* Por Raimundo Neto *

Tenho me pensado como lugar, sabe? Um corpo é um lugar? O corpo como metáfora de lugar, percorrido, uma cartografia de vida, com suas marcas, sinais, ilhas. Não uma correspondência exata, como se o cérebro fosse uma parte cultural da cidade e o estômago uma parte gastronômica, mas um mapa caótico, sem fronteiras, onde as ruas vão dar em becos escuros e estreitos como nossos dedos e em lugares úmidos e com cheiros ocres. Como nossos olhos.” pág. 106, conto “Dramaturga hermética”, do livro Amora.

I – A casca púrpura

Amora começa pela capa, dura: estátuas femininas em um ato engessado (uma repetição que durará a eternidade) de afeto e prazer, penso eu; isso exige, já no início, um olhar-mordida sutil e dedos delicados para abrir a dureza exposta e adentar a polpa macia das palavras de Natalia Borges Polesso e todos os contos presentes no vencedor do prêmio Jabuti. É morder a cor do fruto-mulher presente e sentir o gosto da dor, sentir a mancha nos dentes, o caroço e a angústia púrpura, o sumo de vida nova e todas as mulheres que se revelam, jovens e velhas.

A primeira leitura do livro trouxe-me a ideia de personagens trancadas em si pelo segredo, inquietas pela possibilidade da descoberta, não para escapar de uma estória impossível, mas para experimentar um corpo-sexualidade que, em aparência, escapulia de centros desconhecidos que as faz únicas. Foi aí que entendi: todas as protagonistas são mulheres lésbicas.

São mulheres jovens e velhas; mulheres imersas em vida-a-dois; mulheres a viver abandono e fuga; mulheres machucadas e escorregadias com seus corpos repletos de possibilidades de acontecer; mulheres prestes a morrer, outras prestes a ressuscitar. Mulheres acontecendo em afeto, dor, angústia, segredo e descoberta; mulheres mordidas, mulheres mordendo, gemendo, pedindo socorro, e deixando a vida (e tudo que ela tem de polpa, sangue e sumo escorrer); mulheres e seus medos latentes em experiências eróticas e afetivas; o corpo pego de surpresa e o taquicárdico coração apreensivo, cálido, constrangido, amável, malicioso, desacertado, deslocado, fronteiriço, aos pedaços.

II- A mordida na língua

Todo conto de Amora é uma mulher acontecendo como percurso. As palavras saem direto das horas vivas das personagens; ouvi-las é sabê-las possíveis em seus desesperos silenciosos; descoberta de lábios/bocas que dizem o início de uma paixão que sorri escondida entre prateleiras de livros.

Em “Vó, a senhora é lésbica?”, por exemplo, os segredos assolam o amor corroído de uma tia e uma avó da narradora que cutucam curiosidades de inocência limitada e prestes a desabrochar em experiência. Joana e Taís, Carolina e Clarissa e uma arte em peça de tapeçaria representam um ato difícil de definir e, ainda assim, imenso no toque de mãos femininas. O presente da paixão de Joana e Taís ilumina o passado de Clarissa e Carolina, que mais velhas, viveram seus impedimentos. É assim que uma garota que pouco sabe sobre o amor já entende muito de sua paixão.

A dor de algumas personagens de estar tão fundo em si que parece impossível viver de um modo que não dilacerada é o motivo também da sensação de não pertencer a lugar algum. Em Botinas, a morte chega como um fragmento de liberdade; e o lirismo presente nas linhas de Natalia Polesso, a escrita madura (casca, polpa, sumo e caroço em ordem) torna a experiência de descobrir as personagens uma mordida suculenta: é morder a fruta e arrancar um pedaço da língua; é doce e amargo, poeticamente doloroso.

O livro parece organizado em suculentas camadas de significados. Não é pura aparência: são só mulheres. São mulheres e lésbicas. São mulheres e vivas, amantes, deslocadas, incomodadas com tudo que não conseguem ser completa e absurdamente. São também descobertas, receios e catástrofes, angústias seguidas de morte, lembranças guardadas em gestos secretos.

Nas linhas de “Minha prima está na cidade”, observamos outro modelo (?) de família que chega ao fundo através de minúcias de cuidados, composições discretas de atos que erguem e sustentam a ideia de amar em segredo. Família também é mulher e mulher e seus segredos. Possível entender que o secreto, em alguns contos de “Amora”, reside na superfície do que foge ao comum e banal, na sensação constante de deslocamento, dos que “não pertencem a lugar nenhum”, mas discretos e potentes: “É também pelas estranhezas que as pessoas se unem”, como diz uma personagem do conto.

Pelas estranhezas a autora adentra a intimidade das mulheres que se amam; através de portas entreabertas é possível espiar de relance as gavetas onde se escondem alguns segredos; tais gavetas, no entanto, têm chaves que serão entregues a(o) leitxr apenas através da alteridade, pelas descrição de sensações e experiências precisas, ritmadas, que transformam cada conto em um lento descascar de fruto suculento, de casca fina e núcleo espesso (onde há fuga e partida).

Em “Os demônios de Renfield”, o leitor é apresentado a figuras únicas e seus demônios imprimindo marcas singulares de existência. Demônios que se afundam em artérias e encontram o caminho no coração de Débora, e “Lá, seguem sua dança infesta”; são assim as pessoas de Amora, digo, as personagens, as vidas contidas na ficção: Onde o suicídio não é a ruína completa, e os cortes e o sangue são experiências.

É possível experimentar o gosto de um demônio com a língua e os dentes e depois expulsá-lo só para começar a existir. É possível ter o coração entregue em desistências embriagadas que invadem o cotidiano e o obrigam a ingerir remédio, cocaína, segredo e fim; provar sangue, como numa síndrome de Renfield, nas mãos de Natalia, a autora, e na boca de Débora e suas amantes, as personagens, torna-se uma iniciativa poética e bonita de ver escorrer pelas páginas. É até possível enxergar parafilias e sadismos se não fosse a poética da obra, de coração tão escancarado e tantos caminhos expostos nesse mesmo coração.

As narrativas constroem no leitor uma “sensação de mobilidade eterna, imanente”, um não pertencer a lugar algum, “descolado do mundo” (p.103). No entanto, a leitura das diferentes narrativas e das diferentes perspectivas que são apresentadas permite ao leitor vagar pela imensidão das mulheres de Natalia, descobrir a “infinitude das possibilidades”, como diz uma das personagens em “Dramaturgia hermética.”

O recurso da construção narrativa de diferentes perspectivas e experiências profundas, em contos curtos, as vidas de tantas mulheres que amam/desejam/transam/mordem/apreciam outras mulheres (jovens e velhas, vivas e mortas) causa uma inquietação viajante no leitor – de levar a outro estado de ser -, que pode ser deslocado para longe sem mover-se do lugar de partida. Embora algumas personagens partam, outras decidem ficar, morrer, ferir, esconder-se e esconder a outra, mentir, amar. Algumas personagens inquietam-se e deslocam-se pela dúvida, que são caminhos largos, nos cantos, onde poucas são as certezas.

Ana, em “Dramaturgia hermética”, reflete sobre uma guerra interior, ao tratar de sua distância do trabalho e da juventude. Essa guerra atravessa outros contos, reside em quase todas as mulheres de Natalia. Ana pensa-se como lugar, um lugar desconhecido. E com esses questionamentos – alguns implícitos talvez – as personagens expressam-se como “mapa caótico, sem fronteiras”, e o fazem, pelo menos em possibilidades iminentes. As existências, os corpos, como lugar, na maioria das descrições de perspectivas e sensações, “metáforas do lugar percorrido”.

III – As manchas nos dentes

 Sua vida tinha chegado a ponto nevrálgico, a um nó tão enrolado que só se resolveria se cortado, desatar não era uma opção”. Conto “Como te extraño, Clara!”. p. 123, Amora.

As mulheres de Natalia possuem conflitos críticos, amores vencidos transformados em frustrações impossíveis, medo e lamentos. Nessa “realidade desencaixada” narrada no livro de contos descasca-se uma mistura precisa e firme de perspectivas em primeira e terceira pessoa, na qual os conflitos das personagens parecem nunca resolvidos, embora passíveis de mudança e dissolução, permanecem ali, dentro de todas elas, remoídxs e pisadxs, porém inteirxs e sumarentxs; vivências não tão simples de mastigar e também não impossíveis de serem mordidas sem quebrar um pedaço de dente.

Não há cinismo ou superficialidade no modo como as personagens deixam-se levar pela estranheza dos eventos que as libertam do que eram; entre felicidade e medo, como Fernanda, no conto “Como te estraño, Clara!”, elas permanecem chocadas e lindamente esfareladas em cada “possibilidade tão pequena de mudar de vida”. As mulheres descascam felicidade e experimentam medos e dúvidas, a boca, muitas vezes, chocada pelo tamanho da mordida e outras tantas vezes os olhos surpresos pela quantidade de sangue e prazer que escapam.

Kafka e Polanski surgem no livro como referência, onde o humor deveria ser o centro, mas se torna uma dor que gerará transformação: mudanças numa progressão inevitável ao caos; e as descrições de sensações levam, em alguns contos, a divagações metafísicas onde o corpo é o principal aspecto da experiência, e levam as personagens para frente, sempre para frente, por mais passado que ainda exista.

Em outros contos, algumas mulheres estão tomadas por uma maturidade persistente, outras ainda vivem mudanças nas fronteiras do corpo. Em “Amora”, como exemplo, conto que empresta o título ao livro, a palavra-título é uma ilha que se expande e ultrapassa decepções, transformações, até viver-se continente. Mas Amora também é fruta: “nos olhos de piche e lábios quase purpúreos, sumarentos. Amora de unhas feitas. Amora delicada, ora doce, ora ácida, ora áspera, sempre frágil, aquosa.”

Imagina ser lugar e fruta, caminhar e ser mordida, avançar e ser provada, chegar ao fim e sentir o gosto de começo? É o que a escrita de Natalia Borges Polesso enfrenta ao longo dos contos, ao longo do livro, na construção das narrativas de tantas mulheres. Em “Amora”, o conto, a adolescente toca a mão de Angélica.  Angélica e seu membro fantasma, sua parte faltante. O toque no que é falta carregada de descoberta é ainda o caminho de um estranhamento, “excitação e embaraço” através do qual Angélica e Amora “Sentiam todas aquelas coisas que não teriam nomes, todas aqueles movimentos dentro” (p.156).

Pelas faltas marcadas nas personagens, a autora também constrói as costuras narrativas e perspectivas, apresentando latências e desejos. No conto “O coração precisa ser pego de surpresa para ser incriminado”, a personagem Wolff vive um defeito no corpo – uma síndrome cardíaca e ataques do coração; no entanto, curada, e com Martinha ao lado. Wolff e Martinha são mulheres recém-conhecidas, desconhecidas, mas se reconhecem em quereres únicos e até similares, capazes de investir numa relação recente, segurar o membro-fantasma perdido nos acidentes da vida, nas traições, nos abandonos, nas mentiras.  Mulheres também constrangidas por não terem uma definição precisa sobre algo que sentem “a não ser a salvação do desconhecimento”. (pág.162)

O sexo, naquele conto (e em outros), é um modo de fazer o corpo acontecer, vencer o medo, vencer a morte também. Martinha e sua boca, e os dedos avançando para a umidade confusa de Wolff, esperando o coração deixar de querer morrer. A vida renasce através do corpo e do afeto, desajeitados num banheiro apertado. O corpo sorri para expulsar a morte e as lembranças do hospital, com os dedos no corpo de Martinha e a língua provando o êxtase e o sorriso da mulher, Wolff sabe que não vai morrer naquele dia.

E é na unidade “Pequenas e ácidas” do livro que as vozes presentes nos contos mostram narradoras em declarações explosivas e corpos à beira de precipícios; carne viva, peito aberto e quedas sucessivas em amanhãs esquecidos; palavras que ficam na pele. Depois de existirem na unidade anterior , “Grandes e sumarentos”, nesta unidade as personagens afogam-se em palavras que se abrem em sensações viscerais, o prazer prestes a explodir, coquetel de amor entregue e toque molotov, para renascerem em querer caótico. A experiência do corpo agora maltratado com poesia “forte e passional” (pág. 234).

Como se as mulheres dos contos anteriores se tivessem dissolvido em desejo, na abstração de seus caminhos, nas fronteiras do corpo, e entregado-se finalmente. Os contos de “Pequenas e ácidas” são fragmentos poéticos e profundos que arrebentam a existência na potência das palavras, costuradas em lirismos viscerais; as personagens experimentam não pertencimentos quando o desejo aflora e o corpo emudece diante do enigma do amor da outra.

V – O sumo e o sangue que escorrem

“Tudo está mesmo estranho e escuro naquela talvez possibilidade tão pequena de mudar de vida, tão farelenta, como seus ossos depois da batida. Não sabe muito bem como funcionariam essas coisas, todas essas coisas novas, perigosas e atraentes que se apresentaram a ela”. Conto “Como te extraño, Clara”, Pág. 128.

 A responsabilidade com a estética da literatura construída por Natalia apresenta militância poética. Em entrevista à Reversa Magazine, ela afirma que sua escolha por personagens mulheres lésbica é iniciativa política, e não apenas estética.

Os contos são elaborados com pontos de vista diferentes, narrativas traçadas em primeira e terceira pessoa de mulheres jovens e velhas, que vão e nunca voltam no que começaram a ser.  A sexualidade é outra potência no livro, como possibilidade. O receio que não limita, as descobertas amalgamadas a medos compreensíveis situam no mundo as mulheres escritas por Natalia, não apenas em “universos lésbicos” cheio de regras e modos de se relacionar característicos. As narrativas tratam a realidade de mulheres que vivem amores, decepções, rotinas e fugas marcadas por experiências muito particulares, nas quais as ideias de famílias e relacionamentos são expandidas. Mulheres e seus corpos atravessados por preconceitos vindos de contextos próximos (família) e distantes (comunidade, escola, igreja, vizinhos).

A autora nomeia sentidos como quem qualifica o mundo, com a potência de uma linguagem simples. O caos preocupante do fim, e, logo em seguida, a dor corroída de falar sobre o fim, pensar sobre quem partiu é um aspecto presente em alguns personagens e seus “interiores selvagens”. Cada personagem carrega um desalento que chora términos e recomeços, dúvidas e desespero, no entanto, os sentimentos são percursos: pelos caminhos de fora regulam-se as andanças de dentro que, cada vez mais alargadas e extensas, permitem percursos maiores, idas mais distantes. E assim as personagens não terminam os contos como começam.

As personagens fazem longos caminhos até que a vida não volte a ser o que era. Há um modo de ser alegre e sofrido; alegria que nunca acontece sozinha, capaz de salvar a existência daquelas mulheres; existem sinestesias poéticas que elevam (para o alto e para dentro) o entendimento do que é ser humano na ficção.

Ler as mulheres deste livro é escapar dos limites de ser, deslocar-se, ser outrx e um pouco do mesmo em dúvida e angústia. São trajetos complexos, mas ilimitados e complexos. Ao longo dos contos curtos moram os rastros de deslocamento mapeados pelas dúvidas e dores das personagens, quando ultrapassam os limites de si pela palavra ou pelo segredo. A impressão é a de que as experiências das personagens existem num nível indizível que só é possível começar a entender, em seus limites, pelas incertezas que as habitam. Nos subúrbios das existências potentes as possibilidades de existir.

Falo de ficção e realidade conversadas: as mulheres são lésbicas e essa experiência as atravessa. E isso faz com que o livro expanda horizontes de compreensão. Ler cada conto é aprofundar brevemente o entendimento de que os rótulos são absurdos e reducionistas, na literatura e na vida. O efeito literário construído nas diversas narrativas, as profundidades das personagens em contos curtos, causam um efeito afetivo e humano, além de potencializar o aspecto representativo de gênero e sexualidade que o livro possui.

Não é possível falar dessas mulheres sem sabê-las lésbicas. No entanto, classificar o livro como “literatura lésbica”, no sentido de uma literatura “menor”, é reduzir todas as suas enormidades universais. A experiência de ser lésbica e todas as implicações que residem nessa existência nomeiam os afetos, as sensações, os sentimentos, os medos, os prazeres e os caminhos das personagens no livro. Ser lésbica aqui como uma história “diluída no meio de problemas cardíacos e histórias de nascer” (p.162). Nomear a obra como literatura lésbica talvez se mostre como um ato de enfrentamento.

Li em alguma matéria que menciona a pesquisa de Regina Dalcastagné (Literatura brasileira contemporânea: território contestado), a qual refere que pouquíssimas são as personagens lésbicas como protagonistas de romances e contos em livros publicados por três grandes editoras do mercado livresco, de 1990 a 2004. Assim, dizer que o livro abre narrativas tão potentes e vivas sobre mulheres e suas experiências homoafetivas/homossexuais é ato de resistência. Resistência pelo corpo, pelo amor, pela poesia, pelos caminhos de ser mulher e lésbica.

Pensar Amora como uma construção estética com recursos técnicos elaborados e maduros de uma boa literatura de ficção capaz de apresentar um discurso de desejos marcados pelo desejo gay/lésbico/homoafetivo como “mecanismo de visibilização” (expressão de Wilton Garcia sobre cultura e homoerotismo) é, sim, um modo de fazer a mulher lésbica dizer/expor, aparecer, e assim ser viva, errante, angustiada, tensa, dolorida, vermelha, púrpura, resignada, negra, medrosa, patética, madura, capaz, absurda, estranha, potente, ilimitada, desejada, resistente, pacífica, bélica, selvagem, domesticada, explosiva, livre, pessoa, humana, e caminho.

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Amora, de Natalia Borges Polesso (Não editora, 256 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico

 

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