae/Sou Cruz e Souza Zumbi Paulo Leminski/Mas samba is another bag.
Com mais de uma hora, o disco é uma espécie de caldeirão de experiências e sonoridades, com todos os grandes talentos poéticos e musicais de Itamar. Não é um álbum tão leve, as palavras ganham um lugar de peso, assim como é perceptível um tanto de peso nas palavras e texturas na instrumentação, um álbum cheio de alma. É nele que Itamar canta em homenagem a Elke Maravilha e Arrigo Barnabé, amigos em retratos de beleza esculpidos em palavras.
Um sarcasmo mais acentuado em Cultura Lira Paulistana 23, quando diz “porcaria na cultura tanto bate até que fura”, abrindo o disco para profundidades explícitas: a penetrante Apaixonite Aguda 24, a múltipla Vida de Artista 25, a refinada Dor Elegante 26.
De Nego Dito a Pretobrás, a trama de Itamar atravessou a imaginação da fronteira. Os deuses que ali transitam e que se deram a essa travessia, imprimiram um estilo específico à obra, reimaginando a linguagem, a palavra, o corpo em cena e em transe, sofisticaram modos de autenticidade, de transgressão e de afirmação da proposta ancestral de Itamar para realização de sua obra.
Prezadíssimos ouvintes
Itamar foi diagnosticado com câncer no intestino no ano 2000, passando por cirurgias e quimioterapia. Apesar da doença, continuou produzindo e em 2002 iniciou a gravação do disco com Naná Vasconcelos, fez shows. Os dois últimos discos da trilogia Pretobrás II – Maldito Vírgula (2010) e Pretobrás III – Devia ser proibido (2010) foram gravações de Itamar somadas a colaborações de artistas em canções inéditas que ele não teve tempo de gravar, devido a doença. Dois álbuns de gravações inéditas, muito emocionantes. Itamar Assumpção faleceu em 12 de junho de 2003 aos 53 anos.
Uma obra dedicada a atravessar limites, no sentido mais radical da palavra. Definitivamente o sucesso popular tão esperado não veio enquanto Itamar estava vivo. Alice Ruiz, no documentário Daquele Instante em Diante (2011), diz assim: “Só o belo é aceito imediatamente. Se há um componente novo, é o tempo que vai mostrar isso. Se você tem um compromisso com o novo, você está meio condenado a ser póstumo”. (Velloso, 2011).
Após a morte do artista, seu trabalho reverberou: em 2010 o Selo Sesc lança a Caixa Preta que contém os 12 álbuns do compositor. No ano seguinte foi lançado no cinema o documentário Daquele Instante em Diante (2011), dirigido por Rogério Vellloso, com depoimentos de parceiros, parentes e amigos do artista, além de vídeos de shows do início da carreira aos últimos dias do compositor. Em 2012, o Itaú Cultural lançou um caderno que reúne letras inéditas coletadas em cadernos de anotações de Itamar Assumpção. Em junho de 2015, foi lançado mais um documentário, Reverberações-Itamar Assumpção, com direção de Pedro Colombo e Claudia Pucci. O filme conta com depoimentos dos membros das bandas Isca de Polícia, Orquídeas do Brasil, de outras cantoras e da sua filha, também musicista.
Desde 2020, a obra vem sendo reunida no MU.ITA, o Museu Itamar Assumpção, com tradução em inglês, alemão e iorubá, e cuja missão é amplificar o debate sobre a memória preta brasileira – um espaço inovador e ancestral.
A configuração arquetípica formada pelos deuses aparece na obra através da imagem da fronteira. Exu e Hermes, como bons frequentadores de qualquer alma que queira se arriscar para encontrar caminho, são imagens fundamentais na obra. Emprestaram seus atributos para que Itamar imaginasse corajosamente seu lugar no mundo como artista. Dioniso não ficou atrás e trouxe o corpo anímico entusiasmado para a cena, frente a qualquer fenômeno-limite. No limiar atravessado por Exu e Hermes, Dioniso os segue, mostrando ser possível reconhecermos a obra como estranhamente bela, assustadoramente livre, sensivelmente entusiasmada. Primeiro Exu-Hermes, depois Dioniso. Um atravessamento ágil, incerto, obscuro, livre, que libera uma dimensão da vida estranhamente nova. Múltipla. Uma experiência transformadora: essa é a música de Itamar.
Resta a questão: Exu-Hermes ou Exu e Hermes? A imaginação atravessa fronteiras, o que se deu explicitamente na escrita desse texto. A fronteira cultural separa Exu de Hermes, a forma que os africanos cultuam Exu não é a mesma que os gregos cultuam Hermes. E cada um deles também atravessa e são atravessados por tantos outros dentro de seus respectivos cosmos. Mas a imaginação também rompe fronteiras. É possível imaginarmos os dois deuses como sendo um. Um estilo único e próprio na forma de atravessar, se comunicar e de dizer o que precisa ser dito, pelo não dito, paradoxalmente. O filósofo Umberto Eco, em O pêndulo de Foucault, diz algo a esse respeito: “E sabem onde Hermes está hoje? Vocês o viram junto à porta, chamam-no Exu, este mensageiro dos deuses, mediador, comerciante.” (Eco, 2009:199). Não sei se Itamar se deu conta dessa brincadeira, dessa confusão dos deuses em sua imaginação. Deu no que deu.
Termino com o provérbio iorubá já tão conhecido popularmente: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que somente hoje atirou” (Verger, 2018:84). Itamar vive em qualquer tempo, sua obra resiste!
Anexos
1.NEGO DITO
E o meu nome é
Benedito João dos Santos Silva Beleléu
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Eu me invoco eu brigo
Eu faço e aconteço
Eu boto pra correr
Eu mato a cobra e mostro o pau
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu…
Vulgo Nego Dito, Nego Dito cascavé
Tenho o sangue quente
Não uso pente meu cabelo é ruim
Fui nascido em Tietê
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu…
Não gosto de gente
Nem transo parente
Eu fui parido assim
Apaguei um no Paraná, pá, pá, pá, pá
Me nome Benedito João dos Santos Silva Beleléu…
Quando tô de lua
Me mando pra rua pra poder arrumar
Destranco a porta a pontapé
Me nome Benedito João dos Santos Silva Beleléu…
Se tô tiririca
Tomos umas e outras pra baratinar
Arranco o rabo do satã
Pra provar pra quem quiser ver e comprovar
Me chamo Benedito João dos Santos Silva Beleléu…
Se chamá polícia
Eu viro uma onça
Eu quero matar
A boca espuma de ódio
Pra provar pra quem
Quiser ver e comprovar
2.DENÚNCIA DOS SANTOS SILVA BELELÉU
Beleléu, cortaram a luz lá de casa
Agora sabe o que eu vou fazer?
Eu vou sentar aqui e não vou sair mais daqui
Eu não saio mais daqui hoje
Pode parar de gritar? Saravá!
Deixa comigo
Eu quebro fossa com um terço
Digo o que penso, agito
O meu nome é Beleléu
O que que foi? Que que se passa?
Isso não ficou possessa?
Quem? Tua mulher teve um troço
Possessa? Espumou? Que negócio?
Enroscou, logo enrolou, não deu, Beleléu
Divagou, vagou ao léu, rolou de ponta a cabeça
Hoje aqui você é nosso réu
Eu?
Comporte-se bem, entendeu?
Réu?
Aguarde tua sentença
Mas é tudo cena dela ou é falsa denúncia
Ela sabe tão bem quanto eu
Que o que aconteceu teve nenhuma importância
E apesar de dar nisso que deu
Nenhum de nós dois morreu
Não fez qualquer diferença
Não fez qualquer diferença
Não fez qualquer
É fruta que apodreceu, dançou
Desmontou do céu, caiu
Vício black, feche o bico, fique frio
Silêncio no tribunal
Olha a camisa de força
Redobrem a vigilância
Hoje aqui você é nosso réu
Réu?
Comporte-se bem, entendeu?
Mas…
Aguarde tua sentença
Eu já fui réu na Globo e tô sendo na Alemanha também
Aguarde tua sentença
Mas eu nem desmaiei de volúpia
E nem mesmo a maçã do amor eu mordi
E nem sequer sangue, suguei
Cala a boca, fique quieto
Nenhum um piu, mais respeito no lugar
Prepare a carapuça
Ponha o capuz na cabeça
Reforcem a segurança
Mas não feriu, não doeu, não, não, não
Não fez, não teve presença
Trafegou noutra frequência
Aliás nem teve graça, nem teve graça
Vício black, feche o bico, fique frio
Mau-caráter, cala a boca, fique quieto
Nem um piu
Como nenhum piu?
Vou falar e falo
Oras, eu tenho boca pra falar
3.PREZADÍSSIMOS OUVINTES
O novo não me choca mais
Nada de novo sob o sol
O que existe é o mesmo ovo de sempre
Chocando o mesmo novo
Muito prazer
Prezadíssimos ouvintes
Pra chegar até aqui eu tive que ficar na fila
Aguentar tranco na esquina e por cima lotação
Noite e aqui tô eu novo de novo
Com 24 costelas
O gogó, baixo, guitarras, violão e percussão (e vozes)
Ligadas numas tomadas elétricas e pulmão
Já cantei num galinheiro
Cantei numa procissão
Cantei ponto de terreiro
Agora eu quero cantar na televisão
Meu irmão, o negócio é o seguinte
É pura briga de foice
Um jogo de empurra empurra
Facão, tiro, chute, murro
Chamam mãe de palavrão
Sorte não haver o que segure
Som, senhoras e senhores
Mas quem é que me garante?
Quem é que me garante?
Que mesmo esses microfones
Sempre funcionarão?
Cantei tal qual seresteiro
(Sentimental eu sou)
Cantei paixão, solidão (eu sou)
Cantei canto de guerreiro
Agora eu quero cantar na televisão
(TV Pirata, qualquer uma)
4.CHAVÃO ABRE PORTA GRANDE
Não adianta vir arreganhando os dentes para mim
Porque sei que isso não é um sorriso
Penso logo existo
Penso que existo
Penso que penso, penso que penso
Canto logo existo
Canto enquanto isso
Canto o quanto posso, enquanto posso
Entre o sim e o não existe um vão
Você já portou luvas no porta-luvas?
Lembre-se
Quem não vive tem medo da morte
Lembre-se
Chavão abre porta grande
5.SAMPA MIDNIGHT
Sampa midnight
Eu assessorado de mais dois chegados
Bartolomeu, Ptolomeo
Partimos pra comemorar
Não lembro o que numa boa boate
Escabrosa noite
Deu blackout na Paulista, breu no Trianon
Cadê o vão do museu? Sumiu
Meu Deus do céu!
Que escuridão (que escuridão)
Três seres transparentes baixaram não sei de onde
Imobilizando a gente (em cima da gente)
E gritando: Não somos gente!
Brilhavam, não tinham dentes
Traziam cortantes tridentes incandescentes
Nas frontes três chifres
Falavam rapidamente com gestos intermitentes
Simultaneamente sons estridentes incríveis
É Sampa midnight
Eu chumbado com mais dois embriagados (vários, Élcio)
Ptolomeo, Bartolomeu (Bocato)
Quisemos levá-los prum bar (Gigante)
Mas qual o quê? Tomamos xeque-mate (Denise)
Rui, Luiz Raio laser (Paulinho Lepetit)
Tenebrosa noite
Faltou light na Paulista (Tonho Prenhasco)
Breu no Trianon, cadê a Consolação?
Escureceu o museu (sumiu, meu Deus do céu)
Onde está o chão?
Um trio intrigante (transparente)
Desceu do céu num instante
Chegou intimando a gente e berrando (gritando)
Não somos gente!
Cantaram de trás pra frente
Letras fortes, indecentes
Músicas bem excitantes
Provocantes, rumbas, funks
Cantaram de trás pra adiante
Uns reggaes bregas de breque chiques
Bastante pique (breques, bastantes pique)
Sambas de roda chocantes
Sampa midnight
Eu assessorado de mais dois chegados
Bartolomeu, Ptolomeu
Partimos pra comemorar não lembro o quê
6.E O QUICO?
Eu andava certa noite, dia 13, sexta, triste
Sozinho desnorteado, perdido, cabreiro, besta
Resolvi sair por aí chutando pedras
Contando estrelas, cometas
Por dentro mil pensamentos
Perguntas do tipo
Que vida é esta?
Uma voz dentro da noite
Respondeu-me como assombração
Isso é tudo que te resta
Eu disse: Até amanhã
Até amanhã, tenho muitos compromissos
De madrugada vou pra França, vou pra Nice
Fazer um curso de dança
A voz decretou-me
Você vai mas você volta (você vai, mas você volta)
Você vai, zoom, mas você volta
Você vai, mas você volta
Você vai dançar, mas você volta aqui
Um disco voador
De mim se aproximou
De dentro dele uma voz
De dentro dele uma voz (me aconselhou)
Aconselhou-me
Sabe o que você faz?
Pergunta pra essa outra voz
Que parece assombração (que parece assombração)
O seguinte, o seguinte
E o Quico?
E o quico tenho com isso, meu?
E o quico tenho com isso?
7.NOITE DE TERROR
Fazia noite, eu logo fui dormir
Soprava um vento forte
E eu não pude mais sair
Pensei com meus botões:
“um bom livro eu vou ler
E um trago de uísque
Que é bom pra me aquecer”
Mas uma coisa, vejam!… me aconteceu
Uma mão gelada em meu ombro bateu
Gritar eu não quis,
Porém, a voz não me saiu
E o livro que eu lia,
Até de minhas mãos sumiu.
Tremi de cima em baixo
Sem sair do lugar,
Quando de repente eu ouvi alguém falar
Bem junto de mim esse alguém que falou bem assim…
“eu sou o frankstein!!!”
Tomou conta de mim
Tamanha tremedeira
Eu nada quis ouvir, pois corri pela ladeira
Mas de repente então mudou-se o panorama
Quando dei por mim
Eu estava em minha cama
Alguém bate à porta
Vou logo ver quem é
Deve ser meu broto
Pois fantasma não dá pé
Mas quando a porta abri
Fiquei logo a tremer
Senti por todo o corpo um frio percorrer
Fiquei no chão colado
Com o cabelo arrepiado
Maior foi o meu pavor
Pois não era o meu amor
E esse alguém que eu vi
Me falou novamente assim… “voltei!!!
8. OH MALDIÇÃO!
Bateram na porta
Eu fui atender
Já era tarde demais
Quando eu morri
Crivado de balas
Mas foi teu nome
O que me fez abrir a porta
Oh! Maldição…!
Morreu primeiro,
Morreu no coração
Morreu primeiro
Bateram na porta
Eu fui atender
Ingênuo que eu fui
Quando eu morri
Crivado de balas
Morreu no coração
Morreu primeiro
Morreu no coração
9. NAVALHA NA LIGA
Sabe que que é?
Nada pode tudo na vida
Nada pode tudo na vida
Por que toda estrela pisca no céu
E o cometa risca?
Por que você não se arrisca, meu bem?
E vem, belisca e petisca
Por que teu beijo faísca?
Por que teu beijo faísca?
Valha navalha na liga
Nada na barriga
Não se escandalize, não, não, não, não
Tudo isso a gente pensa quando entra em transe
Quando sai da crise
Vou dizer não, não
Tantas vezes até formar um nome
Até formar um nome
Valha navalha na liga
Nada na barriga
Nada pode tudo na vida
Nada pode tudo na vida
Falta de sorte, falta de sorte
Falta de sorte
Fui me corrigir, errei
10. VAMOS NESSA
Vamos nessa, vamos nessa, vamos lá
Vamos nessa, vamos nessa
Vamos lá
Vamos lá que aqui não dá, não dá
Vamos nessa, vamos nessa
Vamos lá
Parceiro
Não tem luz, não tem luz
Não tem luz, não tem luz
Não tem cheiro
Pra fazer o que se faz (pra fazer o que se faz)
Quando se nasce, quando se nasce
Quando se nasce, quando se nasce
Bandido e brasileiro
Entrar em casa
“Oi, tudo bem?”
“Estou inteiro”
Olha só meu bem como eu fiz
Olha só meu bem como eu fiz
Olha só meu bem como eu fiz
Olha só meu bem como eu fiz
Pra ficar assim tão estrangeiro
11. TETÊ TENTEI
Tetê tentei
Tetê tentei
Tetê tentei
Tetê tentei fazer um bolero
Tentei moda de viola
Tentei desvendar mistérios
Tentei dominar a bola
Tentei um tango pra solo
Dupla trio quarteto de trompas
Varei mil noites a fio
Tentei compor para flautas
Tentei imitar a ema
Tentei em vão criar clima
Tentei nó em pingo d’água
Tentei música latina
Tetê tentei fazer um bolero
Tentei moda de viola
Tentei desvendar mistérios
Tentei dominar a bola
Tentei musicar um drama
Tentei inventar poemas
Tentei música urbana
Tentei mais do que imaginas
Tentei centenas de temas
Tentei fugir da rotina
Tentei Sampa e Ipanema
Tentei desdobrar esquinas
Tentei a mais linda cena
Tentei fugir do esquema
Depois disso só me restou
Estar aqui tentando mímicas
Depois disso só me restou
Estar aqui tentando mímicas
12. Z DA QUESTÃO, MEU AMOR
Fiz essa canção com versos vulgares
Melhores não sei pra dar-lhes
(Sou poeta não)
Sou poeta não vim só entregar-me
Só vim cantar-lhe
Eu não sou Romeu nem Ulisses
Nem de longe o mago de Oz
Nem Zeus, nem Jesus, nenhum Deus
Nem Eros nem Platão nem Sócrates
Às vezes me afundo
Fico reclamando
De tudo, de todo mundo
Bate um desespero
Ver alguém matar alguém
Por meros 30 dinheiros
Fato corriqueiro
Mas não me acostumo, nem gosto do cheiro
Complicado o que sou assim, aqui, Viena ou Milão
Na penha São Paulo na Estrela Vésper
N’algum lugar do Japão
Shyiwacê wa shita ni teral no rana no chita me
Ser ou não feliz
Existe um ditado por aí que diz
A felicidade fica bem debaixo
Do nosso próprio nariz
Meu amor, porque que todo o tempo
Você toma conta do meu pensamento
Até nos lugares que ando, frequento
O teu cheiro chega indo com o vento
Fica ardendo, me comendo lá no fundo
Cada segundo, cada minuto, cada momento
Sei lá eu porque te quero tanto
Só sei que vai dar pra lá do infinito
É bem parecido com o fim do mundo
O teu nome sobre os muros deixo escrito
Fica ardendo, me comendo lá no fundo
Cada segundo, cada minuto, cada momento
Quanto mais te evito mais eu te encontro
Quanto mais eu fujo mais eu te desejo
Posso até estar ficar ficando louco
Mas meu coração está bem lúcido
Fica ardendo, me comendo lá no fundo
Cada segundo, cada minuto, cada momento.
13. SUTIL
Sendo fim também és
Tu és meio e começo
Sim e não, norte e sul
Direito avesso
Você me seduziu desde o início
Sendo assim porém fica mais difícil
É muita luz pra pouco túnel
É muita areia para o meu caminhãozinho
Meu bem, eu morro de ciúmes até do sol
Que bronzeia você com carinho
Algo me diz pra ser sutil
Não faço idéia mas me resta um caminho
Pedir socorro teu perfume é fatal
Quanto as patas de um felino
Pode parecer incrível
Me deu na telha te dar meu coraçãozinho
Além de entregar meu telefone
E o ramal, baby, ligues rapidinho
Ser feliz é bem possível
A lua cheia me reduz a pedacinhos
Eu viro prata, lobisomem
Eu viro viro vampiro
Viro menino
14.ESPÍRITO QUE CANTA
Andando por aí eu encontrei
O espírito que anda
Que vinha caminhando juntamente com
O espírito de porco
Que disse não estar eu sacando
O espírito da coisa
E nunca mais eu encontrei
A minha paz de espírito
Voando num boeing encontrei
Outro espírito que voa
Voando a mil por hora, juntamente com
O pai, a mãe, o filho e o espírito santo
Que disse não estar eu voando de espírito tranquilo
E nunca mais eu encontrei
O meu estado de espírito
Cantando por aí que encontrei
Os espíritos que tocam
Que vinham caminhando juntamente com
Os espíritos que cantam
Disseram não estar eu cantando
Como cantam os cantores
E foi assim que encontrei
O meu espírito crítico.
15. FILHO DE SANTA MARIA
Aqui tô eu pra te proteger
Dos perigos da noite e do dia
Sou fogo, sou terra, sou água, sou gente
Eu também sou filho de Santa Maria
Se Dona Maria soubesse que o filho
Pecava e pecava tão lindo
Pegava o pecado, deixava de lado
E fazia da terra uma estrela sorrindo
Hoje eu saí lá fora
Como se tudo já tivesse havido
Já tivesse havido a guerra
A festa já tivesse havido
E eu, e eu, e eu
Só fosse puro espírito
16. ZÉ PELINTRA
Zé Pelintra desceu
Zé Pelintra baixou
É ele que chega e parte a fechadura
Do portão cerrado.
Zé Pelintra desceu, Zé Pelintra baixou
É ele quem chamega, quem penetra
Em cada fresta e rompe o cadeado.
E quando Zé Pelintra pinta na aldeia
O povo todo saracoteia
Aparta briga feia, terno branco alinhado
Cabelo arapuá de brilhantina besuntado
Ele do ovo é a porção gema, bebe sumo de jurema
Resolve impossível demanda
Homem elástico, homem borracha
Desliza que nem vaselina
Saravá à sua banda
(Saravá, Saravá)
17.MILAGRIMAS
Mulher, em caso de dor, ponha gelo
Mude o corte de cabelo
Mude como modelo
Vá ao cinema, dê um sorriso
Ainda que amarelo
Esqueça seu cotovelo
Se amargo foi já ter sido
Troque já esse vestido
Troque o padrão do tecido
Saia do sério, deixe os critérios
Siga todos os sentidos
Faça fazer sentido
A cada mil lágrimas sai um milagre
Caso de tristeza, vire a mesa
Coma só a sobremesa
Coma somente a cereja
Jogue para cima, faça cena
Cante as rimas de um poema
Sofra apenas, viva apenas
Sendo só fissura ou loucura
Quem sabe casando cura
Ninguém sabe o que procura
Faça uma novena, reze um terço
Caia fora do contexto
Invente seu endereço
A cada mil lágrimas sai um milagre
Mas se apesar de banal, banal
Chorar for inevitável
Sinta o gosto do sal, do sal, do sal, do sal
Sinta o gosto do sal
Gota a gota, uma a uma
Duas, três, dez, cem, mil lágrimas
Sinta o milagre
A cada mil lágrimas sai um milagre
No woman, no cry
A cada mil lágrimas sai um milagre
A cada mil lágrimas
A cada mil lágrimas sai um milagre
A cada mil lágrimas
18.SE A OBRA É A SOMA DAS PENAS
Se a obra é a soma das penas
Pago
Mas quero meu troco em poemas
19. TUA BOCA
A tua boca me dá
Água na boca
Que vontade de grudar
Uma na outra
E sugar bem devagar
Gota por gota
Beija-flor beijando a flor
Com borboleta
A tua boca me dá
Água na boca
Que vontade de rasgar
A nossa roupa
Vamos pra qualquer lugar
Pra aquela gruta
Pra qualquer quarto de hotel
Pra aquela moita
Tua boca me dá
Água na boca
Que vontade de gritar
É uma bomba
Acho que vai rebentar
Vai rebentar
Desgraça pouca
Azar eu vou me matar
Na tua boca
Azar eu vou me matar
Na tua boca
Azar eu vou te matar
Na minha boca
Azar eu vou me matar
Na tua boca
Azar eu vou te matar
Na minha boca
Azar eu vou me matar
Na tua boca
Azar eu vou te matar
Na minha boca
20.CABELO DURO
Eu tenho cabelo duro
Mas não o miolo mole
Sou afro brasileiro puro
É mulata minha prole
Não vivo em cima do muro
Da canga meu som me abole
É, desaforo eu não engulo
Comigo é o freguês que escolhe
Eu tenho cabelo duro
Mas não o miolo mole
Sou afro brasileiro puro
É mulata minha prole
Sushi com chuchu misturo
Quibebe com raviole
Chopp claro com escuro
Empada com rocambole
21. ACULTURADO
Culturalmente confuso
Brasileiro é aculturado
Líbio, libanês, árabe turco
Acha farinha do mesmo saco
Não saca croata, curdo
Não saca iugoslavo
Nem belga, nem mameluco
Não saca Platão, nem Plutarco
Não saca que um cafuzo
Mestiço é, não mulato
Que apito toca o Caruso
Que apito que toca o Bach
Não saca sueco, luso
Egípcio, tchecoslovaco
Kafka, Freud, Confúcio
Não saca que russo é cossaco
22. NA PRÓXIMA ENCARNAÇÃO
Na próxima encarnação
Não quero saber de barra
Replay de formiga não
Eu quero nascer cigarra
Na próxima encarnação
Não quero saber de barra
Replay de formiga não
Eu quero nascer cigarra
Nascer Tom Zé, Jamelão
Cantar, Violeta Parra
Zé Kéti, Duke Ellington
Com banda, orquestra e fanfarra
23. CULTURA LIRA PAULISTANA
A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura como pode se segura
Mesmo assim mais um pouquinho
E seu nome será amargura ruptura sepultura
Também pudera coitada representada
Como se fosse piada
Deus meu por cada figura sem compostura
Onde era Ataulfo tropicália
Monsueto dona Ivone Lara campo em flor
Ficou tiririca pura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que droga merda
Cultura não é uma tchurma
Cultura não é tcha tchura
Cultura não é frescura
A brasileira é uma mistura pura uma loucura
A textura brasileira é impura mas tem jogo de cintura
Se apura mistura não mata
Cultura sabe que existe miséria existe fartura e partitura
Cultura quase sempre tudo atura
Sabe que a vida tem doce e é dura feito rapadura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Cultura sabe que existe bravura agricultura
Ternura existe êxtase e agrura noites escuras
Cultura sabe que existe paúra botões e abotoaduras
Que existe muita tortura
Cultura sabe que existe cultura
Cultura sabe que existem milhões de outras culturas
Baixaria na cultura tanto bate até que fura
Socorro Elis Regina
A ditadura pulou fora da política
E como a dita cuja é craca é crica
Foi grudar bem na cultura
Nova forma de censura
Pobre cultura
Como pode se segura
Mesmo assim mais um tiquinho
Coitada representada
Como se fosse um nada
Deus meu por cada feiura
Sem compostura
Onde era pixinguinha elizeth macalé e o zé kéti
Ficou tiririca pura
Só dança de tanajura
Porcaria na cultura tanto bate até que fura
Que pop mais pobre pobre pop
24. APAIXONITE AGUDA
Quando estou longe
Quero ficar perto
Quando estou perto
Quero ficar dentro
Quando estou dentro
Quero ficar mudo
Quando estou mudo
Quero dizer tudo
25. VIDA DE ARTISTA
Na vida sou passageiro
Eu também motorista
Fui trocador motorneiro
Antes de ascensorista
Tenho dom pra costureiro
Para datiloscopista
Com queda pra macumbeiro
Talento pra adventista
Agora sou mensageiro
Além de paraquedista
Às vezes mezzo engenheiro
Mezzo psicanalista
Trejeito de batuqueiro
A veia de repentista
Já fui peão boiadeiro
Fui até tropicalista
Outrora fui bom goleiro
Hoje sou equilibrista
De dia sou cozinheiro
À noite sou massagista
Sou galo no meu terreiro
Nos outros abaixo a crista
Me calo feito mineiro
No mais vida de artista
26. DOR ELEGANTE
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante
Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha
Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra
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VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: Deuses Iourubás na África e no Novo Mundo. Salvador, Bahia: Fundação Pierre Verger, 2018.
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução Joana Angélica D´Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
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Material audiovisual
Daquele Instante em Diante. Documentário dirigido por Rogério Velloso, Brasil, 2011.
Ensaio. TV Cultura, 1999.
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Fundação Casa de Jorge Amado. O guardião. Disponível em http://www.jorgeamado.org.br
Revista O Grito. Pernambuco é a Grécia do Brasil – entrevista com Zé Celso Martinez Corrêa. 2010. Disponível em https://revistaogrito.com/entrevista-ze-celso-martinez-correa-teatro-oficina/
*
Juliana Delgado é psicóloga e escritora. Paulistana. Dedica-se há muitos anos ao estudo da psicologia arquetípica e das relações entre arte, mito e subjetividade. Sua escrita transita entre o ensaio, a crítica poética e a escuta simbólica, explorando as encruzilhadas entre pensamento e criação. Neste trabalho, articula sua experiência clínica e teórica com um mergulho sensível na obra de Itamar Assumpção, construindo uma leitura mitopoética profundamente autoral.