1. Questões preliminares: experiência política e experiência da linguagem
ou o diálogo como desafio

Como conversar com um fascista — reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro reúne reflexões sobre o estado psicopolítico e cultural de nossa época. O pressuposto que estrutura essas reflexões é que a política define-se como experiência de linguagem e que a qualidade dessa experiência nos une ou nos separa, tornando-nos seres políticos ou antipolíticos.

Se nosso ser político se forma em atos de linguagem, precisamos pensar nessa formação quando o empobrecimento desses atos se torna tão evidente. O autoritarismo é o sistema desse empobrecimento. Ele é o empobrecimento dos atos políticos pela interrupção do diálogo. Interrupção que se dá, por sua vez, pelo empobrecimento das condições nas quais o diálogo poderia acontecer. Essas condições são materiais e concretas. Elas referem-se a mecanismos, na forma de dispositivos criadores de hábitos, que impedem as práticas de diálogo. Esses dispositivos são criados por racionalidades que operam na linguagem. A linguagem está como que fora e dentro das pessoas, forjando-as e sendo forjada por elas. O diálogo é uma atividade que nos forma e que é formada por nós. É um ato linguístico complexo capaz de promover ações de transformação em diversos níveis. Poderíamos nos perguntar o que acontece conosco quando entramos em um diálogo e o que acontece caso isso não seja possível. O diálogo é uma prática de não violência. A violência surge quando o diálogo não entra em cena.

O que chamo de fascista é um tipo psicopolítico bastante comum. Sua característica é ser politicamente pobre. O empobrecimento do qual ele é portador se deu pela perda da dimensão do diálogo. O diálogo se torna impossível quando se perde a dimensão do outro. O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de abertura, fácil de reconhe­cer no dia a dia, corresponde a um ponto de vista fixo que lhe serve de certeza contra pessoas que não correspondem à sua visão de mundo preestabelecida. A outra pessoa é o que o fascista não pode reconhecer como outro. O outro é reduzido a uma função dentro do círculo no qual o fascista o enreda. Talvez como a aranha que vê na mosca apenas o alimento que lhe serve e que precisa ser capturado em uma teia. Mas essa imagem seria ingênua, pois o fascista é capaz de olhar para o outro com tanto ódio que até mesmo perde o senso de utilidade. O outro negado sustenta o fascista em suas certezas. O círculo é vicioso. A função da certeza é negar o outro. Negar o outro vem  a ser uma prática totalmente deturpada de produção de verdades.

Fechado em si mesmo, o fascista não pode perceber o “comum” que há entre ele e o outro, entre “eu e tu”. Ele não forma mental e emocionalmente a noção do comum, por que, para que esta noção se estabeleça, dependemos de algo que se estabelece com uma abertura ao outro. Fascista é aquela pessoa que luta contra laços sociais reais enquanto sustenta relações autoritárias, relações de dominação. Às vezes por trás de uma aparência esteticamente correta de justiça e bondade. Mesmo em circunstâncias esteticamente as mais corretas, e politicamente as mais decentes, o ódio é uma força que tende a falar bem alto. O fascista usa o afeto destrutivo do ódio para cortar laços potenciais, ao mesmo tempo que sustenta, pelo ódio,  a submissão do outro. Como personalidade autoritária, ele luta contra o amor e as formas de prazer em geral. Um fascista não abraça. Ele não recebe. É um sacerdote que pratica o autoritarismo como religião e usa falas prontas e apressadas que sempre convergem para o extermínio do outro, seja o outro quem for.

Refiro-me ao elemento “psicológico” de nossas experiências políticas, nossa vida em comum, sem nenhuma pretensão psicanalítica ou hermenêutica. Eu poderia escrever a palavra “ética” para me referir à esfera psicológica que antigamente era chamada de moral. Hoje, usamos o termo “ética” para falar dessa questão, mas justamente enquanto a moral é o que se questiona por meio da ética. Quando pergunto como alguém se forma, como alguém se torna o que é, e como é, estou na esfera da ética. O que está em jogo é a experiência subjetiva das pessoas que se encontram entre si e podem ou não entrar em um processo dialógico, na forma de ser de cada um, no que podemos chamar de formação da subjetividade. Subjetividade, por sua vez, é uma palavra usada aqui com a intenção de expressar o que é próprio de cada um, mas, mais ainda, o que cada um vive na pele. Refiro-me àquelas experiências que independem de nós e que vêm a nos machucar em níveis diversos. Isso de que somos feitos. O termo “interioridade” poderia nos dizer alguma coisa, mas seria pouco, pois a subjetividade implica também a “exterioridade”. Implica o que está nos acontecendo e que transcende o que podemos compreender. Aquilo que está nos acontecendo enquanto algo perpetrado pelo outro, não apenas a pessoa física de um outro, mas as instituições, a sociedade, a cultura, o âmbito espiritual e simbólico em que nos tornamos quem somos, sem que estejamos jamais prontos e acabados. Por isso, a pergunta “o que estamos fazendo uns com os outros?” é tão importante. Do mesmo modo, a questão é também pensar o ato político como ato linguístico (sendo que todo ato linguístico é político) e perguntar o que estamos fazendo quando estamos dizendo coisas uns aos outros. Por que não existe política nem a forma antipolítica, que é o fascismo, sem práticas linguísticas, que constroem ou destroem a política.

A palavra autoritarismo é usada para designar um modo antidemocrático de exercer o poder. A centralidade da autoridade é o atributo ou a característica de um governo, de uma pessoa ou até mesmo de uma cultura, que fornece o núcleo gerador da ação no exercício do poder autoritário. Diálogo e participação coletiva em decisões são impensáveis no espectro do autoritarismo que se define pela imposição à força de leis que interessam a quem exerce o poder. O outro, seja o povo (Estado), seja o próximo (indivíduo), seja a sociedade ou outras formas de cultura, é manipulado, quando não violentado, tanto física quanto simbolicamente.

Talvez não tenha sido percebido ainda que o autoritarismo seja mais do que uma postura, ele é essencialmente um regime de pensamento. Uma operação mental que, em sentido amplo, se torna paradigmática agindo sobre a ciência, a cultura e o senso comum. O autoritarismo como regime de pensamento poderia ser superado por aquilo que podemos chamar de paradigma do pensamento democrático. Não o pensamento sobre a democracia, mas uma operação mental em si mesma democrática. Em ambos os casos, trata-se de modos de pensar, de ver o mundo e de um específico uso da linguagem que se efetiva em ações.

A operação de pensamento autoritária está profundamente arraigada em tudo o que fazemos e parece fortalecer-se em certas épocas. Essa operação se dá no apagamento da função oblativa (a função do outro). A atmosfera niilista evidente no espírito de nossos dias relaciona-se à solidão do pensamento que não encontra nada diferente dele para fecundar. A operação do pensamento autoritário é infértil e rígida, ela se basta em repetir o que está dado, pronto ou resolvido (mesmo que apenas aparentemente). O outro (seja o povo, seja o próximo, seja a cultura alheia, seja a natureza ou a sociedade, seja o outro como uma “voz” que não se quer ouvir) é apagado no processo mental, que é um processo de linguagem. Nesse processo, aquele que se constituiu como “sujeito autoritário” pensa (ou “des-pensa”) a partir de falas prontas que ele toma como suas, mas que são introjetadas. O sujeito autoritário tem orgulho de seus pensamentos como se fossem verdades teológicas que somente ele detém. Daí que haja tanta gente autoritária professando verdades. Toda pessoa autoritária se sente meio sacerdote de alguma coisa. As falas autoritárias são como cacos colados à força para formar uma imagem mental sobre o mundo ao redor, um objeto, algo que se poderia tentar conhecer, mas que não é preciso conhecer, porque está de antemão, na ficção do autoritário, já conhecido. A operação propriamente dita do conhecimento que se entrega à novidade do objeto é, no entanto, desnecessária. Em outras palavras, podemos dizer que o sujeito autoritário “pergunta” e “responde” a si mesmo a partir de um ponto de vista previamente organizado no qual, a cada momento, o outro precisa ser descartado. Como se não existisse “outro” ponto de vista, outro desejo, outro modo de ver o mundo, outro que conhecer, ele procede mentalmente como o paranoico que detém todas as verdades antes de chegar a pesquisar o que as sustenta. E é claro que não dialoga com ninguém, porque a operação linguística que implica o outro é impossível para ele.

Quando escrevi o ensaio que dá nome ao livro, pensei em um experimento teórico-prático. Pensei em como desencadear a operação considerada impossível de conversar com alguém enrijecido em sua visão de mundo. Alguém que não se dispõe a escutar. Alguém que não fala para dialogar, mas apenas para mandar e dominar. Alguém que se tornou o sacerdote das verdades de sua vida e das vidas alheias. Alguém que sabe tudo previamente e está fechado para o outro. Perdidos em suas ilhas, alguns estão muito certos de que as coisas não podem ser diferentes porque o mundo está pronto em seus sistemas de pensamento. Ora, sistemas de pensamento são sistemas de linguagem. O cerne do pensamento conservador que é, em seu íntimo, opressor está em um pano de fundo linguístico enrijecido. Um pano de fundo no qual o autoritário se camufla como uma mariposa que se defende dos predadores. Claro que o sacerdote do autoritarismo é, como todo paranoico, alguém que tem muito medo. Aquele que pensa que ele mesmo, o outro, a vida, a sociedade não podem ser diferentes não se abre ao diálogo. Há uma dimensão idealizadora e utopista em todo diálogo. Mas o fascista não quer saber disso ou sequer analisar esta hipótese. O outro, esse alguém que o agente fascista trata como ninguém, é diferença demais para sua cabeça cheia de ideias prontas e bem encaixadas no mesmo lugar de sempre.

O fascismo é a forma do autoritarismo quando ele se torna radical. Há em todo Estado essa semente porque a “ordem” em si mesma, a ordem própria ao Estado, é sua essência. No cotidiano, o autoritarismo sobrevive nas posturas e atitudes psíquicas ou moralmente rígidas. A frieza das posturas, pensamentos e ações, é, em seu íntimo, alimento do fascismo potencial. Toda a nossa incapacidade para amar em um sentido que valorize o outro é fonte do fascismo.

O autoritarismo da vida cotidiana é o conjunto de gestos tão fáceis de rea­lizar quanto difíceis de entender. E ainda mais difíceis de conter. Em nossa época, crescem manifestações de preconceito racial, étnico, religioso, sexual, que pensávamos superadas. À direita e à esquerda, a partir de todos os credos, de todas as defesas que deveriam ser as mais justas e generosas. Ao mesmo tempo que idiossincrasias brutais se afirmam contra pessoas e grupos, sentimentos socialmente necessários, aqueles que se voltam para o outro na intenção de compreendê-lo, acolhê-lo — em uma palavra, amá-lo — não têm lugar entre nós. A mais básica abertura a uma conversa se torna inviável quando os indivíduos estão fechados em seus pequenos universos previamente formados e informados de tudo o que supõem saber.

Desaprendemos a conversar e somos incapazes de constituir um cenário ético-político diferente. O problema é, afinal, nesse contexto discursivo, sempre do outro. O outro, esse alguém que tratamos como se não fosse ninguém, é o desafio ético-político em uma sociedade que trabalha pela garantia de direitos fundamentais e pelo respeito à singularidade. O desafio do outro, de conversar com esse outro para quem facilmente nos fechamos, eis o que se propõe nas páginas que seguem.

Precisamos tentar intensamente o diálogo que está tão esquecido e faz muita falta entre nós. O diálogo é uma prática de escala miúda que poderia inspirar escalas maiores. Instaurador do comum, ele deveria ser a base de uma ética do dia a dia, aquele lugar do me tornar quem sou. A ética seria uma boa base de construção de outra política. Talvez o experimento que deu início a este livro pudesse se tornar um método existencialmente útil no cotidiano. Ele nos faria resistir ao autoritarismo de nossa época, ao avanço do fascismo do dia a dia. Penso agora que, se esse experimento não alcançar sucesso na arte de conversar com um fascista, que possa nos afastar do fascismo em nossa própria autoconstrução. Se puder colaborar com isso, então o esforço teórico e prático que o engendrou não terá sido em vão.

2. Como conversar com um fascista

O genocídio indígena, o massacre racista e classista contra jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades, a violência doméstica e o assassinato de mulheres, a homofobia, a manipulação das crianças, em palavras simples, o ódio ao outro cresce em uma sociedade em que está em jogo também o extermínio da política. Podemos dizer que as pessoas, indivíduos e grupos, odeiam, sobretudo, a política e que os políticos (salvaguardando exceções) odeiam o povo se quisermos pensar no ódio em nível praticamente sistêmico. Podemos nos colocar a questão quanto ao risco de que o ódio se torne estrutural, que venha a dar base a todas as nossas relações. Nesse contexto, a política é destruída sistematicamente em duas linhas: pelos políticos que a transformam em burocracia; pelo povo que a negligencia e se desinteressa dela. Talvez a destruição da política seja a verdade oculta na razão de Estado atual. Todos sabem, mesmo que não tenham palavras para expressar, que a política foi transformada em burocracia e que os governantes garantem burocraticamente seu emprego eterno estimulando o ódio nacional ao poder público. Não há maneira melhor de destruir a política do que fazendo uso eficiente do ódio.

Para destruir o outro é preciso destruir a política. Para destruir a política é preciso destruir o outro. Destruir o outro garante o fim de sujeitos de direitos e o fim do direito dos sujeitos. É preciso humilhar e aviltar pessoas e populações evitando assim a realização da democracia que propõe uma sociedade inclusiva para todos. Ao mesmo tempo, nesses contextos é útil usar a palavra democracia magicamente, como se já estivesse realizada.

Como se manipula o ódio? É muito simples. Por um processo de intrigas miúdas e de fomento à insuportabilidade da diferença. Quem sente ódio antes sentiu medo e antes ainda sentiu inveja. Temer se torna um verbo intransitivo. Assim como invejar. Na cultura da inveja e do medo não é preciso saber por que se inveja e se teme. É preciso invejar e temer intransitivamente. Falaremos mais sobre isso no capítulo final. Por enquanto precisamos saber que os investimentos afetivos são em idiossincrasias. As diferenças de classe, raça, gênero e sexualidade, além do padrão da normalidade física, são o foco do afeto odiento que não resiste sem a inveja e o medo. É preciso intensificar a diferença através de sua própria marcação para se localizar um alvo contra o qual agir por palavras e atos.

Podemos assim dizer que o ódio transita entre nós. Mas o curioso é que isso não acontece somente de maneira inconsciente. Há algo assustador no ódio contemporâneo. Não se tem vergonha dele, ele está autorizado hoje em dia e não é evitado. A estranha autorização para o ódio vem de uma manipulação não percebida a partir de discursos e de dispositivos criadores desse afeto. Somos seres capazes de amar e odiar. O motivo pelo qual amamos é inversamente proporcional ao porque odiamos. No primeiro caso construímos, no segundo, destruímos.

Ora, sabemos que os afetos são sempre aprendidos. Eles se formam em nós por experiências. O fascista é impotente para o amor porque viveu experiências de ódio. Experiências sensíveis e intelectuais. Ele introjetou o ódio muito antes de poder pensar nele. Sempre pensamos o que pensamos motivados por elementos afetivos. Todos os pensamentos de quem sistematicamente odeia como o fascista têm como fundamento as potências violentas do ódio.

Sabemos que é preciso exterminar a política para que o capitalismo no seu estilo selvagem (tendencialmente, sempre selvagem e bárbaro) se mantenha: poucos muito ricos, muitos explorados, outros tantos cada vez mais afundados na via da miserabilidade. O extermínio é calculado: quem não produz e consome segundo os padrões do “capital” não tem lugar. O ódio gera um não lugar, o espaço habitado pelo excluído que não é um lugar político, mas antipolítico. A luta dos excluídos é por saírem desse lugar ganhando voz e chance de sobreviver. Em uma política verdadeiramente democrática deveria haver lugar para todos, para vários modos de produção da existência e de subsistência que não precisassem seguir o ordenamento do capital, voltado a si mesmo, apenas à sua própria manutenção e reprodução a partir da devoração do outro. Núcleo substancial, verdadeiramente teológico, do capitalismo, o capital é uma espécie de unidade absoluta a que tudo serve. A violência gerada ao seu redor para sustentá-lo não tem medidas.

A democracia deveria ser a contraposição a essa unidade absoluta, mas ela é manipulada no capitalismo como se fosse ela mesma essa unidade, o que de melhor poderia nos ter acontecido em termos sociopolíticos. Outra democracia, portanto, uma que se dispa de máscaras, está em jogo em uma crítica do capitalismo. Uma democracia como ruptura com os jogos de opressão, dominação e exploração seria a antecipação de um sonho. Essa democracia que não se tem e que, no entanto, se deseja é a que está em discussão. Uma democracia radical. No entanto, o próprio extermínio do desejo de democracia é essencial para a manutenção do sistema de opressão a que damos o nome de capitalismo que usa a democracia como uma máscara, uma fachada. Isso é possível por meio da mera propaganda da democracia que a reduz a mercadoria ao simplificá-la a discurso. Mas algo mais essencial que isso é necessário.

É nesse ponto que entra o autoritarismo efetivado na prática diária. O que podemos chamar de autoritarismo cotidiano. Ele é feito daquilo que alguns chamam de microfascismos. Do autoritarismo em geral depende o capitalismo. Mas ele não sobrevive se não é sustentado no cotidiano. Ao mesmo tempo, o cotidiano é um lugar em geral desprezado pelas críticas mais consistentes. Do autoritarismo depende o extermínio da democracia como desejo em nome de uma democracia enquanto fachada. Para exterminar a democracia como desejo é preciso que o povo odeie e é isso o que o autoritarismo é e faz. Ele é o cultivo do ódio, de maneiras e intensidades diferentes em tempos diferentes. Às vezes um ódio mais fraco, às vezes um ódio intenso servem à aniquilação do desejo de democracia.

8. “Tudo o que não presta”

Nada do que possamos chamar de conhecimento pode ser concebido fora do seu registro ético-político. Se o registro do conhecimento funciona pela negação do outro, o conhecimento é negação de si mesmo. A rigor, não é conhecimento. Sem o outro, o conhecimento morre. O enrijecimento é a prova da morte do conhecimento que se tornou cegueira ideológica. A ideologia é a redução do conhecimento à fachada, como que sua máscara mortuária. O conhecimento, que deveria ser um processo de encontro e disposição para a alteridade que o representa, sucumbe à sua negação. Daí a impressão que temos de que uma personalidade autoritária é também burra, pois ela não consegue entender o outro e nada que esteja em seu circuito. O campo do outro não lhe é acessível porque ela não tem condições cognitivas para isso, mas, sobretudo falta-lhe a afetividade e a imaginação que são formas pelas quais nos aproximamos desse campo cujo epicentro é, em si mesmo, sempre inacessível.  Se pensamos no outro enquanto espectro é porque ele não é rígido, ele é um sistema de representações feito de imagens justapostas, de níveis e categorias. Assim posso me relacionar com a ideia do outro, a imagem do outro, o corpo do outro. Pensar no outro, a favor ou contra ele, deriva, portanto, do afeto que preside o pensamento.

A propaganda é o método que sustenta a negação do outro. A propaganda fascista, a propaganda do ódio, prega a intolerância, afirma coisas estarrecedoras com alto teor performativo, ou seja, capaz de provocar efeitos e orientar ações. O que chamo aqui de propaganda não é a campanha publicitária. Mas a discursividade entranhada nas falas mais comuns. E nas falas nefastas do poder. No dia a dia, sobretudo em certas épocas de crise do capitalismo, vemos isso em profusão. Um exemplo interessante foi o de um deputado chamado Luis Carlos Heinze que apresentou, em discurso até hoje visualizável no YouTube, uma imagem perfeita do pensamento autoritário que exclui o outro. Em sua fala, que se tornou famosa, “quilombolas, índios, gays, lésbicas”, representavam “tudo o que não presta”. “Tudo o que não presta” é, sem dúvida, um modo de desqualificar os outros. No caso, os sujeitos “des”-qualificados na fala e por meio da fala do deputado eram minorias. Minorias historicamente oprimidas pelos atos capitalistas. Mas com a expressão ele atingiu a exposição do conceito fundamental do fascismo atual. Além de inscrever-se nele como sujeito de maneira evidente. “Tudo o que não presta” implica um rebaixamento das minorias indicadas em seu discurso ao que “não presta”. Ora, o que “não presta” não presta para quê?  Não “presta” para o sistema da produção e do consumo. Os “imprestáveis” são julgados do ponto de vista da utilidade ao sistema da produção e do consumo.

O “fascista”, por sua vez, é o suprassumo da personalidade autoritária, aquela que impõe o ponto de vista do julgamento do outro pela utilidade. A lógica da medida. O fascista é o sacerdote do capitalismo cuja liturgia implica esse julgamento, ao modo de um batismo perverso, o outro é descartado e lançado à matabilidade.

“Tudo o que não presta” ao mesmo tempo se apresenta como uma resposta pronta, um clichê. Um exemplo de destruição do conhecimento enquanto desejo de descoberta, que vem a constituir uma relação com o outro. Desejo de conhecimento que está na base do desejo de democracia. Autoafirmação de ignorância, assinatura da estupidez. Mas é, ao mesmo tempo, a destruição da política por um discurso antipolítico de um agente da governalidade, no caso, um deputado que deveria ser político, mas que está voltado para o instinto de morte antipolítico.

Em um caso como esse, podemos falar em prática discursiva perigosa, na qual é fácil perceber uma tendência ao extermínio, à matabilidade. O discurso do extermínio era o foco último do que ali poderia ser uma pura determinação do outro. Exemplo perfeito do discurso alinhado com a “tanatopolítica” contemporânea (a palavra thanatos significa morte em grego). Lembremo-nos do conceito de biopoder exposto por Foucault em sua História da sexualidade. Biopoder significa o cálculo que o poder faz sobre a vida. Forma típica de exercer o poder na modernidade, quando já não se manda simplesmente matar, como na antiguidade — embora esse tempo e seus métodos ainda persistam dentro da modernidade em um curioso cruzamento cronológico —, mas simplesmente age sobre a vida, por exemplo, controlando os preços e a distribuição dos alimentos, a saúde e as moradias das populações. A exclusão é o processo que se garante pela imprestabilidade à qual tantos são lançados e pela qual são condenados.

A matabilidade, portanto, não desaparece. A mortalidade diante da ine­xistência de políticas públicas e de um projeto radicalmente democrático de país é um resultado sempre garantido. Se o Estado não serve ao povo, serve às elites. O “tanatopoder” permanece atuando por meio do biopoder: calculando a vida para lançar na morte os que são marcados com a imprestabilidade. A imprestabilidade precisa ser garantida epistemologicamente, o que se consegue por meio do discurso, ele mesmo parte da ordem. Mas a quem esse tipo de discurso convence? Eis uma questão que precisamos nos colocar, até para poder combater essas formas de discurso ou para criar alternativas para a sobrevivência de uma política democrática, para uma política melhor, para um poder da diferença, um poder compreensivo que acolha aquilo que Walter Benjamin chamou “tradição dos oprimidos”.

Ora, quem fala o que fala, sem nenhuma responsabilidade, por um lado deve ser legalmente questionado, por outro, é preciso trazer à luz quais condições, na cultura, possibilitam fazer surgir falas como essa que, na desqualificação do outro, praticam uma humilhação simbólica, e mais, estimulam ódio e, assim, incitam à matança. Como alguém se autoriza ao discurso fascista? Como alguém é dele convencido? Theodor Adorno se colocava a pergunta pela suscetibilidade das pessoas à propaganda fascista. Quem é, afinal, suscetível à propaganda de um modo geral e suscetível à propaganda fascista? Se a propaganda fascista que é um tipo de discurso — e uma verdadeira metodologia de alienação social por meio da linguagem — continuar vencendo, não teremos futuro. E essa não é uma questão que deva ser esquecida, embora muitos prefiram que a teoria fique com o puro papel analítico que nos isenta de apontar caminhos. Uma pergunta projetiva se impõe filosoficamente nesse momento: em que direção devemos agir diante desse estado de coisas?

 

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Marcia Tiburi  é mestre e doutora em Filosofia. Publicou diversos livros de filosofia, entre eles Filosofia em comum (Ed. Record, 2008), Filosofia brincante (Record, 2010) e Olho de Vidro (Record 2011). É professora do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Mackenzie.

Os trechos acima são do seu novo livro, Como conversar com um fascista — reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro, e foram cedidos gentilmente pela editora Record 

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