Por Sérgio Tavares *

Histórias da aids é uma leitura envolvente tanto como recorte de um período difuso quanto como apuração de dramas humanos. O livro-reportagem, assinado pelo médico infectologista Artur Timerman e pela jornalista Naiara Magalhães, encontra um equilíbrio plausível ao remontar o cenário devastador da epidemia nas últimas três décadas na sociedade brasileira e, daí, pinçar histórias particulares daqueles contaminados com o vírus HIV.

A dimensão do impacto causado pela única doença “capaz de arrasar o sistema imune” é bem ilustrada logo no primeiro capítulo, escrito por Timerman. O médico, um dos primeiros no Brasil a tratar pacientes soropositivos, no início da década de 80, relata com vigor e sem escolta a condição de paúra dos profissionais e dos centros de saúde diante de uma realidade, cuja informação e para qual “formação era completamente zero”.

Timerman rememora que a Aids levou os infectologistas de “uma sensação de prepotência para uma posição de total impotência”, gerando atitudes que hoje seriam inaceitáveis, tais quais os médicos “se paramentarem feito astronautas” para cuidar dos pacientes e algumas enfermeiras se recusarem a entrar nos quartos. O estigma da doença provocava os esboroamentos físico e social, eram “crônicas de uma morte anunciada”. O organismo definhava em questão de semanas, devido à falta de medicação adequada. Além disso, a agressividade dos sintomas se assomava ao preconceito tão agressivo quanto. “Peste gay” chegou ser manchete de um jornal paulista. A homossexualidade, vista pela sociedade como um ultraje moral, tinha o castigo merecido.

De modo que os infectados, ante o fim incontornável, ainda partiam “se sentindo culpados pela própria morte”. Laços familiares, de amizade, eram rompidos, e o suicídio passou a ser uma prática corrente. Timerman conta assinar 15 atestados de óbitos por semana. Ele próprio perdeu 11 colegas do tempo de faculdade. Homens com vida dupla, homossexuais, exilavam-se numa morte muda e depois cega, em função dos pedidos de entes próximos de alterar, no laudo, o motivo do falecimento, preocupados com o julgamento alheio.

Não obstante, como finaliza o relato, foi justamente a militância homossexual a responsável por cobrar pesquisas, o desenvolvimento de medicamentos e a disseminação da importância do uso de preservativo. A partir de então, o livro ajusta o enfoque para o período “pós-coquetel” e quem assume o volante da narrativa é Naiara. Fruto de uma série de entrevistas, iniciam-se os casos de pessoas que convivem com o HIV.

Nesta parte, as páginas perdem o peso científico e didático e ganham um vulto humanizado, quiçá um verniz ficcional próprio da natureza dos contos. São histórias diversas, com atores variados (homens e mulheres, homossexuais e heterossexuais, jovens e idosos), cujos depoimentos dão conta do avanço no tratamento dos indivíduos soropositivos. A jornalista se aproveita, com perspicácia, de uma circunstância particular para refletir a mesma carga emocional em milhares de realidades semelhantes. Além disso, vai abrindo brechas sutis nos relatos para incorporar informações técnicas, a exemplo de estudos comportamentais, e dicas de prevenção, tal qual a maneira correta do uso da camisinha.

Há ainda um apelo latente de conscientização e de esperança nas entrelinhas de cada caso. Alertar que, a despeito da eficácia do coquetel, é indispensável o sexo seguro e a atenção a outras formas de contágio, e que a convivência com o vírus é possível e não impede de encarar o futuro de frente. Como depõe a jovem Marcela (nome fictício), que nasceu com o HIV, e cursa faculdade, faz estágio e namora há algum tempo, com planos para se casar e ter filhos. “Quis mostrar que tem gente que tem (HIV) e está bem. Tem profissão, família, tá tudo certo”, afirma.

A segunda parte se configura um extenso ensaio jornalístico. Realidades pretérita, presente e futura se encasam, numa linha temporal que vai do marco zero da doença aos estudos atuais para a cura resistente. O texto se apresenta mais técnico e (auto)referencial, valorizando números e pesquisas, mas ainda com clareza e tocando em questões que envolvem a inter-relação indivíduo, epidemia e sociedade. A “História por trás das histórias” que segue, ainda que com menos intensidade, ceifando vidas e fazendo da Aids um problema atual e de todos nós.

Timerman e Naira combinam resgate histórico, estudos científicos e relatos humanos para paginar um tempo de trevas e clareá-lo pouco a pouco, mostrando, como atestam as últimas frases, que “a marcha da cura é irreversível. E a esperança nunca esteve tão viva”.

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Histórias da aids, de  e  [editora Autêntica, 152 págs.]

Avaliação:

_pena-01_pena-01 [muito bom]

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Sérgio Tavares é autor de Queda da própria altura e Cavala

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