Por Viviane Ka *

Nada mais justo do que a escolha de Ana Cristina César para ser a homenageada da Flip 2016. Poeta símbolo dos anos 1980, considerada por muitos uma escritora de aura adolescente, Ana C. tem até hoje um séquito de adoradores de todas as gerações.

Quem se depara com a poesia de Ana não sai impune.

Em um momento tão delicado da história do Brasil., em que políticos intransigentes querem mandar no corpo da mulher, a literatura confessional de Ana C. relembra como são importantes as manifestações artísticas de identidade feminina.

Ela foi uma das primeiras a descrever , com muita delicadeza, a vontade de dar . Entre o desejo e o freio, ganhou a poesia. Entre a candidíase e a entrega, Ana C. volta-se para o íntimo e escolhe examinar o local que pulsa: a vagina.

Acordei com coceira no hímen.

No bidé, com um espelhinho, examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos não percebem que um vermelho a mais tem um significado a mais. Passei pomada branca até que a pele, rugosa e murcha, ficasse brilhante. Murcharam os meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez disso decidi dedicar-me à leitura.

Um poema que não menciona a palavra paixão mas que é disso que trata, só uma mulher apaixonada entenderá. Um vermelho a mais, um significado a mais. O corpo feminino presente na construção do texto.  Qual mulher, que depois de muito fazer sexo não pegou-se observando, com um espelhinho, o resultado do ardor dos seus momentos de sexo? Quem teve coragem de confessar?  Pois Ana C. teve. Simples, mas muito íntimo e secreto, como o tesão de uma mulher.

Ao mesmo tempo, era uma mulher de extrema inteligência, com mestrado em tradução literária na Inglaterra e irmã de alma de grandes escritoras como Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield. Ao mesmo tempo, era muito carioca e solar. Seu negócio era mesmo a literatura e a escrita, sua verdadeira coceira e paixão.

Textos curtos, cartas, páginas de diário, retalhos cotidianos, o trabalho de Ana C. é super atual nos tempos fragmentados de hoje. Os poemas e prosas da pasta rosa, livro organizado por Viviana Bosi para o Instituto Moreira Salles é uma obra-prima gráfica para ler e observar devagar como um navio ancorado no espaço.

Muitos críticos a consideram datada, com trabalho esteticamente ligado aos final dos anos 1970/80,  período da poesia marginal, mas sua presença como mulher-musa continua forte nas redes sociais, em trabalhos acadêmicos e nos estudos de literatura, atravessando décadas. Como considerar datado um poema que começa assim?:

Uma disse para a outra/ muito me orgulho da maturidade de nossa relação. É uma relação tão causticamente madura que certos momentos me fizeram pensar tratar-se de um jogo de frivolidades.

Muito conectada com os tempos atuais, de edições independentes e publicações em mimeógrafo, Ana C. alcançou a popularidade quando a editora Brasiliense publicou seu livro de poemas A seus pés, em 1982.  Até hoje o livro é objeto de culto.

Pensar em literatura brasileira que comova e tenha ao mesmo tempo uma mítica envolvida,  é lembrar de Ana C. e Caio Fernando Abreu. Que foram ao extremo de suas emoções na arte e na vida.

Sua fama cresceu por conta de sua história pessoal. Como Virginia Woolf , Ana C. se suicidou. A aura de artista atormentada, como tantas mulheres oprimidas pelo peso de sua intensa sexualidade e dilacerante lucidez e uma suposta depressão não tratada. Como as poetas americanas Sylvia Plath, e Anne Sexton, como a jovem fotógrafa Francesca Woodman, que sempre se auto fotografava nua ,camuflada em papéis de parede e natureza, Ana C. também estava cansada de ser homem, como revela no poema Samba canção:

…eu fiz tudo pra você gostar,

fui mulher vulgar,

meia-bruxa, meia-fera,

risinho modernista

arranhando na garganta,

malandra, bicha,

bem viada, vândala,

talvez maquiavélica,

e um dia emburrei-me…

embora um pouco burra,

porque inteligente me punha

logo rubra, ou ao contrário, cara

pálida que desconhece

o próprio cor-de-rosa…

Entre ficção e realidade, Ana C, é inspiradora de filmes atuais que estilhaçam os sentidos e embaralham ficção e documentário como Elena (2013)  e o Olmo e a Gaivota (2015) da diretora mineira Petra Costa e de Bruta aventura em versos (2011), da jovem cineasta baiana Letícia Simões, todas de alguma forma tocadas pelo labirinto da alma feminina revelada por ela.

O que ela estaria produzindo nos dias de hoje se não fosse seu suicídio? Estaria levantando a bandeira do movimento #agoraequesaoelas e muitos outros manifestos feministas tão necessários ainda?

Nada mais acertado do que homenagear Ana Cristina César. A Flip 2016 será um ritual de celebração em torno de seu nome.

*

Viviane Ka é escritora e roteirista de cinema. É diretora executiva da São Paulo Review

 

 

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