Eu te Nuvem

Por Cris Vázquez *

Rômulo não vê graça na piscina cheia de jovens. Não sabe por que viajara de novo ao lugar favorito. Sem avisar Douglas, deixa o uísque no bar interno do hotel, pega as tralhas e ruma ao elevador. A senhora que aguarda o check-in com bolsas e filhos dependurados acompanha o seu trajeto, mesclando, no olhar fugidio, matizes ora sombrios, ora luminosos. Ele sabe o que ela pensa. O mesmo que todos os outros que admiram sua bela figura masculina. Os pensamentos são interrompidos por Douglas, que alcança o elevador quando a porta quase se fecha. Douglas também captara o mal estar da mulher. No elevador, evitando as paredes frias ou o nada, os dois homens encaram o espelho, pois o que veem nos olhos um do outro é a dor.

Na suíte, Rômulo liga o notebook e Douglas sente piedade. De si mesmo. De Rômulo. Este esconde a vida virtual. Douglas percebe, mas acredita não levar a nada de concreto. Vai até varanda apreciar o píer para deixar Rômulo à vontade. As pessoas devem deixar as outras livres. Douglas entendia isso, e mais um tanto.

Na mensagem à espera de Rômulo, uma confissão:

Eu não o adicionei voluntariamente. Teclei em seu perfil pelo celular, sem querer. Mas, desde o primeiro contato, não passo um dia sem pensar em você, e necessito me comunicar mais vezes. Você me acalma e ao mesmo tempo me causa calafrios, secreções, delírios. Cada vez que nos correspondemos, cresce o desejo de balbuciar em seu ouvido, eu te amo, te amo, te amo, te amo. Temos uma coisa em comum: você declarou residir na nuvem e eu também. Deve ter sido a coincidência geográfica inusitada que aproximou os perfis. Pergunto-me se você está perto. Contudo, não quero me interessar pelo que também deixei incógnito. O que me excita é o mistério que ronda nosso relacionamento, por assim dizer. Gosto de abrir a tela e examinar sua boca, carnuda, moldada para mim. De tanto estudá-la, eu saberia como extrair o maior proveito de um beijo.

Rômulo sente medo. Daqui a pouco, essa garota, Marina, sugerirá chamadas por vídeo, encontros de verdade. Para que olhar? E falar? Não ouviria palavras mais belas do que as lidas há pouco. O que diriam on line ou pessoalmente? Oi, como vai, o que tem feito? Sexo virtual vulgarizaria a relação. No nariz de Douglas? Não está preparado para o intercurso real. Melhor ler as mensagens e escrever em resposta.

Ele descobrira o prazer da escrita. Ultimamente, opta por não falar, nem ouvir, quiçá ver. Explicações, baboseiras, olhares. Apreciaria ser cego, surdo e mudo. Que bobagem! Mas escrever é hors concours. Ele articula melhor as ideias com tempo para pensar. Livra-se de constrangimentos, pois está a salvo de olhares perscrutadores a incutir em sua alma o que talvez não sinta. Escrever gera menos ruído de comunicação. E ele pode responder a qualquer hora. Sabe seduzir, prolongar a expectativa do encontro, in casu, da resposta.

Marina chega da aula e vai direto ao quarto. A mãe nota os passos leves e a expressão segura. Ela voa no corredor. Pudera, fora um ano bom. Até ingressou na Faculdade de Administração. Quem suporia, há dez anos?

Ela liga o computador. Nenhuma novidade. Suspira. Geme. Lê ficção.  Toma um chá. Estuda. Chega a hora da corrida. Às vezes, gostaria de não ter pernas para se libertar do compromisso com o treino. Contudo, o exercício serve para conter a ansiedade. Posta foto de corpo inteiro, suada, saudável. Quer alcançar Rômulo.

Ao chegar da viagem, Rômulo vê a foto, mas não manifesta sinal. Ele analisa o momento congelado da garota magra, de pele clara, cabelos castanhos compridos e lisos, olhar e sorriso delicados. Seria boa corredora? O registro é de que lugar? De que mais ela gosta: caminhar, dançar, patinar?

Na volta do treino, Marina checa as mensagens. Nada. Apela às fotos de Rômulo, baladas, bares com amigos, shows. Estranho. A última imagem é de um ano atrás. Hoje em dia, as pessoas postam tudo, a toda hora. Por que ousara escrever eu te amo? E se não houver resposta, o que fará com seu amor? Conseguirá extingui-lo? Ensurdecê-lo? Apagará as mensagens, mas o registro ficará na nuvem. Marina abandona o aturdimento da tela para aderir à profundidade da cama. Tem aula na manhã seguinte. Ele sabe como deixá-la ansiosa, e mais envolvida. Oh, como eu te amo, eu te amo, eu te…nuvem.

Ao acordar, há uma mensagem.

Marina, o mistério que paira em nossa relação é o que temos de mais sagrado. Você pode chamar de relacionamento, sim, pois é importante para nós. Você me faz bem. Gostei da foto da corrida, de ver suas pernas em movimento, e imaginar que te acompanhava, e depois as acariciava. Saiba que o interesse em manter o contato por aqui é recíproco.

Ela entende a intenção de Rômulo de travar um relacionamento apenas virtual e considera melhor assim. Mais adiante, reuniria coragem de se mostrar por completo? Afinal, avançara tanto até ali. Poderia ir mais longe. O grande dia aproximava-se.

Nos últimos tempos, Douglas percebe tanto a animação, como a preocupação de Rômulo. Na internet, ele sorri com ternura às vezes. Em outras, um vinco profundo imprime-se na testa, e Rômulo assume postura analítica, como se a nova mídia pudesse responder à sua maior angústia. Douglas sabe que ele flerta, mas também pesquisa. Ele compreende Rômulo. Desde criança, sente a dor dos outros. Sinceramente, gostaria que os fatos tivessem ocorrido ao contrário. Impossível. De todo o modo, o início da mudança está chegando. Rômulo ficará melhor, e ele também, apesar de tudo.

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Não há mesa disponível na lanchonete do hospital. Douglas olha ao redor, a fim de encontrar um rosto amigável, e convidar-se a sentar. Há uma mulher sozinha, que o recebe de sorriso aberto.

Em segundos, ela conta que acompanha a filha em nova cirurgia para correção de surdez. Uma moça inteligente, linda, maravilhosa. Depois ela mostra a foto. Já sofrera demais, mas agora até entrou na faculdade.

Douglas também escancara sua história, a do último ano.

Volta de um plantão às sete da manhã. Ele trafega na avenida de três pistas, faixa da direita. Há um motorista lento à frente. Quando este troca de faixa, ele acelera de imediato.

Um estrondo. Joga um homem às nuvens.

Então ele reconstitui a cena. O rapaz bêbado e drogado, de braços abertos e sorriso irônico, cambaleia na frente do carro.

Rômulo é o nome dele. Bate forte a perna direita, a qual não é possível salvar.  Ele, enfermeiro graduado, que dedica a vida a cuidar, subtraiu um membro de um jovem. Ficar de fora só aumentaria a agonia. Quer ser a perna que falta a Rômulo. Acompanha a cirurgia, conversa com os pais. Tornam-se amigos. É contratado como cuidador. Embora a família o tenha redimido da parcela de culpa, ele não se perdoa. Responde ao processo penal, porque a questão depende da Justiça.

Em um ano, consegue convencê-lo a adaptar uma prótese. Agora aguarda a primeira sessão de Rômulo.

Mas está falando demais, desculpa-se pelo desabafo, quer ver a foto da filha da simpática companheira de mesa.

É Marina.

Douglas não conhece a moça com quem Rômulo se corresponde.

Tudo está na nuvem.

*

Cris Vázquez nasceu em Rosário do Sul/RS. É mestra em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina e advogada pública em Florianópolis/SC. Atualmente cursa a Oficina de Criação Literária Luiz Antônio Assis Brasil, do Programa de Pós-graduação da PUC-RS

 

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